Durante anos, Arnaldo Carneiro trabalhou em uma grande estratégia para conter o desmatamento no Brasil.
Com estudos e investigações, ele demonstrava a importadores da soja brasileira sua responsabilidade na degradação do meio ambiente, e depois implorava que eles comprassem apenas de produtores rurais que pudessem garantir desmatamento zero.
A estratégia sempre recebeu mais atenção na Europa, por mais que seu impacto tenha sido limitado. Em 2015, sete países europeus assinaram a Declaração de Amsterdã para se comprometer a apoiar iniciativas do setor privado contra o desmatamento em suas cadeias produtivas.
“A Europa é um mercado um pouco mais consciente,” diz Carneiro, que é diretor da ONG Global Canopy. “[Eles estão] preocupados com impactos que geram na ponta.”
Mas a estratégia de Carneiro acaba de sofrer um duro golpe: a guerra fiscal entre a China e os Estados Unidos.
O impacto do comércio internacional
A guerra fiscal impulsionou uma dança das cadeiras entre compradores e produtores de soja, e pode mudar significativamente como os mercados internacionais pressionam por menos desmatamento no Brasil.
Compradores chineses cada vez mais fogem para o mercado brasileiro, para evitar as altas taxas impostas à soja americana. Enquanto isso, europeus debandaram para os Estados Unidos, onde despencaram os preços da soja, que inunduou o mercado ao perder ávidos clientes chineses.
Historicamente a China absorvia cerca de um terço da produção de soja dos Estados Unidos. A população chinesa, de poder aquisitivo cada vez mais alto, quer comer melhor, e a soja é parte importante da equação para atender a esta demanda. Ela é necessária para alimentar porcos em fazendas chinesas.
Em junho deste ano, 37% da soja importada pelos europeus já vinham dos Estados Unidos, um aumento explosivo frente aos 9% registrados no ano passado. Enquanto isso, no Brasil, o volume de soja exportado para a China já cresceu 15% de janeiro a setembro, comparado a 2017, segundo números do governo brasileiro. A demanda foi tão alta que os estoques brasileiros estão quase desabastecidos.
O resultado é uma tendência de concentração ainda maior do mercado comprador da soja brasileira na China, onde as empresas estão menos preocupado com as consequências ambientais de sua demanda – e a estratégia de Carneiro tem menos poder de fogo.
“A China tem uma preocupação muito grande com a segurança alimentar da sua população,” explica Carneiro. Ele conversa regularmente com empresas chinesas sobre compromissos contra o desmatamento. “Estão muito menos preocupados com problemas ambientais de outros países. O que eles não querem é estarem envolvidos com qualquer ilegalidade.”
Afinal, o desmatamento de vegetação natural não é necessariamente ilegal. Segundo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola, ou Imaflora, há 103 milhões de hectares de vegetação natural desprotegida no Brasil – ou seja, que podem ser desmatados legalmente.
O esforço de Carneiro era exatamente convencer os europeus a não desmatarem sequer o que era considerado legal pelo governo brasileiro. Mas com os chineses é diferente.
“O europeu quer que a gente entregue desmatamento zero nas commodities,” explica André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que inclui traders importantes, como a Bunge e a Cargill. “O chinês não vai exigir da gente mais do que a gente está entregando.”
A diferença de padrão é preocupante para ambientalistas brasileiros, mas há organizações lutando para que isto mude. Rose Niu, que lidera a área de conservação do Paulson Institute, em Washington, reconhece a diferença entre os padrões europeus e chineses, mas diz que há um esforço para transformar esta realidade.
“Nos últimos três anos, várias organizações (inclusive o nosso instituto) têm trabalho com traders de soja para que a China adote requerimentos ambientais mais rígidos no comércio com países da América do Sul,” disse Niu, em um e-mail. “Eu espero que os traders na China façam um trabalho tão bom quanto os europeus em um futuro próximo.”
Demanda pressiona expansão da produção
A guerra também animou produtores brasileiros a aumentar sua produção, de forma a absorver o máximo do excesso de demanda. E esta pressão pode resultar em mais desmatamento. Afinal, o aumento da produção deve ocorrer também a partir da expansão da área plantada.
O Brasil está prestes a desbancar os Estados Unidos como o maior produtor de soja do mundo. São 33 milhões de hectares, ou uma Malásia de plantações de soja – quase o triplo do que havia há duas décadas. Mas o Brasil não é o único país da região cuja produção está pressionada. Argentina e Paraguai também são grandes produtores de soja. Em 2016, os três países produziram juntos quase metade da soja consumida pelo mundo.
Pedro Henriques Pereira, assessor em Inteligência Comercial da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) já identificou um frisson no mercado para expansão da produção de soja. A confederação, no entanto, tem recomendado cautela a produtores que querem investir de olho na demanda chinesa.
“Esse movimento cria bastante incerteza. Ele garante um aumento no curto prazo, mas existe um risco no médio, longo prazo, de que algum movimento possa acontecer e o produtor termine com um monte de soja na mão,” diz Pereira.
Pereira prevê um aumento não tão expressivo na área plantada, em torno de 4%. Mas o mercado dá sinais de que a animação é maior. Por exemplo, a empresa SLC Agrícola, uma das gigantes do setor no Brasil, anunciou crescimento de 7% em sua área plantada de soja para a próxima safra.
“Nossa grande receio é criar uma demanda tão maior em curto espaço de tempo que pode causar desmatamento e conversão de vegetação natural,” diz Edegar de Oliveira Rosa – Coordenador do Programa Agricultura e Alimentos do WWF-Brasil.
A Amazônia está em grande parte protegida dessa fome por mais áreas plantadas. Desde 2006, um pacto chamado Moratório da Soja, entre produtores e ativistas ambientais, impede boa parte do desmatamento da floresta tropical para a produção de soja.
O perigo se concentra no Cerrado, uma espécie de savana riquíssima em biodiversidade e essencial para o equilíbrio do ecossistema brasileiro. O bioma é onde a expansão da soja mais se concentra. Desde a década de 1970, o Cerrado já perdeu quase metade da sua vegetação natural para a expansão agrícola e de pastagens.
Segundo dados coletados pela Trase, uma plataforma global que monitora dados da cadeia produtiva de commodities, estima-se que 3,5 milhões de hectares da soja plantada no Cerrado eram vegetação nativa 15 anos atrás.
As terras no Cerrado são significativamente mais baratas do que em outras regiões em que a indústria da soja é mais consolidada, como ao sul do Brasil. Isso significa que a plantação de soja em si não é a única preocupação de ambientalistas, mas também a especulação imobiliária por grandes propriedades rurais.
Ao perceber uma expansão do mercado, é possível que donos de propriedades na região queiram desmatar suas propriedades, deixando-as prontas para a agricultura, de forma a vendê-las por um preço mais alto.
Segundo Carneiro, seria possível ampliar a produtividade e até mesmo a área plantada apenas em terrenos já degradados, sem necessidade de desmatamento. No entanto, o perigo permanece. “Desmatam porque é mais barato,” ele explica.
Nassar, da Abiove, minimiza o perigo. Segundo ele, por mais que o desmatamento ainda seja um problema, ele é muito menos sério do que já foi. Segundo números de sua associação, o desmatamento gerado pela soja diminuiu de 27% por hectare plantado, entre 2002 e 2007, para 7% nos últimos quatro anos.
“Nós somos a favor de não ter mais desmatamento na cadeia,” explica Nassar. “Mas temos que ver isso com um processo de transição.”