Energia

Governo Boric aposta em hidrogênio verde no extremo sul do Chile

Enquanto o presidente chileno mira na expansão do setor de combustíveis alternativos, moradores de Magallanes temem nova ‘zona de sacrifício’
<p>Em 2 de maio, o presidente Gabriel Boric lançou o Plano de Ação para o Hidrogênio Verde do Chile. A nova estratégia estabeleceu a meta de produzir o hidrogênio verde mais barato do mundo até 2030 (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2pNPfzU">Rodrigo Saenz</a> / <a href="https://flickr.com/people/ministeriodeobraspublicas/">Ministerio de Obras Públicas de Chile</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/">CC BY-NC-SA</a>)</p>

Em 2 de maio, o presidente Gabriel Boric lançou o Plano de Ação para o Hidrogênio Verde do Chile. A nova estratégia estabeleceu a meta de produzir o hidrogênio verde mais barato do mundo até 2030 (Imagem: Rodrigo Saenz / Ministerio de Obras Públicas de Chile, CC BY-NC-SA)

Tudo o que o governo chileno tem dito sobre seus planos para desenvolver o setor de hidrogênio verde parece promissor. O Chile, com algumas das melhores condições naturais no mundo para produzir o combustível, estaria, assim, no caminho da descarbonização

Porém, apesar do entusiasmo da gestão do presidente Gabriel Boric, organizações locais alertam para a falta de transparência sobre esses planos, que avançam rapidamente.

Em maio, o governo Boric apresentou o Plano de Ação para o Hidrogênio Verde, após uma consulta a um comitê de especialistas. O documento define 80 salvaguardas socioambientais à medida que o setor se expande. Esse plano vem na esteira da estratégia para o hidrogênio verde lançada na administração anterior, de Sebastián Piñera (2018-2022).

O Chile tem três metas principais: produzir o hidrogênio verde mais barato do mundo até 2030; estar entre os três principais países exportadores até 2040; e, até 2025, oferecer cinco gigawatts de energia renovável para a eletrólise — processo de divisão molecular da água (H₂O) usado para extrair o hidrogênio de forma limpa.

O que é o hidrogênio verde?

Hidrogênio avança como opção de combustível que não emite gases poluentes quando queimado

⚪️ Boa parte desse gás, no entanto, é produzido a partir de combustíveis fósseis — e, nesse caso, é conhecido como hidrogênio cinza.

🔵 O hidrogênio azul também é produzido a partir de combustíveis fósseis, mas o processo usa tecnologia de captura e armazenamento de carbono, impedindo que as emissões de gases de efeito estufa resultantes cheguem à atmosfera.

🟢 O gás só pode ser classificado como hidrogênio verde se for produzido inteiramente a partir de fontes renováveis.

Um estudo de 2020 financiado pelo governo chileno calcula que o desenvolvimento do hidrogênio verde deve criar pelo menos 94 mil empregos até 2050. “Queremos nos posicionar como um dos produtores mais competitivos do mundo, sendo um dos principais exportadores até 2040”, disse Boric na apresentação do plano de ação.

Para o governo e a indústria, parte significativa desse potencial está no extremo sul do país, na região de Magallanes. Lá, a energia eólica poderia ser aproveitada para produzir até 13% do hidrogênio verde do mundo, conforme uma análise do Ministério da Energia do Chile.

A Associação de Produtores de Hidrogênio Verde de Magallanes (H2V Magallanes) informou que, até o momento, nove projetos na região já receberam investimentos.

Corrida do hidrogênio verde

Atualmente, a economia de Magallanes se baseia em criação de gado, indústria fóssil, turismo e piscicultura. A região, localizada a pouco mais de mil quilômetros da Antártida, também é uma das menos povoadas do país, fator que poderia favorecer o desenvolvimento do hidrogênio verde. O último censo, de 2017, registrou 166.533 habitantes em uma área de 132.297 quilômetros quadrados — pouco mais de uma pessoa por quilômetro quadrado. 

Anahí Urquiza, doutora em ciências naturais e membro do comitê estratégico do plano do governo chileno, explicou por que escolher Magallanes: “Há locais com um excelente potencial para a geração de energia renovável, mas também grandes territórios disponíveis para instalar parques eólicos ou painéis solares”. 

Os ventos em Magallanes também seriam bastante favoráveis ao projeto. “As usinas eólicas gerariam energia cerca de 60% do tempo”, disse Ana María Ruz, diretora-executiva do Comitê de Desenvolvimento da Indústria de Hidrogênio Verde, iniciativa da Corporação de Incentivo à Produção (Corfo), do governo chileno.

Primeiro ônibus movido a hidrogênio verde no Chile, lançado em 2023
Primeiro ônibus movido a hidrogênio verde no Chile, lançado em 2023. País tem apoio do governo e condições naturais propícias para avançar com produção do combustível limpo, mas não sem impactos (Imagem: Agustín Fernández / Ministério de Economia do Chile, CC BY-NC-ND)

Para atender às metas de hidrogênio verde da região, autoridades planejam adaptar o Terminal Marítimo Gregorio — refinaria de petróleo bruto mais austral do mundo, localizada no município de San Gregorio, na costa norte do Estreito de Magalhães. No ano passado, a Empresa Nacional de Petróleo do Chile e seis empresas internacionais de energia assinaram um acordo para avançar com o projeto.

Ainda em San Gregorio, a empresa de energia chileno-peruana Highly Innovative Fuels está construindo a usina eólica Haru Oni. Atualmente em fase-piloto, ela pode se tornar uma das primeiras usinas de eletrocombustíveis — ou e-combustíveis — em operação no mundo.

Aproveitando os ventos fortes e constantes do Estreito de Magalhães, suas turbinas devem alimentar os eletrolisadores, equipamentos que promovem a eletrólise. O hidrogênio verde resultante seria combinado com dióxido de carbono para produzir metanol sintético, base dos eletrocombustíveis. 

Outras empresas de Espanha, Bélgica, Itália, Estados Unidos e China estão interessadas em abrir fábricas no Chile, segundo a Corfo. Em outubro de 2023, o presidente Boric fez uma visita oficial à China durante o Terceiro Fórum da Iniciativa Cinturão e Rota, no qual discutiu-se temas como compartilhamento de tecnologia e inovação. Na delegação chilena, estava a diretora-geral da H2V Magallanes, María Isabel Muñoz.

O primeiro país a atingir a produção em massa e assinar um contrato com outro país dominará o mercado
Paulina Ramírez, pesquisadora do Centro de Energia da Universidade do Chile

Paulina Ramírez, pesquisadora do Centro de Energia da Universidade do Chile e que também atua no plano do governo, reforça a importância de o país se tornar um pioneiro no setor emergente: “Essa é uma oportunidade de tirar vantagem em um momento no qual a concorrência ainda está sendo definida”. 

Parte do desafio do hidrogênio verde, segundo Ramírez, é adaptar e desenvolver a infraestrutura e os equipamentos necessários. “No Chile, temos a oportunidade de estabelecer toda a cadeia de produção internamente”, acrescentou. 

Como qualquer grande aposta, os planos para o hidrogênio verde no Chile envolvem riscos: o sucesso dependerá não só do progresso local, mas também da demanda global. Para Ramírez, o pioneirismo vale a recompensa. “O primeiro país a atingir a produção em massa e assinar um contrato com outro país dominará o mercado”, avaliou.

Nova zona de sacrifício?

Enquanto o setor de hidrogênio verde cresce rapidamente em Magallanes, aumentam também as preocupações ambientais com a exploração do local. 

A baía e as áreas úmidas de San Gregorio abrigam imensa biodiversidade. As características das marés e dos pântanos de água doce tornam a área extremamente rica em algas e atraente para uma grande variedade de pássaros, incluindo o ganso-de-cabeça-ruiva, ameaçado de extinção. 

Organizações da sociedade civil, cientistas e especialistas temem que a produção de hidrogênio verde em grande escala ocupe grandes extensões de terra e transforme os ecossistemas locais em “zonas de sacrifício”.

A criação de zonas de sacrifício em nome da indústria é uma história antiga no Chile: na Baía de Quintero-Puchuncaví, na região central de Valparaíso, a industrialização incentivou a produção de termoeletricidade, produtos químicos e petróleo na década de 1960. Como resultado disso, a população e os ecossistemas locais tiveram sua saúde afetada pela poluição.

Outro motivo de preocupação é que as regiões chilenas destinadas ao desenvolvimento do hidrogênio verde não contam com as fontes de água doce necessárias. Isso motivou estratégias privadas de tratamento de água salgada. De acordo com um relatório recente do International PtX Hub, iniciativa de hidrogênio verde do governo da Alemanha, o setor de hidrogênio verde do Chile consumirá 107 milhões de metros cúbicos de água dessalinizada anualmente até 2030.

“As usinas de dessalinização também geram um grande impacto”, explicou Urquiza. Ele destaca que a grande escala do projeto de Magallanes exigiria também grandes portos, aumentaria o tráfego e provocaria uma intensa migração de trabalhadores para lá. 

Urquiza alerta que o hidrogênio verde não deve ser visto como uma salvação milagrosa, mas sim como uma alternativa a ser explorada. Se a geração de hidrogênio verde não for desenvolvida de forma sustentável, o setor emergente frustrará seus próprios objetivos, de acordo com a pesquisadora.

Lobby nas comunidades

“A verdade é que o setor de hidrogênio verde já está estabelecido na região de Magallanes”, destacou a bióloga marinha Gabriela Garrido, integrante do Painel Cidadão H2 Magallanes, rede local de organizações ambientais e científicas. 

Garrido está preocupada com as empresas já avançando com projetos na região. Segundo a bióloga, essas companhias vêm coletando informações e realizando monitoramentos nos últimos três anos, independentemente de esses projetos serem autorizados pelos órgãos competentes ou não.

Painéis solares na estrada entre Punta Arenas e Puerto Natales, no sul do Chile
Painéis solares na estrada entre Punta Arenas e Puerto Natales, no sul do Chile. A região de Magallanes é visada por sua área extensa e pelo grande potencial de energia renovável, mas ambientalistas temem que ela possa ser transformada em uma ‘zona de sacrifício’ (Imagem: Ashley Cooper / Alamy)

Em dezembro de 2023, uma coalizão de organizações chilenas enviou uma carta aberta ao presidente Boric pedindo que o governo não permita a criação de uma nova zona de sacrifício em Magallanes. A carta rejeitou “a forma na qual o governo e as empresas privadas estão promovendo o desenvolvimento da indústria do hidrogênio ‘verde’ em todo o país, sendo o caso da região de Magallanes e da Antártica chilena de extrema preocupação”.

Garrido afirmou que o setor “já pressiona o território em termos sociais, políticos e midiáticos, além de interferir em comunidades extremamente vulneráveis, onde é muito fácil chegar com uma pasta cheia de esperança e dinheiro”. 

Essa pressão se traduziu, segundo Garrido, pela presença de representantes das empresas em conselhos comunitários e comitês culturais ou oferecendo presentes às escolas, promovendo palestras e outros tipos de serviços. “Eles intervêm no tecido social”, resumiu.

Eles estão interferindo em comunidades extremamente vulneráveis, onde é fácil chegar com uma pasta cheia de esperança e dinheiro
Gabriela Garrido, membro do Painel Cidadão H2 Magallanes

O Painel Cidadão H2 Magallanes teme a presença dessas pessoas sobretudo em comunidades isoladas, geralmente negligenciadas pelas autoridades: a possibilidade de mais empregos e investimentos em serviços públicos costuma ser vista com bons olhos. “São comunidades com deficiências em termos de eletricidade, esgoto, conexão à internet, educação e saúde”, explicou Garrido. “Quando você vem com essas promessas, é muito fácil se encantar”.

A H2V Magallanes não respondeu aos questionamentos do Dialogue Earth. Já Ana María Ruiz, da Corfo, disse que o plano de hidrogênio verde conta com a ampla participação da população de Magallanes. Ela acrescentou que a indústria está crescendo de forma “planejada e ordenada”, levando em consideração aspectos socioambientais.

Para Urquiza, as ambições do Chile em relação ao hidrogênio verde são construídas sobre uma base incerta e que depende de tecnologias ainda em desenvolvimento: “Há vários problemas ainda não resolvidos para reduzir os custos da produção de energia, para torná-la viável e gerar um impacto positivo na transição energética em diferentes setores”.

“O problema é que essa forma de atacar a descarbonização ainda não é tecnologicamente viável”, avaliou Garrido. 

Conforme o Plano de Ação para o Hidrogênio Verde, o governo chileno estabelecerá parâmetros socioambientais e trabalhistas necessários para os projetos do setor até 2026. Antes do término de seu mandato, no fim de 2025, o presidente Boric espera que o país tenha de dez a 12 projetos de hidrogênio verde em operação.