Ruth Alipaz, de 53 anos, e Paola Gareca, 47, vivem em pontas opostas da Bolívia. Mesmo separadas por milhares de quilômetros de cordilheira, elas têm se aproximado bastante nos últimos anos. Ambas são líderes indígenas, mães e defensoras de áreas protegidas: o Parque Nacional Madidi, no norte do país, e a Reserva Nacional de Flora e Fauna de Tariquía, no sul.
As duas passaram anos lutando contra projetos de exploração de recursos naturais em suas comunidades, num país que perdeu mais de 1,8 milhões de hectares de floresta entre 2016 e 2021. Nessa longa batalha, elas dizem ter vivido episódios de intimidação, ameaça e repressão por parte de empresas, autoridades e até mesmo membros de suas comunidades.
Proteção da água
A hidrelétrica El Bala, localizada a 400 quilômetros ao norte de La Paz, foi planejada no fim dos anos 1950. O projeto era controverso e, mesmo abandonado devido à inviabilidade econômica e ao alto custo ambiental, tentaram relançá-lo em diversas ocasiões – uma delas em 2016.
Alipaz, moradora em San José de Uchupiamonas, levava uma vida tranquila em seu território até precisar defendê-lo das ameaças externas. Ela foi a primeira mulher da comunidade a completar o ensino superior e, enquanto conciliava as aulas aos cuidados de dois filhos, jurou que seria um exemplo para eles. Hoje ela trabalha como assistente de contabilidade e administradora de empresas.
“Não faz sentido passar por este mundo sem construir nada, apenas tirando e consumindo o que a Mãe Terra nos dá”, diz Alipaz.
Os projetos se estendem pelos departamentos de La Paz e Beni, em uma área que resguarda uma extraordinária diversidade de flora e fauna. A região onde fica o Parque Nacional Madidi é considerada uma das mais importantes do mundo para a conservação, porque abriga desde espécies de montanha até de planície amazônica.
“Para mim, era inconcebível que eles simplesmente entrassem e destruíssem nosso território”, diz Alipaz, fundadora do projeto de ecoturismo Sadiri Lodge. Criado em 2008, ele mostra a observadores de aves e outros visitantes do mundo o melhor da comunidade e da vida silvestre na cordilheira de Sadiri.
Alipaz é a atual representante da Coordenadoria Nacional de Defesa dos Territórios Indígenas Campesinos e Áreas Protegidas (Contiocap). Em 2018, ela chamou a atenção de outras organizações internacionais dedicadas à defesa do meio ambiente, quando apresentou o caso El Bala-Chepete na ONU, em Nova York.
“O mundo precisava saber o que estava acontecendo aqui”, diz.
Em entrevista ao Diálogo Chino, Alipaz conta que sua comunidade precisou defender seus direitos em várias ocasiões. Mas ela chama essas batalhas de “pequenas vitórias”.
Em novembro de 2021, a Ende voltou a realizar pesquisas na área. Porém, a Contiocap e organizações como o Coletivo de Comunidades Indígenas dos Rios Beni, Tuhichi e Quiquibey conseguiram novamente interrompê-las.
“Em Chepete, estavam instalando equipamentos de pesquisa. Nós os despejamos, avisamos que não podiam estar lá e precisavam sair. No dia seguinte, retornamos e os expulsamos uma segunda vez”, diz Alipaz.
Segundo a ativista, a construção das duas hidrelétricas segue paralisada, mas a comunidade não cogita baixar a guarda, “pois podem retornar a qualquer momento”.
O Diálogo Chino procurou a Ende para saber qual é o status do projeto e sua posição em relação às críticas das organizações comunitárias, mas a empresa não respondeu.
Reserva natural em perigo
No sul do país, a mais de 1,3 mil quilômetros da comunidade de Ruth Alipaz, Paola Gareca conta que os últimos anos não têm sido fáceis. Ela vem sofrendo ataques e ameaças por proteger as florestas da Reserva Nacional da Flora e Fauna da Tariquía. Seu ex-marido até a criticou por “perder tempo e não ganhar nada em troca”, uma referência aos subornos que ela diz ter recusado para desistir de defender seu território.
Atual secretária-executiva da Subcentral Sindical das Comunidades Campesinas de Tariquía, Gareca passou a defender o território depois que o governo boliviano tentou explorar gás dentro de Tariquía. O plano comprometeria mais de 136 mil hectares de floresta, o equivalente a 55% da reserva, segundo o Centro de Documentação e Informação da Bolívia (Cedib), organização que pesquisa temas socioambientais na América Latina.
Em 2015, Gareca assumiu a missão de ser a porta-voz da comunidade. “Nossos ancestrais cuidavam do meio ambiente, e por isso agora temos ar puro. Se não fizermos o mesmo, o que nossos filhos e as próximas gerações vão respirar?”, questiona a ativista, que também divide sua rotina de militância com os cuidados de filhos e netos, tarefas domésticas, criação de gado, apicultura e plantação de batatas.
A reserva de Tariquía é parte do corredor ecológico transfronteiriço Tariquía-Baritú, localizado entre Tarija, na Bolívia, e Salta, na Argentina. Mais de 800 espécies de plantas e 400 de animais habitam a área.
As autoridades queriam proteger os interesses da Petrobras e da YPFB Chaco, empresas do Brasil e da Bolívia interessadas em explorar a zona de forma conjunta. O ato resultou em uma violenta repressão da polícia contra os manifestantes – mas, segundo a Subcentral de Tariquía, as petrolíferas não conseguiram entrar na reserva na época.
Porém, mesmo com a forte resistência, a população local não conseguiu barrar os planos do setor petrolífero. Em maio de 2022, as empresas começaram a explorar hidrocarbonetos na reserva.
“Entraram há pouco tempo e estão fazendo estradas. Mas não temos ajuda. Não queremos que destruam nosso território”, diz Gareca.
Miguel Miranda, coordenador de ativismo do Cedib, diz que, no caso de Tariquía, as empresas estatais “entraram em acordo com líderes indígenas homens para gerar uma cadeia de abusos e intimidações”.
O Diálogo Chino procurou a YPFB para que comentasse o caso. Porém, a empresa não quis dar detalhes. “Em breve teremos notícias sobre o projeto”, respondeu o porta-voz.
Ameaças de todos os lados
Miranda atribui “a repressão estatal ao totalitarismo do partido governista [o Movimento ao Socialismo], que se intensificou com a crise econômica na Bolívia em 2014”, quando os preços do petróleo e gás despencaram.
Ele ainda denuncia o machismo em posições de liderança e destaca a importância do ativismo de Alipaz e Gareca para “fortalecer a democracia”.
“Eles começam a te difamar, dizem que está tirando proveito disso, que recebe dinheiro ou é bancada pelo ativismo”, conta Alipaz.
Ela ressalta que suas lutas sempre foram financiadas pelas próprias comunidades, acrescentando que a defesa dos direitos não leva ao enriquecimento.
“Os poderes querem te silenciar, te subjugar. Deixaremos de existir como povos indígenas se deixarmos isso acontecer”, diz Alipaz, que, apesar de ser dito muitas vezes que essa é “uma guerra perdida”, sustenta que “lutaremos cada batalha”.
E completa: “Um dia, a história dirá como nós, povos indígenas, sobrevivemos. É uma questão de dignidade, de honrar as lutas de nossos ancestrais”.