Florestas

Expansão da fronteira agropecuária ameaça florestas bolivianas

Especialistas temem que incêndios e desmatamento sejam consequência de políticas agrícolas
<p>Evo Morales se junta a brigadas que tentam apagar incêndios na Chiquitania boliviana. Imagem: <a href="https://www1.abi.bo/abi_/?i=433645&amp;k=201908260215">Agencia Boliviana de Información</a>.</p>

Evo Morales se junta a brigadas que tentam apagar incêndios na Chiquitania boliviana. Imagem: Agencia Boliviana de Información.

“Faz dois dias que enviamos a primeira remessa de carne bovina à China. É um mercado seguro”, afirmou o presidente Evo Morales no dia 30 de agosto em Concepción, um dos municípios afetados pelos incêndios que destruíram mais de um milhão de hectares de florestas e pastos na Bolívia. “Por isso, temos a obrigação de cuidar do nosso gado, ampliar a criação de gado não apenas em quantidade, mas também em qualidade”, completou.

Incêndios florestais ocorreram durante todo o mês de agosto em parte da região da Chiquitania e do pantanal, localizada no leste do país, perto da fronteira com o Brasil. Os incêndios foram provocados sobretudo pelo costume dos chaqueos (queimadas para limpar terrenos de cobertura florestal e vegetal), que têm o objetivo de preparar a terra para a semeadura. O fogo afetou 10 municípios do departamento de Santa Cruz.

Apesar dos esforços de bombeiros profissionais e voluntários, não foi possível controlar todos os focos de incêndio, reativados pelo calor e por fortes ventos. Segundo informações do governo, boliviano, os focos de calor diminuíram de 8 mil para 662 em menos de 10 dias.

O governo boliviano foi criticado por não tratar do problema desde o começo, por não pedir ajuda internacional e por ter autorizado a ampliação da fronteira agropecuária para estimular a exportação de carne à China.

Pesquisadores têm afirmado que a exportação de carne não é o fator principal a estimular o aumento de focos de queimadas. Dizem, no entanto, que, se por um lado, há relação entre os incêndios e o desmatamento, por outro, há as políticas econômicas que autorizam a ampliação da fronteira agropecuária e a dotação de terras públicas a indivíduos.

Segundo um estudo da ONG Fundação Amigos da Natureza, a pecuária é responsável por 60% do desmatamento na Bolívia. A pesquisa detectou um aumento no desmatamento em regiões como Charagua e a Chiquitania, ambas no departamento de Santa Cruz, que concentra 78% do desmatamento do país.

O fogo do agronegócio

“O fogo saltava de um lado para outro. Quando os bombeiros vinham para controlar as chamas de um lugar, chegava a notícia de que o incêndio já estava em outro. O fogo venceu todo o poder humano que tínhamos”, descreve Rubén Darío Arias, integrante da plataforma de defesa do Vale de Tucabaca, localizado no município de Roboré, na Chiquitania. Em 1O de setembro, o fogo ainda não havia sido controlado.

A Reserva Florestal Municipal Tucabaca foi afetada pelo desmatamento de 55 hectares quando uma comunidade de 33 famílias camponesas tentaram assentar-se dentro da área protegida, após obter autorização do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), responsável pela distribuição e titulação de terras públicas da Bolívia. Embora atividades agropecuárias sejam contrárias à vocação ecológica da área, esses pequenos agricultores também tinham uma autorização de desmatamento emitida pela Autoridade de Florestas e Terras (ABT).

O Presidente Evo Morales sobrevoa uma área da Chiquitania onde os incêndios foram controlados. Imagem: Agencia Boliviana de Información.

O fogo começou a se espalhar por Santa Cruz na segunda semana de agosto.

Na região afetada pelos incêndios no departamento de Santa Cruz, os pequenos proprietários detêm 28% das terras tituladas; os proprietários de médio porte detêm 22%; as grandes empresas têm 35%; as comunidades têm 7%; e o restante são Terras Comunitárias de Origem (propriedades coletivas indígenas ou campesinas), segundo dados do pesquisador Gonzalo Colque, diretor da Fundação Terra.

Segundo Colque, é importante conhecer esse contexto para entender o problema dos incêndios. O pesquisador também chama atenção para duas coisas: primeiro, os proprietários de médio e grande porte juntos controlam 57% da superfície titulada na região. O número é importante, argumenta Colque, porque esses são os maiores beneficiários do processo de titulação de terras mais ágil, sem muitos trâmites.

Além disso, segundo Colque, apenas 7% das terras são propriedade de comunidades camponesas, uma extensão territorial pouco significativa. O problema por trás desse valor, contudo, é que há novas comunidades que não têm títulos, mas que obtiveram autorizações de assentamento dentro de terras estatais, o que lhes permite desmatar até 20 hectares por família.

“Eles conseguiram direito para mudar o uso do solo, principalmente por meio de desmatamento. A grande pergunta é: quem são os beneficiários dessa distribuição de terras que se faz sem o devido processo agrário que deveria orientar a titulação?”, questiona Colque.

“Os dados preliminares (da Fundação Terra) mostram que a maioria dos hectares queimados seriam terras públicas e terras de empresas agropecuárias. Estamos falando de cerca de 70%”, disse Colque ao jornal Los Tiempos. A ONG elaborou um mapa que mostra essa relação.

Os incêndios também chegaram a regiões da Amazônia boliviana, principalmente no departamento de Beni e em lugares como a Reserva da Biosfera Estação Biológica de Beni, área protegida nacional. Depois de quatro dias de trabalho, bombeiros, polícia florestal, biólogos e voluntários conseguiram controlar as chamas. Embora ainda haja risco de incêndio, as queimadas persistem na região.

Este mapa da Fundación Tierra boliviana compara áreas de expansão de fogo e gado.

Floresta ou agroindústria?

Essa situação não ocorre apenas na Bolívia. No mundo todo, nota-se uma correlação entre grandes incêndios que destroem florestas tropicais e o desmatamento cometido para suprir a demanda internacional por commodities como soja, óleo de palma ou carne, afirma o biólogo Vincent Vos.

“O governo está propondo ampliar a fronteira agropecuária em cerca de 20 milhões de hectares, então é claro que teremos enormes incêndios”, comenta Vos, que mora em Beni há 20 anos e trabalha com desenvolvimento rural amazônico.

Vos não é o único pesquisador na Bolívia a questionar algumas políticas econômicas que estariam se tornando incentivos perversos para facilitar o desmatamento.

O governo de Evo Morales também criou incentivos para a produção de bioetanol com o objetivo de suprir o mercado interno de produção de biocombustíveis (etanol e biodiesel), dando fim à importação de combustíveis. Essa política, entretanto, também causa preocupação entre técnicos ambientais que temem um aumento nos níveis de desmatamento.

Enrique Ormachea Saavedra, sociólogo e pesquisador de temas agrários do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Trabalhista e Agrário (CEDLA), explica que 70% do aumento líquido da produção agrícola se deve aos cultivos de cana-de-açúcar e soja.

“O desenvolvimento agrícola já não é visto como um processo orientado para a produção de alimentos para o mercado interno e para o mundo, como dizia a propaganda inicial, mas para o crescimento de cultivos que, como a cana de açúcar e a soja, são matéria-prima para a produção de biocombustível”, explica.

Outros pesquisadores temem que produtos como o etanol tirem espaço da produção de alimentos. Miguel Ángel Crespo, especialista em agroecologia e diretor da ONG ambientalista Probioma, critica uma lei recente que permite o deslocamento de alguns cultivos para produção de aditivos de origem vegetal.

“[Isso] causará o deslocamento de outro cultivo não para favorecer a soberania alimentar, mas para beneficiar um setor que vai produzir um combustível (bioetanol)”, explica.

Nenhuma mudança à vista

O panorama dos incêndios melhorou, embora até 1o de setembro ainda houvesse focos de calor. No entanto, o serviço meteorológico prevê ventos, o que facilita a reativação das chamas.

Entre algumas soluções propostas para o problema que resultou na devastação de mais de um milhão de hectares de floresta, uma delas é que o governo declare situação de “desastre nacional” para ter acesso à ajuda internacional. Por enquanto, Morales descartou essa opção, assegurando que o controle do fogo está dentro das capacidades do governo.

Segundo especialistas, o governo também deveria reconsiderar várias normas que permitem a ampliação da fronteira agropecuária em zonas de vocação florestal.

Essa ideia parece contrária ao que busca o Morales. Em Concepción, o presidente declarou na última sexta-feira que a base fundamental para o crescimento econômico da Bolívia são os setores de “energia, hidrocarbonetos, mineração, agropecuária e o conhecimento científico”.

“Exportar, exportar os excedentes. Agora, se falamos da China, precisamos de quantidade e qualidade”, afirmou Morales. “Que não falte carne aos bolivianos, e o resto (é para) exportar”.
Crespo, diretor da Probioma, propõe que se reestruture todo o projeto de desenvolvimento agrícola, declarando uma pausa ecológica e derrubando todas as normas que abriram a possibilidade de ampliar a fronteira agropecuária, além de realizar uma auditoria ambiental para quantificar os danos com o objetivo de trabalhar na restituição das florestas.

“As vendas [de carne] triplicarão, mas esses números não justificam o custo socioambiental de ampliar a fronteira agrícola para a exportação de carne. Temos que ver o que significa a floresta não apenas para a Bolívia, mas para todo o mundo”, afirma.

As Forças Armadas bolivianas estão na vanguarda dos trabalhos de controle de incêndio. Imagem: Agencia Boliviana de Información.

A carne boliviana rumo à China

No dia 28 de agosto, o governo e a Federação de Pecuaristas de Santa Cruz (Fegasacruz) realizaram o envio das primeiras 48 toneladas de carne bovina à China. O plano é exportar 8 mil toneladas em 2019.

Hoje, os criadores de gado contam com um excedente de 40 mil toneladas de carne para exportação, e sugerem outros mercados, como a Rússia. Esperam crescer de maneira sustentável 5% ao ano até 2030, o que geraria um excedente de 200 mil toneladas de carne para exportação, afirma Oscar Ciro Pereira, representante da Confederação de Pecuaristas da Bolívia

O embaixador chinês, Liang Yu, anunciou que nos próximos anos a China prevê importar 10 bilhões de dólares em bens e serviços, abrindo oportunidades para outros produtos bolivianos. A Bolívia exportou, até 2019, 60 mil toneladas de quinoa à China, produzida sobretudo por pequenos produtores — como já reportou o Diálogo Chino.

O que não está claro é como o país poderá assegurar essa renda bastante relevante para o agronegócio boliviano sem correr o risco de perder sua cobertura florestal.

Até agora o governo não explicou como conciliar o estímulo ao setor agropecuário do país com incentivos à ampliação da fronteira agrícola sem provocar a perda de áreas de vocação florestal. Os incêndios vistos nas últimas três semanas na Chiquitania e no pantanal boliviano demonstram que essa resposta é fundamental.

Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.

Strictly Necessary Cookies

Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.

Analytics

This website uses Google Analytics to collect anonymous information such as the number of visitors to the site, and the most popular pages.

Keeping this cookie enabled helps us to improve our website.

Marketing

This website uses the following additional cookies:

(List the cookies that you are using on the website here.)