Energia

‘China avança com renováveis na América Latina, enquanto Europa fica para trás’

Juliana González Jáuregui discute o papel da China no desenvolvimento da energia renovável na Argentina e as perspectivas de mais investimentos para o país
<p>Autoridades chinesas em encontro com comitiva presidencial argentina e governadores das províncias de Rio Negro, Buenos Aires e Catamarca, em Beijing, 2022 (Imagem: Casa Rosada, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by/2.5/ar/">CC BY</a>)</p>

Autoridades chinesas em encontro com comitiva presidencial argentina e governadores das províncias de Rio Negro, Buenos Aires e Catamarca, em Beijing, 2022 (Imagem: Casa Rosada, CC BY)

Na última década, a Argentina tem sido um dos países latino-americanos mais beneficiados por investimentos chineses em energia renovável. Ao longo dos últimos quatro governos — e antes mesmo de aderir à Iniciativa Cinturão e Rota da China (BRI, na sigla em inglês), em 2022 —, empresas chinesas financiaram diversos projetos de energia solar e eólica no país.

Porém, diante de uma permanente crise econômica, a Argentina enfrenta enormes desafios para financiar sua transição energética. O país ainda depende fortemente dos combustíveis fósseis, outro setor que também tem recebido pesados investimentos chineses.

A China é o segundo maior parceiro comercial da Argentina, mas a relação entre os dois parece ter ficado estremecida após a eleição de Javier Milei, em 2023. Desde a campanha, declarações do líder de extrema direita sobre a China têm aumentado as tensões entre as duas nações.

Até agora, a China desempenha um “papel decisivo” na transição energética do país, de acordo com Juliana González Jáuregui, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina. Mesmo assim, observou González, a Argentina ainda não adotou políticas de transferência de tecnologia ou apostado em uma produção com maior valor agregado. 

retrato de Juliana González Jáuregui. Mulher de pele morena clara, com cabelo castanho liso e comprimento até os ombros. Elaestá sorrindo e uma camisa social listrada, sem mangas.
Juliana González Jáuregui (Imagem: Darío Castillo)

Em entrevista ao Dialogue Earth, a pesquisadora analisou a situação das parcerias da China com províncias argentinas em projetos locais — muitos deles focados em energia renovável e exploração de lítio. Para ela, os investimentos dos Estados Unidos e da União Europeia na América Latina estão ficando para trás em relação aos da China.

Dialogue Earth: Até que ponto o financiamento chinês contribuiu para a transição rumo às energias renováveis na Argentina?

Juliana González Jáuregui: A China e suas empresas estatais e privadas têm sido decisivas para a transição energética argentina, tanto direta quanto indiretamente. Muitas companhias chinesas venceram os processos de licitação do programa RenovAr [lançado em 2016 pelo governo argentino para atrair capital privado nos leilões de energia renovável]. Além disso, elas têm ficado a cargo da execução de vários projetos, como os da PowerChina e da Goldwind, que seguem em expansão. Há um apoio evidente da China para a transição energética argentina.

Qual foi o papel da indústria argentina na primeira onda de projetos de energia solar e eólica no país?

A Argentina está muito atrasada no setor de energia solar, mas fez um progresso mais significativo na energia eólica. Não há comparação em termos de custos. Com o avanço acelerado da indústria chinesa, fica difícil competir em preço e tecnologia. O que eu questiono tem relação com a transferência de tecnologia e como a Argentina poderia pressionar as empresas estrangeiras para que esse apoio à indústria local fosse incorporado a determinados projetos. Não há uma visão de longo prazo no programa de energia da Argentina, e é nesse contexto que as empresas chinesas chegam. Mas o fato de a Argentina não conseguir negociar e pensar em transferência de tecnologia não tem nada a ver com a China. Tem a ver com a gente.

Como a China trabalha com os governos provinciais da Argentina em relação à transição energética?

A província de Jujuy é o caso mais emblemático e antigo. Foi ele que deu origem à cooperação com as outras províncias. Havia um entendimento muito claro por parte do governo de Jujuy de que era necessário participar das visitas oficiais à China. Ela foi uma das primeiras províncias a assinar um convênio com uma província chinesa [Guizhou, em 2018]. Depois veio o financiamento do parque solar Cauchari e agora um trem movido a energia solar, inaugurado recentemente. Um processo semelhante começou com as províncias de Salta, Catamarca e Terra do Fogo.

A Europa e os EUA ainda não entenderam a importância de se movimentar em nível subnacional na Argentina, algo que a China conseguiu de forma rápida e significativa

Empresas da União Europeia e dos EUA também fizeram investimentos na Argentina ligados à transição energética, principalmente na extração de lítio. Mas como é seu relacionamento com os governos provinciais?

A Europa e os Estados Unidos ainda não entenderam a importância de agir em nível subnacional na Argentina, algo que a China alcançou de forma rápida e significativa. Na Argentina, são as províncias as detentoras dos recursos naturais — portanto, o fator local é imprescindível.

A adesão da Argentina à Iniciativa Cinturão e Rota em 2022 fez alguma diferença para os investimentos chineses em energias renováveis?

Não percebi nenhuma mudança após a adesão ao programa. A BRI é uma marca da China: é uma tentativa de modificar a ordem internacional conforme aquilo que ela mesma entende como multilateralismo. Na Argentina, de fato, a maioria dos investimentos veio antes dessa assinatura. Mas temos uma dinâmica política diferente da de outros países da região. O Chile, por exemplo, mantém uma posição estatal consistente em sua relação com a China, e nós não.

Essa dinâmica ocorre em um momento de mudanças da BRI, deixando de lado os acordos de infraestrutura apoiados por empréstimos estatais e passando a se concentrar em projetos menores. O que isso pode significar para a Argentina e outros países que aguardam investimentos?

Isso tem relação com uma recalibragem após a pandemia de Covid-19 e as crescentes preocupações da China com a escala da dívida pública na América Latina. Os casos mais emblemáticos são os da Venezuela e do Equador, que ainda buscam formas de pagar os empréstimos concedidos pelos bancos de desenvolvimento chineses. Internamente, a China está começando a repensar o que vai financiar internacionalmente, inclusive no contexto das tensões com os Estados Unidos. O foco agora mudou para o financiamento de projetos ligados à inovação e à tecnologia, com a meta de atingir uma posição de liderança em tecnologia até o centenário da República Popular da China, em 2049.

Aquecedores solares no teto de casas de tijolo à mostra em um bairro pobre de Rosário, Argentina
Aquecedores solares em um bairro pobre de Rosário, Argentina. Conforme Juliana González, a Argentina está bastante atrasada no setor de energia solar e terá dificuldades para competir com a China em preços e tecnologia (Imagem: Celina Mutti Lovera / Dialogue Earth)

Enquanto financia projetos de energia renovável, a China continua sendo um parceiro relevante em projetos de combustíveis fósseis. Você observou alguma mudança nesse sentido?

A China replica o que outros países desenvolvidos fazem, exportando emissões de combustíveis fósseis para fora de seu território. Por um lado, é a nação capaz de conduzir a transição energética no Sul Global. Por outro, não conseguiu reduzir sua dependência de combustíveis fósseis, gerando uma situação contraditória: a China é um dos países que mais apoia a transição, mas também é um dos que mais investe em combustíveis fósseis.

Qual tem sido o papel das empresas chinesas nas fusões e aquisições do setor de energia verde da Argentina?

No setor eólico e solar, o desenvolvimento mais forte ocorreu no Brasil e, nos últimos anos, também no Chile. Na Argentina, temos alguns casos como o da Goldwind, que comprou os parques eólicos que pertenciam à Isolux [da Espanha]. Essa lógica pode crescer ainda mais. Não veremos tanto financiamento estatal ou grandes projetos financiados por bancos estatais ou comerciais da China. Em vez disso, veremos um financiamento implícito no qual empresas obtêm fundos para fusões e aquisições.

Em uma pesquisa, você mencionou a necessidade de um plano de longo prazo entre a China e a Argentina sobre energia renovável. Como isso deve ser feito?

A ideia de criar um plano é trazer para a mesa os setores público e privado da Argentina, inclusive o de ciência e tecnologia, para pensar sobre a transição energética. Isso não significa competir com a China, mas sim tentar ter algum impacto nas cadeias de valor, para ver com o que a Argentina poderia contribuir. A China iniciou sua própria transição energética com uma onda de investimentos e exigiu a transferência de tecnologia. Por que a Argentina não pode fazer isso? Esse plano de médio e longo prazo é pensar na comunicação entre os setores, algo que não existe na Argentina no momento. Temos muita fragmentação e há pouco diálogo entre os ministérios, as agências e os governos nacional e provinciais.

Como você vê a transição energética da Argentina nos próximos três anos de governo Milei, considerando as relações tensas com a China?

Vejo isso como algo complexo. O governo atual tem uma visão mal informada da relação com a China. Foram cometidos muitos erros desde que o novo governo assumiu o cargo. Entendo o desejo de manter laços com os Estados Unidos, mas no atual contexto global é preciso incluir a China em sua política externa. Além disso, o governo tomou uma decisão retórica de que as mudanças climáticas não são algo que a Argentina precise abordar. Portanto, considero difícil ter uma visão de longo prazo para a transição energética.

Milei demonstrou interesse em aumentar os laços com a Europa e os EUA. O que isso pode significar para a transição energética da Argentina em termos de financiamento e projetos?

Se pensarmos na lógica do posicionamento do Norte Global diante da ascensão da China, vejo uma janela de oportunidade para a Europa, e não para os Estados Unidos, nos investimentos em transição energética — mas a Europa está olhando para outro lado. A Alemanha está concentrada em sua estratégia de política externa em relação à China, inclusive em inovação e transição energética, mas não participa dos projetos de energia renovável na Argentina. Nos Estados Unidos, o discurso está mais focado em falar mal da China do que em fazer algo efetivo na América Latina.

No ano passado, a União Europeia lançou uma série de investimentos na América Latina com seu programa Global Gateway, incluindo projetos de transição energética e minerais essenciais. Que papel você acha que isso terá na Argentina? Quais as oportunidades para ambos os lados?

Até o momento, vejo isso como uma resposta à concorrência com a China. A realidade é que as empresas chinesas estão fazendo um grande progresso com as energias renováveis na América Latina e a Europa está ficando para trás, a menos que decida fazer um investimento público nesse setor. A lógica do Global Gateway é fortalecer o investimento privado. O problema é que a Europa não tem a força financeira da China, e o financiamento do bloco europeu não está no mesmo patamar.