Energia

‘Vale do Lítio’: Novo polo da mineração do Brasil desperta preocupações locais

Exploração avança em Minas Gerais, estimulada pela demanda global e flexibilização de normas. Comunidades até agora sentem seus impactos – mas não seus benefícios
<p>Instalações de mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. O país pode abrigar entre 1% e 8% das reservas globais do mineral, segundo diferentes estimativas (Imagem: Gil Leonardi / Imprensa MG)</p>

Instalações de mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. O país pode abrigar entre 1% e 8% das reservas globais do mineral, segundo diferentes estimativas (Imagem: Gil Leonardi / Imprensa MG)

A exploração do lítio acelera no Brasil na esteira de flexibilizações regulatórias no país e de uma crescente demanda global por esse mineral crucial à transição energética. 

Com a popularização dos veículos elétricos, a demanda mundial de lítio, essencial para suas baterias, pode crescer até 15 vezes em 2040, segundo a Agência Internacional de Energia. De olho nessa alta procura, o governo do então presidente Jair Bolsonaro emitiu um decreto em julho de 2022 eliminando as restrições à sua importação e exportação.

Antes disso, uma norma restringia o comércio exterior do mineral para proteger a indústria nuclear brasileira. Na época, o lítio era usado principalmente em reatores nucleares. 

A abertura do Brasil ao comércio exterior do lítio tem atraído mineradoras do país e de fora. Os pedidos feitos ao governo federal para pesquisar e explorar o mineral em Minas Gerais —  onde estão localizados mais de 80% dos depósitos de lítio conhecidos do Brasil — saltaram quase 18 vezes, de 45 em 2021 para 851 em 2023, segundo levantamento da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, visto pelo Dialogue Earth.  

No entanto, as exportações do mineral ocorrem sem agregar valor de modo a favorecer o desenvolvimento de uma cadeia produtiva interna, dizem analistas. Com o aumento da demanda, acrescentam eles, chegam também impactos socioambientais, principalmente em comunidades cujos modos de vida tradicionais estão sendo erodidos.

Sonhos de exploração do lítio

As estimativas para as reservas de lítio do Brasil variam bastante. Em 2017, o Serviço Geológico Brasileiro, ligado ao Ministério de Minas e Energia, projetou que o país pudesse abrigar 8% das reservas globais de lítio. Mas, este ano, o Serviço Geológico Americano avaliou que o Brasil tem menos de 1% dos estoques mundiais. 

Essa estimativa é bem menor do que a dos vizinhos latino-americanos do chamado Triângulo do Lítio: Bolívia, Argentina e Chile abrigam mais de 50% das reservas mundiais do mineral. Mas apesar disso, autoridades brasileiras alimentam grandes ambições para suas reservas.

Governador de Minas Gerais, Romeu Zema, tira selfie com primeiro lote de lítio brasileiro enviado para exportação
Governador de Minas Gerais, Romeu Zema, tira selfie com primeiro lote de lítio brasileiro enviado para exportação. Em julho de 2023, 15 mil toneladas do mineral foram embarcadas no porto de Vitória, Espírito Santo (Imagem: Cristiano Machado / Imprensa MG)

Em maio de 2023, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, anunciou a intenção de desenvolver um polo tecnológico como parte do projeto “Vale do Lítio”. Ele será criado no Vale do Jequitinhonha, a nordeste do estado, onde está a maior parte das reservas conhecidas no país e pode se tornar alvo da exploração massiva de minério de ferro

A região é às vezes apelidada de “Vale da Fome”, devido à privação socioeconômica de sua população majoritariamente rural. Zema, que lançou o programa em Nova York em um movimento para atrair investidores estrangeiros, disse almejar que a região “se transforme no vale da tecnologia para a produção de baterias e demais produtos de valor agregado”.

Ao Dialogue Earth, o governo de Minas Gerais acrescentou ter formado um grupo de trabalho com órgãos do Executivo e entidades privadas para desenvolver o programa. Seu objetivo é valorizar a região, com a expectativa de criar mais de dez mil empregos e gerar renda em 14 cidades, com um investimento que pode chegar a R$ 30 bilhões até 2030.

Várias empresas já operam ou querem operar em Minas Gerais. A Companhia Brasileira de Lítio (CBL) explora lítio nos municípios de Araçuaí e Itinga desde 1991, e a canadense Sigma Lithium opera nos mesmos municípios desde abril de 2023. Em Nazareno, na região central, a holandesa AMG extrai lítio a partir de rejeitos da mineração e constrói uma planta prevista para ser inaugurada em 2026. 

Enquanto isso, outras empresas estrangeiras aguardam a liberação do governo federal para desenvolverem seus projetos no Vale do Jequitinhonha, entre elas a Lithium Ionic, do Canadá, Atlas Lítio Brasil, subsidiária da Atlas Lithium, dos Estados Unidos, e a Latin Resources Limited, da Austrália. Há pedidos de prospecção em outros estados.

Planejamento questionável

Alguns estudiosos criticam o modo como a exploração acontece, que ocorre sem impulsionar a indústria brasileira. 

“No Jequitinhonha, mesmo com forte apoio do governo do estado, não há nenhuma iniciativa para agregar valor [à produção]”, afirmou Tádzio Peters Coelho, professor de ciências sociais que pesquisa o lítio pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). 

Segundo o pesquisador, o governo estadual dá apenas apoio político à produção, explorando a ideia de pobreza e atraso para pregar uma perspectiva de desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha. “Mas é só uma maneira de facilitar a aprovação de projetos sem grandes obstáculos”, disse Peters Coelho. 

Por suas reservas escassas e papel tecnológico central, o lítio é chamado de mineral crítico ou estratégico. No Brasil, a exploração é mal planejada, segundo Marina Oliveira, que pesquisa lítio e desigualdades na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).

“Não há uma política sólida que beneficie toda a cadeia produtiva”, afirmou Oliveira. Ela sugere que o governo considere “a contribuição da tecnologia, a criação de empregos qualificados, a produção de carros elétricos” de forma a promover a industrialização, mas também respeitar os habitantes locais.

Esse modelo de desenvolvimento da indústria regional, diz Oliveira, seria bem diferente de “apenas extrair o lítio e vendê-lo muito barato”, como ocorre hoje. Segundo ela, o projeto do Vale do Lítio serve apenas para atrair investidores.

Empresas estrangeiras avançam no Brasil

A lista de interessados ​​no lítio do Brasil inclui grandes nomes da indústria global de veículos elétricos (VEs). Em janeiro, o jornal britânico Financial Times noticiou que a chinesa BYD, maior fabricante global de carros elétricos, travou negociações sobre um “possível acordo de fornecimento, joint venture ou aquisição” das operações brasileiras da Sigma, que não se manifestou sobre o assunto. A montadora alemã Volkswagen expressou interesse parecido, tentando reduzir a dependência da China para componentes de seus VEs. 

Na última edição do Web Summit, evento anual de tecnologia realizado em abril no Rio de Janeiro, o presidente da BYD Brasil, Tyler Li, manifestou o desejo da empresa de assegurar uma cadeia de produção integrada para oferecer preços menores a consumidores locais — hoje, o alto custo dos VEs é um dos principais gargalos desse mercado. 

“No Brasil, temos os melhores benefícios, temos quase tudo; temos lítio, ferro, alumínio, todas as matérias-primas”, disse Tyler em um painel sobre o crescimento da indústria de veículos elétricos no país. “Isso é um bom incentivo para construirmos toda a cadeia de suprimentos no Brasil. Isso poderia reduzir muito os custos”.

Como parte dessa estratégia, a BYD constrói em Camaçari, na Bahia, sua maior fábrica de veículos elétricos fora da Ásia, prevista para entrar em operação no início de 2025. Esse é um dos investimentos que pode tornar o Brasil um polo do setor para a América Latina. 

Para Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, a tendência pode trazer benefícios ao país: “Isso teria impacto direto na indústria, na geração de empregos e na redução da dependência externa, melhorando o abastecimento de peças”.

Poeira, barulho e rachaduras

No Vale do Jequitinhonha, a Sigma cunhou o rótulo “lítio verde”, declarando em seu site explorar um produto “zero carbono, zero energia a carvão, zero barragem de rejeitos, zero utilização de água potável e zero uso de produtos químicos perigosos”. Porém, moradores discordam.

Diferentemente da extração de lítio de piscinas de salmoura vistas no Triângulo do Lítio, os depósitos do Brasil são encontrados principalmente em rocha dura, exigindo escavação e detonação convencionais. 

Às margens do rio Jequitinhonha, moradores da aldeia Cinta Vermelha de Jundiba, das etnias Pankararu e Pataxó, sentem as consequências de tais processos. A aldeia está a cerca de dez quilômetros da mina Grota do Cirilo, onde a Sigma passou a extrair lítio há pouco mais de um ano — distância curta para evitar poeira, barulho e poluição. 

“Quando explodem dinamites, o ar fica contaminado; há intensa emissão de poeira, e os poluentes caminham através do vento; também há vibrações”, lista a líder local Cleonice Pankararu.

Com a atividade minerária, “há a destruição dos biomas Cerrado e Caatinga, há um impacto social e econômico, com mudança de paisagem, mudança de nossa cultura, mudança de nossa religiosidade”, ela acrescentou. “Nossos rituais dependem de um ambiente equilibrado”. 

Pankararu nota também mudanças urbanas: a violência — como agressões, furtos e violência sexual — aumentou após a chegada de trabalhadores. Os preços em Araçuaí subiram, e o quartinho que Pankararu alugava na cidade para os filhos dormirem durante a semana na escola já não cabe no orçamento.

Instalações de mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais
Planta de processamento de lítio no Vale do Jequitinhonha. Depósitos brasileiros são encontrados principalmente em rochas duras, exigindo escavação e detonação convencionais (Imagem: Gil Leonardi / Imprensa MG)

Aline Gomes Ruas, do Movimento dos Atingidos por Barragens em Araçuaí, conta que a atividade da Sigma causou instabilidades na comunidade de Piauí Poço Dantas, em Itinga, a oito quilômetros ao sul da mina. Agora, eles tentam aprender a conviver com tantos impactos. 

“Há mais de um ano, a comunidade não sabe que rumo tomar, em meio a tanto barulho e poeira”, disse Gomes Ruas. “O pó de pedra cai no rio, que não é mais o mesmo, assim como nas vegetações e nos cultivos. O que se produzia, já não se produz”.

Ela explica ainda que pessoas da comunidade hoje sofrem com problemas respiratórios decorrentes da poeira e que as explosões causam rachaduras em suas casas. Mas a Sigma, diz ela, não reconhece sua responsabilidade. A empresa não comentou sobre as denúncias.

Em Nazareno, os impactos da exploração de lítio pela AMG parecem com os da mineração tradicional, disse Peters Coelho, da UFV. Ou seja, a produção do mineral requer a construção de barragens, que trazem alagamentos a áreas amplas e potenciais riscos de rompimento, além de demandar locais para descartar materiais poluentes. Questionada, a AMG também não se manifestou.  

Teme-se ainda efeitos negativos em outras cidades do estado. Luiz Paulo Guimarães, do Movimento Soberania Popular da Mineração, se diz preocupado com o município de Salinas, famoso pela produção de cachaça, onde a empresa australiana Latin Resources Limited quer investir em duas áreas.

“Esses projetos vão destruir o manancial, acabar com a disponibilidade de água e inviabilizar a produção de cachaça”, afirmou Guimarães. “A cidade conhecida como capital da cachaça vai perder sua identidade, sua produção e seu potencial econômico, em troca de uma exploração que traz prejuízos muito maiores do que benefícios”.

Governo prepara plano para lítio

O governo federal diz estar preparando um plano interministerial para explorar o lítio brasileiro de forma a minimizar os impactos locais e compartilhar os benefícios com as comunidades. Em um seminário em abril, Jarbas Vieira da Silva, coordenador das Mesas de Diálogos da Secretaria-Geral da Presidência, explicou que o programa começou a ser pensado após uma missão governamental passar por comunidades afetadas do Vale do Jequitinhonha.

“Vai existir um movimento de concertação do poder público com as empresas para construirmos um sistema de governança”, garantiu Vieira da Silva. “Isso já está sendo costurado, construído e dialogado internamente”.

Concentrado de lítio produzido pela Sigma em Minas Gerais.
Concentrado de lítio produzido pela Sigma em Minas Gerais. O governo brasileiro anunciou planos para ampliar a oferta de minerais estratégicos, mas comunidades temem que isso agrave os impactos ambientais (Imagem: Gil Leonardi / Imprensa MG)

Ao Dialogue Earth, o Ministério de Minas e Energia acrescentou que lançará uma iniciativa para ampliar a oferta de minerais estratégicos como o lítio, visando à transição energética. O plano incluiria o desenvolvimento de uma indústria para processar esses minerais internamente e incluí-los na cadeia de baterias, turbinas eólicas e motores elétricos.

O ministério destacou também que vai atrair investimentos, formar parcerias, incentivar o desenvolvimento tecnológico, principalmente no processamento mineral, além de capacitar mão de obra e desenvolver a infraestrutura necessária.

Mas, enquanto os planos do governo federal e de Minas Gerais não saem do papel, comunidades lidam com os impactos locais, e a exploração segue sem uma estratégia sólida, diz Marina Oliveira, da PUC-Minas. 

“O receio é nos restringirmos ao processo de extração sem avançar no desenvolvimento e acabarmos reforçando desigualdades, socializando impactos, enquanto lucros e benefícios vão para os desenvolvedores”, conclui a pesquisadora.