Cinco anos após o fim do processo de concessão para a rodovia Rurrenabaque-Riberalta, a empresa China Railway Construction Corporation registrou um avanço de apenas 16% nas obras no início deste ano.
Prevista para atravessar a Amazônia boliviana, a estrada tem gerado preocupação entre as comunidades locais, biólogos e cientistas. Uma ONG ambiental chegou a descrever o empreendimento como “a obra mais controversa do país”.
O objetivo do empreendimento, iniciado pelo presidente Evo Morales, é atravessar o nordeste do país, ligando as regiões fronteiriças com o Peru, Chile e Brasil.
Uma rodovia com vários problemas
Poeira, barro, trânsito interrompido, obras sem conclusão, falta de sinalização e paralização dos trabalhos: esses são apenas alguns dos problemas que afetam há quatro anos os habitantes da região, além dos motoristas que transitam pelo trecho entre Rurrenabaque, Reyes e Santa Rosa, no primeiro setor da obra, cerca de 95 quilômetros ao norte de La Paz.
“Nós que trabalhamos com transporte estamos sofrendo. Se chove um dia, a estrada fica intransitável por uma semana. O progresso da obra é muito ruim”, reclama Carlos Marupa, que transporta passageiros de Rurrenabaque a Reyes. Segundo os motoristas, a estrada não tem a compactação adequada, e há o temor de que a via se deteriore após a entrega da obra.
15,56%
15,56% é o quanto a estrada entre Rurrenabaque e Riberalta já avançou
“Queremos que os chineses continuem a trabalhar, mas com consciência, não como estão fazendo agora. Já interromperam a obra por cinco meses, justamente em época de seca. Houve acidentes e batidas porque pararam de trabalhar e não há sinalização”, comenta Walter Delgade Arce, dirigente do sindicato Trans Ballivián de Rurrenabaque.
O sindicato enviou uma carta à Administradora Boliviana de Estradas (ABC), entidade estatal responsável pela via, pedindo que a construtora cumpra com a manutenção e irrigação da estrada, assim como com a sinalização adequada. A carta enfatizava o perigo que os motoristas correm na atual situação.
“Nossos gastos aumentaram: agora, de Reyes a Santa Rosa demoramos uma hora e 45 minutos. Quando a empresa fazia manutenção da via, há cerca de um ano e meio, demorávamos uma hora. A estrada está um desastre”, afirma Roy Villar, dirigente de transporte misto de Reyes. “Em época de seca é pior, não podemos ver nada porque a poeira é muito densa. Já houve acidentes por causa da nuvem de poeira”.
Outro problema, segundo os moradores da região, são as sarjetas muito estreitas que não drenam a água de maneira eficiente. Em fevereiro passado, a água que corre do rio Beni provocou um colapso de um trecho do sistema de drenagem, inundando uma comunidade.
Em fevereiro, a água chegou a um metro de altura na casa de Darnixa Crespo Ciripo, moradora da comunidade Cosar, onde vivem 67 famílias. “Fomos com nossos animais até a estrada porque a água entrou dentro de casa. É por causa da ponte: ficaram de construí-la e nunca terminaram”, reclamou.
Problemas como esse levaram moradores das comunidades Cosar, Villa Copacabana, San José, Puerto Salinas, Wawa 1 e Río Viejo que foram afetados pelas inundações a bloquear a estrada no final fevereiro. Eles exigiam que a ABC construísse uma ponte no lugar da sarjeta colapsada.
Problemas políticos da estrada
As autoridades bolivianas admitem a existência desses problemas. Em maio, o ministro de Obras Públicas Óscar Coca ameaçou multar a construtora por descumprimento de contrato.
“Há um problema sério com uma estrada que vai de Rurrenabaque até Riberalta. Infelizmente, a construtora não está cumprindo o contrato e estamos aplicando [as multas]; seremos inflexíveis”, disse Coca, segundo a agência de notícias ANF. O relatório de Prestação de Contas Públicas de 2018 da ABC também confirma o atraso.
As autoridades da região parecem menos preocupadas do que os moradores. Anacleto Dávalos Arias, prefeito de Rurrenabaque, afirma que durante os dois anos e meio desde que a ABC deu início à construção da estrada o trecho sob sua jurisdição, Rurrenabaque-Reyes, registrou um avanço de 50% a 55%.
“Já fizeram o levantamento da plataforma, o tratamento e a compactação dos solos. Só falta o asfalto”, explica. No entanto, Arias admite que no trecho de Reyes a Santa Rosa só foram concluídos cerca de 10% a 15% da obra. “A empresa não trabalhou nesse trecho nos últimos dois anos, agora estamos vendo que começaram a construção; há uma grande quantidade de máquinas trabalhando”.
O Diálogo Chino foi até a região na primeira semana de julho e constatou que a empresa está trabalhando com máquinas pesadas nos trechos Rurrenabaque-Reyes e Reyes-Santa Rosa de Yacuma, embora neste último só tenha feito o alargamento da via.
Caminhões e tratores circulam pelos mais de 30 quilômetros entre Rurrenabaque e Reyes, dois povoados situados no primeiro trecho da estrada. Em alguns lugares, os funcionários da empresa chinesa trabalham levando terra até a plataforma da rodovia, compactando o aterro ou derrubando árvores; e em outros estão apenas começando a armazenar a terra. O trabalho é mais intenso a menos de 10 quilômetros de Reyes.
Duvido que o projeto da rodovia Rurrenabaque-Riberalta passasse pelas condições do BID
Vereadores de oposição ao governo de Evo Morales pediram relatórios à Administradora Boliviana de Rodovias (ABC) devido ao atraso na obra, que — segundo eles — não se explica pelos pagamentos feitos à empresa. Até 2018, o progresso da obra era de 16%, enquanto o dinheiro depositado chegava a 42% do total, segundo a ABC.
“O ministro (Coca) disse que aplicariam a multa, mas alguns dias depois deram a ordem de continuar os trabalhos. Não sei o que aconteceu ali, é um mistério. Subcontrataram outras empresas para avançar os trabalhos? Aumentou o custo da estrada?”, questionou o senador de oposição Yerko Núñez, em entrevista ao Diálogo Chino. Núñez tem acompanhado a obra e pediu relatórios à ABC sobre o estado de execução da rodovia.
“Todos nós queremos uma rodovia, mas desde o início dissemos que tinham que construir uma boa estrada”, disse. “Estão fazendo a obra com financiamento do governo chinês. Não é um presente que estão dando. Temos que pagar juros, por isso estamos fiscalizando e denunciando um sem-número de irregularidades”.
“Temos visto muitas empresas trabalhando nessa obra, talvez porque o governo não está aplicando a multa”, afirma o prefeito de Rurrenabaque, sem saber se a China Railway solicitou e recebeu autorização da ABC para subcontratar outras empresas. Em todo caso, o prefeito está otimista de que a rodovia seja finalizada este ano.
Uma estrada no meio da floresta
A movimentação de terra, o desmatamento, a concentração de água e a eliminação de vegetação são algumas das questões que preocupam cientistas ambientais em relação à obra. Não se sabe que tipo de medida de mitigação a China Railway deve tomar para compensar os danos ambientais causados pela rodovia.
“O impacto ambiental é grande”, explica o biólogo holandês Vincent Vos, que mora em Riberalta há mais de vinte anos e trabalha como pesquisador independente em questões de desenvolvimento rural amazônico. Segundo ele, a terra para a plataforma de Riberalta até Yacumo é retirada de áreas de vegetação similar ao Cerrado onde habita o pássaro Pseudotriccus ruficeps, entre outras espécies.
Segundo Vos, é preocupante que esse tipo de vegetação não provoque interesse. O Cerrado é abundante na região que vai de Riberalta até Rurrenabaque, onde há muitas espécies valiosas do ponto de vista ecológico. “De Riberalta até Rurrenabaque, em cerca de 50 quilômetros dos dois lados da estrada houve intervenção na vegetação, não sobrou quase nada. Depois dos 50 quilômetros havia uma região com vegetação mais fechada onde se fazia observação de aves”, comenta.
Para muitos especialistas, monitoramento e previsão ambiental são essenciais, devido à fragilidade do ecossistema da região e à magnitude do impacto causado pela rodovia.
“Desde o momento em que em que se começa a intervir no meio ambiente, há efeitos sobre a biodiversidade e o ecossistema porque a obra envolve maquinaria, óleo, máquinas asfaltadoras, além de rejeitos dos acampamentos e das máquinas que devem ser tratados com muito cuidado por ser um ecossistema frágil”, conta Silvia Molina, pesquisadora da ONG Centro de Estudos para o Desenvolvimento Trabalhista e Agrário (Cedla). “De um lado, temos a savana do Beni e, depois, a floresta amazônica.”
Para a pesquisadora, a confidencialidade dos contratos impede que se conheça os funcionários da ABC que estão monitorando e fiscalizando a obra.
Especialistas de outros países compartilham da preocupação de Molina.
“Duvido que o projeto da rodovia Rurrenabaque-Riberalta passasse pelas condições do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Estamos em plena Amazônia e, além disso, em território indígena”, argumenta a economista Rebecca Ray, pesquisadora do Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston e coautora do relatório “China e Amazônia: rumo a um marco para maximizar os benefícios e mitigar os riscos do desenvolvimento de infraestrutura”.
Segundo Ray, há vários critérios ambientais que os financiadores podem exigir em projetos de infraestrutura. O tipo de requerimento varia de maneira significativa de acordo com o organismo multilateral ou o banco responsável pelo investimento.
“Os projetos que recebem financiamento do BID têm regulamentos que, entre outras coisas, limitam bastante o desmatamento e os impactos nas diversas espécies que habitam as florestas”, explica. Como exemplo, Ray cita a rodovia Montero-Yapacaní, no departamento de Santa Cruz, que foi financiada pelo BID. O processo envolveu um censo das espécies de flora e fauna que poderiam ser afetadas na área em torno do projeto.
Os critérios não são os mesmos quando o financiamento vem do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) ou do EximBank chinês (que concedeu à Bolívia um empréstimo preferencial de 492 milhões de dólares para a estrada), afirma Ray. “Os requisitos são mais gerais e costumam ceder a autoridade aos mesmos países que pediram o financiamento”, conta.
Por exemplo, ainda não se sabe como a empresa mitigará o impacto ambiental ao longo dos 508 quilômetros da rodovia. A licença ambiental classifica a obra como “categoria II”, o que a obriga a ter um estudo de avaliação de impacto ambiental (EIA), que não está disponível para o público.
A única coisa que se sabe a respeito de critérios ambientais veio de um comunicado da própria ABC em 2018 após uma denúncia contra um cidadão chinês pela morte de um jacaré. Em abril, a vice-ministra de biodiversidade, Cinthya Silva, informou ao El Día que, após a investigação, “a empresa admitiu que um de seus funcionários descumpriu as regras. O funcionário foi repatriado imediatamente e, além disso, a empresa começou um programa de capacitação para que a situação não ocorra novamente”.
Após a denúncia contra o funcionário chinês e o comunicado da ABC, a deputada Mirtha Arce pediu um relatório oral ao ministro de Meio Ambiente, Carlos Ortuño. “Comunique se receberam denúncias sobre exterminação de espécies ou massacre de animais por parte da empresa construtora China Railway, e informe se este ministério participou do monitoramento das espécies na região e do deslocamento dos répteis a um ambiente mais adequado”, assinala uma das perguntas.
O Diálogo Chino solicitou informações sobre a empresa que realizou o estudo de impacto ambiental e sobre os aspectos de mitigação nele contemplados. Entretanto, nem as autoridades bolivianas do município de Rurrenabaque nem da Admimistradora Boliviana de Carreteras (ABC) responderam ao pedido. Uma gerente de comunicação da ABC afirmou em duas ocasiões que os assessores de imprensa “estão muito ocupados”.
Esse não é o único problema que se atribui à construtora chinesa.
Entre 2015 e 2019, a China Railway Construction Corporation foi alvo de 87 denúncias de violação de direitos trabalhistas e ambientais. Essas denúncias fazem da empresa a companhia com mais queixas do país, depois da também chinesa Sinohydro, segundo uma sistematização realizada pela pesquisadora Viviana Herrera do Cedla.
“Cabe ressaltar que as denúncias se concentram em um único projeto”, alerta a pesquisadora, “que é a obra mais conflituosa do país”. Ela acrescenta que as denúncias ambientais mais comuns são por possíveis contaminação de rios, desmatamento e a falta de licença ambiental. Quanto às reclamações de fundo trabalhista, os funcionários denunciaram sobretudo maltrato e descumprimento das normas de trabalho e segurança social.
Tentamos falar com funcionários da China Railway no fim de julho, mas o assessor de imprensa da empresa afirmou que todos os executivos estavam nos acampamentos da obra. Nosso pedido de entrevista ainda não foi respondido.
Enquanto isso, a maquinaria pesada continua derrubando árvores, como testemunhou o Dialogo Chino, revolvendo o solo para extrair a terra que usa para erguer a plataforma da estrada cuja data final de construção ainda não é clara.