Energia

Opinião: Transição energética justa deve contemplar pobreza e gênero

Com milhões ainda sem acesso regular à eletricidade na América Latina, a transição para energias renováveis precisa ser repensada com justiça e democracia, escreve pesquisador argentino
<p>Mulher prepara alimento em fogão a lenha improvisado com tijolos no município de Guapí, na costa oeste da Colômbia. Na América Latina e no Caribe, 11% da população ainda cozinha com algum tipo de biomassa. Isso traz sérios riscos à saúde — sobretudo entre mulheres e crianças (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2puePse">Joel Gonzalez</a> / <a href="https://flickr.com/people/197399771@N06">Presidencia de la República de Colombia</a>, <a href="https://creativecommons.org/publicdomain/mark/1.0/deed.pt-br">PDM</a>)</p>

Mulher prepara alimento em fogão a lenha improvisado com tijolos no município de Guapí, na costa oeste da Colômbia. Na América Latina e no Caribe, 11% da população ainda cozinha com algum tipo de biomassa. Isso traz sérios riscos à saúde — sobretudo entre mulheres e crianças (Imagem: Joel Gonzalez / Presidencia de la República de Colombia, PDM)

Uma transição energética pode ser verdadeiramente “justa” na América Latina quando milhões de pessoas ainda não têm acesso a serviços básicos de abastecimento de energia? 

Essa foi uma das questões pelas quais eu e minhas colegas Lira Luz Benites Lázaro e Sigrid de Aquino Neiva decidimos editar o livro Energy Poverty, Justice and Gender in Latin America (“Pobreza energética, justiça e gênero na América Latina”, sem edição em português).

A obra gira em torno de três eixos principais: o problema multidimensional da pobreza energética; as contradições entre os impactos e os benefícios da justiça energética; e as conexões entre pobreza energética, justiça e desigualdades de gênero. Ao longo de 14 capítulos escritos por 35 autores, buscamos oferecer uma análise crítica das desigualdades energéticas na região, destacando os limites das atuais políticas públicas e a urgência de estabelecer um novo papel para a América Latina nos debates globais sobre energia e justiça.

Embora a Agência Internacional de Energia estime que 97% da população da América Latina e do Caribe tenha acesso à eletricidade, esse número esconde uma realidade muito mais complexa.

Quase 17 milhões de pessoas na região, principalmente em áreas rurais e comunidades indígenas, ainda não têm acesso formal à eletricidade. Já para aqueles que estão conectados à rede, o acesso muitas vezes é precário, com apagões, tarifas abusivas e uma forte dependência de fontes poluentes. Na Bolívia e no Peru, por exemplo, o custo da eletricidade para as famílias mais pobres pode representar até 20% de sua renda mensal

Além disso, cerca de 75 milhões de latino-americanos e caribenhos ainda cozinham com biomassa — ou seja, 11% da população. Isso traz sérios riscos à saúde, com um efeito desproporcional sobre mulheres e crianças. Enquanto alguns países já se aproximam do acesso universal a fontes de energia mais seguras para cozinhar, outros têm grande parte de sua população dependentes de lenha, carvão e outras formas de biomassa: nesse grupo, estão Haiti (95%), Honduras (50%), Guatemala (50%), México (15%), Peru (15%) e Bolívia (12%).

Na nossa visão, a pobreza energética não se resolve apenas com investimentos em infraestrutura; trata-se do reflexo das desigualdades estruturais de nossas sociedades.

Ao longo das pesquisas reunidas no livro, descobrimos que, na América Latina, as mulheres de áreas rurais são as que mais sofrem com as consequências da pobreza energética: elas passam horas coletando lenha, enfrentam os efeitos da poluição em casa e correm maiores riscos de violência em espaços sem iluminação adequada. A relação entre energia e gênero é inegável: quando a energia é escassa, as desigualdades se aprofundam.

O discurso dominante sobre a transição energética na região tem sido fortemente influenciado pela agenda do Norte Global e pelos interesses de grandes corporações. As energias renováveis vêm sendo promovidas, mas pouco se questiona quem se beneficia com esses investimentos. No Brasil e México, por exemplo, projetos eólicos geram tensões com comunidades locais. No caso da exploração do lítio em países como Argentina, Chile e Bolívia, a extração responde essencialmente à demanda dos mercados internacionais e de multinacionais que buscam fortalecer suas cadeias produtivas. Trata-se de uma atividade sem uma estratégia regional de desenvolvimento sustentável nem geração de empregos de qualidade.

Reverter essa tendência exige articular as transições energéticas na América Latina a políticas industriais que incentivem a produção local de tecnologias, o fortalecimento das capacidades nacionais e a criação de empregos qualificados. É isso que está em jogo na atual guerra tarifária dos Estados Unidos sob o comando de Donald Trump, que tem a China como principal alvo, mas também ameaça o comércio e a soberania de Brasil, Panamá, México e outros países da região. De fato, sem uma visão independente de desenvolvimento produtivo, a transição verde corre o risco de perpetuar a dependência tecnológica e econômica no Sul Global.

Carpinteiro trabalha em uma oficina na cidade de Guapí, oeste da Colômbia
Carpinteiro trabalha em uma oficina na cidade de Guapí, oeste da Colômbia. Quase 17 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe vivem sem acesso regular à rede elétrica, sobretudo em comunidades rurais e indígenas (Imagem: Joel Gonzalez / Presidencia de la República de Colombia, PDM)

A América Latina precisa construir uma agenda energética que desafie essa lógica e aprofunde o debate sobre justiça energética. Isso significa não apenas garantir o acesso universal à energia, mas também repensar a governança do setor. A academia tem um papel fundamental nesse processo: a ciência deve identificar os mecanismos de exclusão, visibilizar seus efeitos e propor alternativas. 

Há muitas perguntas urgentes que precisam de resposta: como podemos garantir que as comunidades participem do planejamento de grandes projetos de energia? Quais serão os impactos da transição energética no mercado de trabalho e na estrutura produtiva regional? De que forma cooperativas de energia e modelos de gestão descentralizada podem garantir um acesso mais justo às realidades locais?

O tripé formado por pobreza energética, justiça e gênero na América Latina reforça que a transição energética vai além de um processo técnico: é, antes de tudo, um processo político. Como tal, o livro destaca dimensões estruturais para a experiência energética latino-americana e que merecem atenção especial:

Dicotomia urbano-rural: apesar dos avanços, muitas áreas rurais e comunidades indígenas continuam excluídas do acesso a serviços formais de energia, afetando a qualidade do abastecimento e perpetuando a pobreza energética.

Impactos da queima de biomassa na saúde: a dependência de fontes de energia tradicionais, como lenha ou carvão vegetal, tem graves efeitos na saúde, especialmente pela poluição do ar. Embora essa relação seja conhecida, ainda faltam evidências empíricas que mostrem suas especificidades regionais.

Altos custos da energia: em contextos com acesso limitado à energia convencional, os altos custos constituem uma barreira estrutural que limita o acesso das comunidades vulneráveis às fontes formais de energia. Isso exige uma revisão do marco regulatório sob o princípio de que a energia é um direito humano.

Disparidades de gênero: as desigualdades de gênero persistem no acesso à energia, na participação econômica e política das mulheres e nos impactos desproporcionais da pobreza energética. Em muitos setores, a manutenção dos papéis de gênero tradicionais limitam a justiça social.

Nosso livro busca contribuir para a construção de uma transição energética justa, democrática e profundamente enraizada nas necessidades e aspirações de nossa região. Sem justiça social e soberania energética, não haverá transição justa possível para a América Latina.

O livro Energy Poverty, Justice and Gender in Latin America, editado por Lira Luz Benites Lazaro, Sigrid de Aquino Neiva e Esteban Serrani, foi publicado pela Springer em janeiro de 2025.

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