Na Guiana, a vitória da coalizão Parceria pela União Nacional (APNU) nas eleições de maio de 2015 sinalizou o fim do período de hegemonia ininterrupta do Partido Progressista do Povo (PPP), que chegou ao poder em 1992.
Muitos também esperavam que isso significasse o fim do tratamento especial dado à madeireira parcialmente estatal chinesa Bai Shan Lin (BSL), que começou a operar em 2007 neste país sul-americano pequeno, porém rico em recursos naturais, aninhado entre a Venezuela e o Suriname, na costa do Caribe ao norte do Brasil.
Durante a campanha eleitoral, a APNU prometeu que, caso fosse eleita, o “estado de direito” prevaleceria e as beneficiárias de acordos de investimento estrangeiro direto teriam que cumprir tanto os termos de seus contratos quanto a legislação guianense. Entretanto, empresas chinesas como a BSL continuam a dominar.
Para entender o motivo disso, é necessário considerar a história política recente e a ecologia singular do país.
De acordo com uma pesquisa da ONG norte-americana Global Financial Integrity, que investigou os fluxos financeiros ilícitos (FFIs) de 82 países entre 2008 e 2012, a Guiana está entre os 25 primeiros da lista, com 17,3% do Produto Interno Bruto (PIB) e 16,4% das transações comerciais totais envolvidas neste tipo de operação.
Ao longo do período avaliado, o PIB per capita da Guiana foi de US$ 2.866, enquanto os FFIs per capita chegaram a US$ 495 no país, levando-o ao quinto lugar no que diz respeito à relação FFIs/população. É uma situação destoante na região, pois nenhum outro país do Caribe e apenas um outro sul-americano está no “top 25”.
A Guiana tem florestas tropicais abundantes, com espécies endêmicas de árvores, como o bibiru (Chlorocardium rodiei), angelim (Hymenolobium flavum), pau-roxo (Peltogyne venosa) e wamara (Swartzia leiocalycina), todos com alta demanda no mercado chinês.
Além da extração e do comércio de madeira, as empresas chinesas também desempenham um papel importante na construção civil, no varejo e em outros setores comerciais do país. A BSL é apenas um exemplo de como o novo governo tem falhado em aplicar as normas para garantir uma concessão justa de contratos e a gestão sustentável dos recursos naturais.
Extração seletiva intensa
A política florestal nacional e os códigos de prática facultativos do setor madeireiro preveem que a Comissão Florestal da Guiana (GFC) estabeleça cotas de extração específicas para cada espécie, de forma a conservar populações viáveis de árvores com alto valor comercial e ecológico, além de garantir a produção sustentável de madeira. Isto não tem sido feito.
Não há preocupação nenhuma em garantir a próxima safra
Nos solos da Guiana, que são naturalmente pouco férteis, algumas destas árvores crescem em grupos ou bosques de apenas uma espécie, conhecidos localmente como ‘recifes’. Estes recifes são muito suscetíveis à extração excessiva, a não ser que se cumpra rigidamente a regra de distância mínima entre árvores cortadas. Nestes bosques, não é suposto ocorrer uma derrubada intensa de árvores.
A madeira tropical da Guiana é altamente demandada por fábricas na China, operadas por associados da BSL e outros compradores, dadas suas propriedades de rigidez, peso, estabilidade dimensional (não encolhe nem estufa) e cor escura, que é desejável para móveis de luxo e pisos de madeira resistentes a impactos.
Estas árvores também demoram a crescer e, por isso, a extração conservadora deveria ser a regra. Porém, na prática, a BSL e outras madeireiras que fornecem toras para a empresa vêm cortando árvores cada vez menores, de acordo com os diâmetros de tora anotados nos registros tributários. Não há preocupação nenhuma em garantir a próxima safra. Isto significa que a próxima rodada de extração só poderá acontecer daqui a muitas décadas, talvez séculos, contrariando completamente as políticas e regras de gestão florestal sustentável.
Desde os anos 1950, a GFC sabe da importância de se evitar a extração insustentável das madeiras mais valiosas da Guiana, entre as mais de mil espécies de árvores existentes no país. No entanto, os imensos lucros associados à exportação de madeiras valiosas para a China permitem que a BSL “compre” brechas nas regras oficiais. As penalidades impostas pelo descumprimento destas regras não servem como desincentivo, pois são muito fracas e nem sempre são aplicadas às empresas de grande porte e com fortes ligações políticas.
Ligações
O governo guianense foi e ainda é acusado de agir em conluio com a BSL, permitindo à empresa infringir a legislação nacional e burlar as cotas de extração de madeira, comprando toras de pequenas associações de madeireiras e depois usando seus nomes para exportar o produto para a China. A mídia local tem veiculado diversos casos de supostas infrações.
Conforme relatado pela mídia independente, Joseph Harmon – chefe do gabinete da presidência da Guiana e, na prática, o segundo governante mais poderoso do país – fez uma visita oficial à China no final de março de 2016, acompanhado pelo “assessor de negócios” B. K. Tiwari. Tiwari é um empresário polêmico, intimamente ligado ao antigo governo do PPP e, juntamente com a Bai Shan Lin, envolvido em vários processos judiciais relacionados à compras ilegais de terras.
Após protestos públicos, antes mesmo que Harmon retornasse à Guiana, o presidente David Granger revogou publicamente a nomeação do “assessor de negócios”, aparentemente feita por Harmon no início de 2016.
Pouco depois do incidente, diz-se que Harmon orientou oficiais da Autoridade de Receitas da Guiana(GRA) a abortar uma operação em andamento que buscaria a reapropriação de três carros de luxo da BSL, devido ao não pagamento de impostos. Novamente, uma intervenção presidencial veio logo em seguida, com garantias de que a GRA funcionaria sem interferências políticas.
“A GRA executará suas tarefas e responsabilidades, e reforça seu compromisso em fazê-lo sem medo ou preferência”, disse o presidente da GRA, Rawle Lucas, em resposta às alegações, acrescentando que “nosso principal objetivo é restaurar a confiança nesta agência e garantir que os erros do passado não se repitam”.
Além disso, uma fotografia publicada no jornal Kaieteur News – um dos dois periódicos independentes da Guiana –, aparentemente tirada no dia 27 de março durante a visita de Harmon à China, mostra o político em um jatinho privado ao lado de Chu Wenze e Chu Hongbo, executivos da BSL, e Su Zhirong, da Rong-An Inc., a segunda maior madeireira e negociadora de toras na Guiana.
“É claro que a imagem, por si só, já é algo bastante desconfortável de se ver”, admitiu Raphael Trotman, ministro da silvicultura da Guiana. Harmon finalmente publicou uma declaração afirmando, entre outras coisas, que o embaixador chinês na Guiana havia planejado a viagem no jatinho para uma visita à Long Jiang Forestry Industries Group, empresa sediada na Província de Heilongjiang, no nordeste da China.
O grupo estatal chinês Long Jiang já comprou 55% das ações da Bai Shan Lin e pretende adquirir o controle total da empresa em 2016. De acordo com a lei guianense, a aquisição das concessões de extração de madeira outorgadas à BSL estaria sujeita à aprovação presidencial. Não há nenhuma evidência de que isso tenha acontecido.
Negócios da BSL
A BSL usou indevidamente as concessões que recebeu para investimentos estrangeiros diretos na Guiana, utilizando-as para ampliar seu próprio portfólio de participações societárias. Em 2007, a empresa anunciou sua intenção de investir US$ 100 milhões em operações de beneficiamento para agregar valor à madeira, em duas localidades no país. Até agora, nove anos depois, nenhuma planta de beneficiamento foi construída.
Enquanto isso, neste período, a BSL comprou participações em empresas dos setores de mineração de ouro, transporte de areia e pedras, construção de balsas para transporte de toras de madeira e pedras extraídas de pedreiras, venda de aço importado com isenção de impostos, mercado imobiliário e construção de imóveis residenciais, além de um shopping center e um estacionamento para um ministério do governo.
Em 2007, a BSL declarou ter os direitos de exploração de 400.000 hectares de florestas na Guiana. Em novembro de 2012, a empresa já dizia controlar 950.000 hectares de florestas, e não os 627.000 hectares contabilizados pela GFC. De acordo com cálculos independentes, o número real estaria mais próximo de 1,5 milhão de hectares.
Entre os 200 veículos importados com isenção de impostos para serem usados na planta de beneficiamento de madeira da BSL, muitos foram, na verdade, distribuídos para outros empreendimentos da empresa. O uso de combustível isento de impostos, também concedido originalmente para investimentos estrangeiros diretos em atividades de extração de madeira, deu às cerca de 19 subsidiárias da BSL na Guiana uma vantagem financeira imbatível, em comparação com os empreendimentos locais, que não têm acesso a este tipo de benefício.
Cópias de alguns dos pedidos protocolados pela BSL no período de 2012 a 2015 para viabilizar abatimentos fiscais e importações isentas de impostos foram vazadas para o jornal independente Kaieteur News, que extraiu e publicou os requerimentos mais mirabolantes. Entre eles estavam: um bilhão de toneladas de cimento, um bilhão de metros de fiação elétrica, dois bilhões de latas de tinta e 100.000 toneladas de aço – todos os quais foram aprovados pelo então ministro da Fazenda guianense. Todos os pedidos referiam-se à planta de beneficiamento que seria construída pela BSL, mas os guianenses demonstraram pouquíssima curiosidade sobre a ausência total de progresso no empreendimento desde 2007.
A Guiana deveria aplicar, de forma consistente, transparente e não enviesada, as políticas e leis nacionais aprovadas e os códigos de prática de manejo florestal
Chu Wenze, CEO da BSL, foi eleito em novembro de 2012 para uma das quatro vice-presidências da associação setorial das madeireiras da China, a Associação de Distribuição de Madeira e Derivados (CTWPDA). Entre outras atividades, a associação promove eventos em que representantes do comércio de madeira podem entrar em contato com oficiais do governo. A CTWPDA rejeitou um relatório sobre o comércio ilegal de madeira, publicado pela Agência de Investigação Ambiental (EIA) e intitulado Appetite for destruction (“apetite por destruição”).
Olhando à frente
A decisão do governo guianense sobre a aquisição total da BSL pela Long Jiang Forestry Industries Group é vista como um teste para verificar se os governantes do país garantirão a transparência e a conformidade com os requisitos legais.
Em 2003, China e Guiana assinaram um acordo de comércio bilateral que prevê o respeito às leis guianenses. Além disso, todo contrato de investimento estrangeiro direto deveria seguir as diretrizes estabelecidas no relatório mais recente da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), bem como as orientações divulgadas pela Administração Estadual de Florestas e pelo Ministério do Comércio chineses.
A Guiana deveria aplicar, de forma consistente, transparente e não enviesada, as políticas e leis nacionais aprovadas e os códigos de prática de manejo florestal. Para que isso aconteça, será necessário acabar com as práticas discricionárias e a tradicional interferência política, fazendo com que a BSL e outras madeireiras entrem em conformidade.
Seguindo as recomendações feitas este ano ao conselho diretivo da GFC, nomeado pelo governo, uma ação judicial deverá ser registrada junto ao superior tribunal da Guiana para garantir liminares que paralisarão as operações da BSL, seguindo o exemplo do Ministro-Chefe do estado de Sarawak, na Malásia – que teve um efeito benéfico dramático, levando quase instantaneamente a uma forte redução nas atividades florestais ilícitas. Sem ações como esta, o estado de direito e o futuro das florestas na Guiana estão ameaçados.