Energia

Energia solar desponta no Brasil. Ela pode ser justa?

Geração fotovoltaica é agora a segunda maior fonte de eletricidade do Brasil. Especialistas defendem que expansão beneficie e respeite comunidades fora da rede nacional
<p>Estudante Brenda Rodrigues da Silva ajuda na instalação de painéis solares na Fábrica Social, centro de capacitação profissional em Brasília. Em 2023, a energia solar se tornou a segunda maior fonte de eletricidade no país (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/24dCxXk">Tony Winston</a> / <a href="https://flickr.com/people/agenciabrasilia/">Agência Brasília</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/">CC BY</a>)</p>

Estudante Brenda Rodrigues da Silva ajuda na instalação de painéis solares na Fábrica Social, centro de capacitação profissional em Brasília. Em 2023, a energia solar se tornou a segunda maior fonte de eletricidade no país (Imagem: Tony Winston / Agência Brasília, CC BY)

Há apenas três anos, o Brasil não figurava entre os maiores produtores de energia solar, mas tomou a sexta posição no ranking global em 2023. Com a capacidade crescendo a um gigawatt (GW) por mês, ela também superou a eólica e se tornou a segunda principal fonte de eletricidade do país no ano passado.

Esse ritmo só não é mais acelerado por conta do baixo desempenho econômico do Brasil, que inibe a demanda por energia, segundo Roberto Kishinami, gerente de energia e indústria do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Entre 2019 e 2022, o produto interno bruto (PIB) do Brasil cresceu uma média anual de 1,5%; em 2023, esse número foi de 2,9%. “Quando, há dez anos, o setor foi planejado, a taxa prevista era de 3,5%”, explicou.

Mas o que levou a energia solar no Brasil a dar esse salto exponencial? Segundo especialistas consultados pelo Dialogue Earth, isso não ocorreu da noite para o dia e vem na esteira do avanço da capacidade interna na última década, motivado por incentivos públicos, redução de custos de produção e aumento das ambições climáticas.

Energia limpa abundante

O país conta com recursos naturais abundantes e variados que o colocam em “uma posição muito vantajosa na transição energética”, segundo Amaro Pereira, professor de planejamento energético da pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). 

Há décadas, a matriz elétrica brasileira tem sido alimentada principalmente por energia hidrelétrica. As fontes renováveis hoje representam 86% da capacidade energética, com quase metade proveniente de hidrelétricas. 

Segundo Kishinami, do iCS, essa robustez da fonte hidráulica funciona como uma “grande bateria” do sistema elétrico brasileiro, preenchendo lacunas de outras renováveis mais dependentes do clima, como solar e eólica. Assim, embora o país ainda recorra a termelétricas em períodos de secas graves, a matriz predominantemente hidrelétrica traz resiliência para abarcar novas usinas dessas fontes alternativas, diz Pereira.

Incentivos governamentais

Em 2023, o governo brasileiro anunciou um novo plano de aceleração do crescimento, garantindo R$ 67 bilhões para financiar empreendimentos de energia renovável. Mais da metade — R$ 41,5 bilhões — destina-se à construção de 196 usinas solares. Esse valor é o dobro do que foi investido em mais de duas décadas de um programa similar.

Carlos Dornellas, diretor técnico e regulatório da Absolar, principal associação da indústria solar, observa ainda que, na última década, o governo brasileiro realizou leilões para impulsionar a geração centralizada. Isso ocorreu por meio de grandes usinas solares, que começaram a ser regulamentadas nos anos 1990.

Aliado a isso, o país autorizou, em 2012, a geração distribuída, ou seja, a produção de energia em menor escala, no próprio local de consumo. Esse formato hoje representa quase 70% da energia fotovoltaica no Brasil, e é o principal motor de crescimento da geração solar. 

Até então, para incentivar o desenvolvimento solar, um indivíduo podia vender seu excedente de energia à rede nacional. Assim, cada watt injetado pelo consumidor na rede era integralmente compensado em sua conta de eletricidade. Porém, o crescimento do setor exigiu uma redução gradual desse incentivo: um novo marco legal, que entrou em vigor em janeiro de 2022, reduziu a proporção de geração solar distribuída que pode ser vendida à rede.

Essa mudança, segundo Pereira, “gerou a preocupação de que [a energia distribuída] perdesse a atratividade econômica, então muita gente correu para investir logo”. Quem instalou o sistema até um ano após a legislação entrar em vigor, em janeiro de 2022, pôde manter a regra anterior. 

“Em 2022, houve um crescimento maior do que o normal [no setor] por causa disso”, explicou Pereira, da Coppe/UFRJ.

Apesar da preocupação recente, Pereira diz que a geração fotovoltaica continua atrativa no país — e urgente para o planeta.

Metas climáticas ou redução de custos?

Durante a conferência climática COP28, em Dubai, no ano passado, mais de 100 países, incluindo o Brasil, se comprometeram a triplicar coletivamente a capacidade global de energia renovável até 2030.

As pressões globais para aumentar as ambições climáticas contribuem para a geração fotovoltaica, mas, segundo Pereira, o principal fator da aceleração desse mercado é o barateamento da produção. “O desenvolvimento tecnológico resultou em uma diminuição de custos, e isso favorece a expansão da energia solar”, disse o pesquisador.

Esse barateamento vem sendo proporcionado principalmente pela China, que concentrará mais de 80% da fabricação solar até 2026.

Nos últimos anos, os painéis solares estavam isentos de taxas de importação no Brasil — um subsídio revogado este ano quando um imposto de 10,8% foi introduzido. A isenção ajudou a tornar o equipamento solar chinês mais barato do que aquele produzido em solo nacional e contribuiu para o Brasil emergir como o segundo maior importador de painéis solares chineses.

Quase todos os módulos e inversores fotovoltaicos (que convertem a energia para uso em aparelhos eletrônicos) são comprados de empresas chinesas, diz Dornellas.

Essa importação ficou ainda mais vantajosa em 2023, quando o custo da fabricação de painéis solares na China caiu 42% em meio ao aumento da produção, conforme uma análise da empresa de pesquisa energética Wood Mackenzie. Com isso, caiu na mesma proporção o preço desses painéis no mercado brasileiro ano passado, segundo um levantamento da empresa de energia Portal Solar.

Painéis solares da Usina Fotovoltaica Coremas III, inaugurada em 2020, na Paraíba
Usina Fotovoltaica Coremas III, inaugurada em 2020, na Paraíba. Muitas comunidades do Nordeste vivem perto de usinas solares, mas não têm acesso à rede elétrica (Imagem: Alan Santos, Palácio do Planalto, CC BY)

Por outro lado, a vantagem na compra de produtos chineses representa uma barreira ao desenvolvimento da manufatura no Brasil. “Existe uma intenção de desenvolver uma indústria nacional, mas ela não vai ser colocada de pé em curto espaço de tempo”, acrescenta Dornellas. “Hoje, o que temos no Brasil ainda é de menor qualidade e maior preço”.

China investe em renováveis

Há pouco mais de uma década, a China direcionou seu olhar à indústria renovável com o objetivo, entre outros, de resolver sua poluição atmosférica. Com incentivos do governo, ela rapidamente dominou o mercado solar mundial: em 2012, o país já produzia 40% das células fotovoltaicas usadas nos painéis solares ao redor do mundo. A América Latina e o Caribe, com quem a China já mantinha fortes laços comerciais, se tornaram destinos importantes de tais investimentos.

Marco Aurélio Mendonça, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, explica que os investimentos chineses vieram ao encontro dos gargalos energéticos existentes. Deficiências na infraestrutura afetam a região, inclusive o Brasil.

Entre 2019 e 2022, empresas chinesas triplicaram sua capacidade solar na América Latina para 4,9 GW. E elas investem em toda a cadeia produtiva, diz Dornellas: a Trina Solar e a JA Solar importam e distribuem painéis solares e outros equipamentos; a China Three Gorges Corporation e a China General Nuclear Power Group investem na construção de usinas; a montadora de carros elétricos BYD hoje também produz módulos solares em sua fábrica em Campinas, São Paulo; e a StateGrid construirá uma linha de transmissão de 1.513 quilômetros para impulsionar as energias renováveis na região Nordeste. 

Hoje, o Nordeste lidera o mercado fotovoltaico do país, acumulando mais de 60% do total da potência autorizada a operar do sistema nacional (excluindo a geração distribuída), segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica. Além de contar com condições climáticas favoráveis, a região saiu na frente nessa corrida por adotar “várias políticas de incentivo nos estados, principalmente tributárias”, diz Dornellas.

Transição precisa ser justa e inclusiva

O Plano Nordeste Potência, iniciativa composta por quatro organizações ambientais, estima que as energias renováveis possam gerar dois milhões de novos empregos na região, que hoje amarga a menor renda per capita do país. 

“É um potencial de geração de renda muito grande”, disse Fabiana Couto, articuladora política do grupo. “Mas é preciso investir em capacitação, para que essa geração de renda seja efetiva” e para que os postos de trabalho sejam ocupados por pessoas da região, ressaltou.

Couto defende a geração distribuída por meio de cooperativas, o que pode trazer renda a comunidades, além de resolver gargalos na distribuição de locais remotos. Mas ela diz ser preciso estímulos governamentais para impulsionar essas iniciativas, ainda caras para as populações pobres. 

Trabalhadores instalam painéis solares fotovoltaicos em centro de capacitação profissional de Brasília
Especialistas afirmam que geração distribuída gerenciada por cooperativas poderia gerar empregos e renda para comunidades — sobretudo se governos oferecerem investimentos e capacitação (Imagem: Tony Winston / Agência Brasília, CC BY)

No sertão do estado da Paraíba, a Cooperativa Bem Viver adotou a geração solar em janeiro de 2023, com o apoio de organizações não-governamentais. Cada um dos 22 sócios recebe uma cota de energia, usada não apenas no consumo básico, como na agricultura familiar e até no armazenamento de água da chuva, que escorre de telhados solares até cisternas. 

A expansão da energia solar também precisa ser mais democrática, defende Fabiana Couto. Atualmente, há diversas comunidades cortadas por usinas solares que não têm acesso à energia gerada por elas. O formato ideal para os parques solares, diz a ativista, seria instalar junto a eles sistemas distribuídos para atender também às populações locais.  

Em janeiro, uma ampla rede — composta de organizações e associações comunitárias cujas terras foram afetadas por usinas renováveis no Nordeste — produziu um documento com mais de cem mecanismos e medidas de proteção para garantir uma transição energética mais justa e inclusiva. 

Entre as salvaguardas, o grupo cobra a realização da consulta prévia às comunidades; um zoneamento ecológico-econômico para evitar a sobreposição de usinas com áreas protegidas ou comunidades tradicionais; e critérios mais justos para o arrendamento das terras por empresas. 

“O valor pago por essas terras é um problema nos contratos, que têm sido feitos de forma muito desigual”, diz Couto, cuja organização apoiou a elaboração do documento.

A instalação de energia solar também seria uma solução possível para enfrentar o desequilíbrio energético da região amazônica. O Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) estima que três milhões de moradores da Amazônia Legal — região administrativa cortada pela bacia amazônica — não estejam conectados ao sistema elétrico nacional, e um milhão não tenha acesso à energia elétrica contínua. A saída para boa parte dessas pessoas tem sido recorrer a termelétricas ou geradores a diesel.

A energia solar trará desenvolvimento humano para a região, promovendo atividades econômicas que servem de opção ao garimpo e ao desmatamento
Ricardo Baitelo, consultor de projetos do Iema

O programa federal Luz Para Todos, relançado em agosto de 2023, visa atender, na Amazônia Legal, 226 mil novas unidades consumidoras – ou seja, casas, escolas, postos de saúde, centros comunitários, entre outros. Para as regiões mais remotas, a energia solar descentralizada é a opção mais viável, segundo especialistas, e deverá ser priorizada no programa do governo. Desde 2003, houve investimentos de R$ 24 bilhões nesse programa, com mais R$ 2,5 bilhões previstos para 2024.

Na Amazônia Legal, universalizar o acesso à energia solar exigirá até R$ 38 bilhões, segundo estimativas do Iema. “Isso trará um retorno para o desenvolvimento humano dessa região, promovendo atividades econômicas que servem de opção às predatórias, como garimpo e desmatamento”, defendeu Ricardo Baitelo, consultor de projetos do Iema.