Na década de 2010, a Venezuela parecia dar um salto gigantesco rumo à descarbonização. As emissões de dióxido de carbono de combustíveis fósseis e atividades industriais passaram de 198 milhões de toneladas anuais em 2013 para cerca de 62 milhões em 2020, menos de um terço do original, segundo dados do relatório Global Carbon Budget.
Porém, essa queda vertiginosa não foi exatamente um sinal de boa governança climática.
“Houve uma redução dos gases com efeito de estufa, mas não teve relação com políticas públicas, e sim com uma queda na produção de petróleo — agravada por novas sanções dos Estados Unidos em 2019”, explicou a economista Christi Rangel Guerrero, pesquisadora da organização anticorrupção Transparência Venezuela.
Alguns embargos dizem respeito à estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), proibida de exportar petróleo bruto para os EUA e de comprar produtos de empresas norte-americanas para a produção de gasolina. As sanções decretadas pelo Departamento do Tesouro dos EUA contribuíram para que a produção petrolífera venezuelana — já afetada pela queda de investimentos e perda de pessoal qualificado — despencasse de vez.
Dados da Organização dos Países Exportadores de Petróleo indicam que a produção diária de petróleo na Venezuela também caiu para um terço na última década: foram produzidos 2,32 milhões de barris em dezembro de 2013, contra 786 mil no mesmo mês de 2023.
Ainda assim, não há qualquer sinal de que a dependência petrolífera vá diminuir no curto prazo: o governo de Nicolás Maduro busca novas parcerias internacionais para o setor; os projetos de lei sobre mudanças climáticas estão parados há anos no Congresso; e a população e as empresas recorrem a geradores a diesel ou gás diante dos recorrentes apagões no país.
Primeiro desafio: usinas termelétricas
Rangel vive em Mérida, cidade andina no oeste da Venezuela conhecida por suas paisagens montanhosas — e também pelos constantes cortes de energia elétrica. A população local enfrenta apagões que variam de quatro a 12 horas devido a problemas de infraestrutura — agravados pela corrupção, com licitações obscuras e desvios de recursos.
Os cortes de energia em Mérida ocorrem com frequência há mais de uma década. Quase US$ 40 bilhões foram investidos em novos projetos para melhorar a rede elétrica. Porém, o superfaturamento das obras foi de 190%, e apenas quatro dos 42 projetos foram licitados.
À medida que caiu a produção de petróleo na Venezuela, caiu também o investimento estatal para fornecer eletricidade.
Para superar os apagões quase diários, muitas empresas e famílias compram geradores termelétricos alimentados por combustíveis fósseis — prática comum em outros estados andinos, como Carabobo e Lara, onde se concentra a maior parte das indústrias do país.
Um levantamento recente com 228 empresas associadas à Confederação Venezuelana de Indústrias concluiu que 80,5% delas usavam geradores a gasolina ou diesel em 2023; outras 9% usavam geradores a gás.
Embora os dados ajudem a entender como a indústria preenche as lacunas energéticas do país, calcular a pegada de carbono gerada por esse fenômeno é difícil.
“Para obter um número mais preciso [do uso e consumo de combustível pelos geradores], seria necessário coletar informações”, disse Juan Carlos Sánchez, consultor ambiental venezuelano e coautor do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em conversa com o Dialogue Earth. Porém, o consumo desses geradores nos setores privado e público ainda é desconhecido.
Embora dominada pela energia hidrelétrica, a matriz elétrica venezuelana agora vê um aumento da geração térmica alimentada por combustíveis fósseis.
Conforme um documento do governo venezuelano apresentado à ONU, o país produziu mais de 60 mil gigawatts-hora (GWh) de eletricidade a partir de hidrelétricas em 2001, enquanto que a geração por fontes fósseis atingiu 28 mil GWh no mesmo ano.
O segundo e último relatório sobre o tema, apresentado em 2017, mostrou que, em 2010, os combustíveis fósseis representavam quase 40 mil GWh. Ao longo daquela década, a participação da energia termelétrica na produção de eletricidade passou de 25% para 34%.
Os dois documentos mostram ainda que a fatia das outras fontes renováveis, como a energia eólica e solar, manteve o mesmo patamar de menos de 1% na geração elétrica.
Os desafios enfrentados pela Venezuela desde 2010 trouxeram, no entanto, mudanças drásticas ao seu setor energético: dados do think tank energético Ember mostram que a produção de eletricidade caiu cerca de um terço desde seu ápice em 2013. Junto à queda da produção de petróleo e gás, a produção hidrelétrica também diminuiu, embora ainda tenha representado mais de 77% da geração elétrica em 2022.
O consumo de eletricidade no país também caiu na última década — em parte, devido à migração de quase oito milhões de venezuelanos para outros países.
A diminuição do uso de derivados do petróleo para produzir eletricidade ainda é um enorme obstáculo para que o país avance com sua transição energética — mas não é o único.
PDVSA, a âncora financeira
Assim como outros países latino-americanos, a Venezuela precisa encontrar maneiras de financiar sua transição energética. Além de modernizar a geração, transmissão e distribuição de eletricidade, o país também deve enfrentar o peso de sua tradição petrolífera, explicou Sánchez.
“As finanças públicas são altamente dependentes das receitas do petróleo”, alertou ele, “e isso atrasa qualquer projeto para substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis, porque a hegemonia dos grupos de interesse petrolíferos persiste”.
O governo Maduro espera que as receitas da PDVSA supram 58% do orçamento público em 2024, segundo informações da agência Reuters.
Em 2023, o Instituto de Governança de Recursos Naturais analisou 21 petrolíferas estatais do mundo todo. O levantamento concluiu que a PDVSA não apresentou planos de descarbonização ou investimentos em energia limpa. Além dela, a LNOC, da Líbia, a GNPC, de Gana, e a Pemex, do México, são as únicas que não mencionaram intenções de investir em energias renováveis, segundo o documento.
Além disso, a análise ressaltou que a PDVSA também “não considera relevantes os padrões ESG em seus planos de negócios”. Seu relatório financeiro e ambiental mais recente data de 2016 e inclui poucas informações para avaliar seu papel na resposta às mudanças climáticas.
No mundo corporativo, as empresas sintonizadas com os padrões ambientais, sociais e de governança são aquelas que, em alguma medida, respeitam os direitos do meio ambiente e de comunidades tradicionais.
O princípio por trás dos padrões ESG é que as empresas não existem apenas para gerar lucros, mas têm a responsabilidade de proteger o meio ambiente, priorizar o bem-estar humano e promover uma gestão ética.
A apresentação dos dados ESG varia conforme cada empresa, mas as informações relevantes geralmente são incluídas em relatórios anuais ou apresentadas em relatórios de sustentabilidade separados.
Rangel coordenou uma pesquisa da Transparência Venezuela sobre o desempenho da PDVSA nos critérios ESG e afirma ter encontrado “dados genéricos e parciais” em 13% dos indicadores analisados. “A empresa diz que as emissões de dióxido de carbono e metano estão abaixo do normal, mas não diz exatamente quanto”, criticou a pesquisadora.
Sem planos públicos para a descarbonização, nem relatórios ESG recentes, o atual foco da PDVSA é renegociar seus acordos com as grandes petrolíferas. A empresa espera impulsionar suas operações no Cinturão de Orinoco, rico em petróleo (e biodiversidade) e retomar a produção de mais de um milhão de barris diários.
Os acordos recentes da PDVSA incluem parcerias com a espanhola Repsol, a francesa Maurel & Prom e a Chevron, dos EUA — por enquanto, autorizada a manter negócios com a estatal venezuelana apesar das sanções do governo de Joe Biden.
A PDVSA também busca parcerias com petrolíferas chinesas. No fim de janeiro, o embaixador chinês em Caracas, Lan Hu, reuniu-se com o então presidente da PDVSA, Pedro Tellechea — agora ministro do Petróleo na Venezuela. Tellechea disse que a reunião serviu para analisar a “evolução positiva da cooperação energética bilateral” e avaliar “novas oportunidades de cooperação”. Não foram divulgados detalhes ou novos acordos.
A China é o principal comprador do petróleo bruto venezuelano. Conforme documentos internos da PDVSA e dados da Bolsa de Valores de Londres obtidos pela Reuters, a média diária das exportações de petróleo bruto venezuelano para a China foi de 695.192 barris em 2023. A China recebeu 65% dos embarques de petróleo venezuelano naquele ano.
Leis climáticas em andamento
O marco jurídico da transição energética na Venezuela também é bastante incerto. Um projeto de lei sobre energias renováveis e alternativas aguarda a discussão no Congresso desde 2021. O projeto de lei poderia abrir portas ao investimento privado em energias renováveis, mas ainda não passou pelo primeiro debate em plenário.
Talvez o único avanço concreto seja o estabelecimento do Registro Nacional de Certificação de Energias Alternativas da Venezuela. Apresentado junto ao projeto de lei, a iniciativa certifica o trabalho de profissionais e empresas de energia da indústria renovável.
Devemos formar uma aliança da sociedade civil para a transição energética, porque não estamos falando apenas em parar a produção de petróleoAntonio De Lisio, geógrafo e pesquisador da Universidade Central da Venezuela
Outros projetos de lei seguem paralisados na Venezuela, como a regulamentação do hidrogênio verde. Esses projetos, segundo analistas, são fundamentais para se obter financiamento verde internacional e indispensáveis a um país que tenta sobreviver após uma década de colapso econômico.
Rangel lembra que o Banco Mundial tem títulos verdes, o Banco Interamericano de Desenvolvimento tem um fundo para a Amazônia, e o Banco de Desenvolvimento da América Latina tem uma iniciativa de mercado de carbono. Porém, diz ela, “a Venezuela não apresentou nem um único projeto para essas alternativas de financiamento”.
Já Antonio De Lisio cobra um debate mais amplo e profundo no país, incluindo setores como o transporte público: “O problema da transição energética não deve se resumir à PDVSA. Devemos formar uma aliança da sociedade civil para a transição energética, porque não estamos falando apenas em parar a produção de petróleo”.