Praticar aterrissagens em pistas de pouso sem sair de casa e acessar internet de alta velocidade no meio da Amazônia: essas são vantagens tecnológicas que garimpeiros ilegais agora podem desfrutar, dificultando a proteção de áreas protegidas como a do Território Indígena Yanomami, localizado próximo à fronteira com a Venezuela.
Do outro lado, órgãos de fiscalização e organizações não-governamentais contra-atacam com o emprego de inteligência artificial e um jogo online com imagens de satélite para monitorar o desmatamento e o garimpo ilegal. De ambos os lados dessa batalha entre a preservação e a destruição ambiental, novas tecnologias estão se disseminando rapidamente.
E o que está em jogo nessa disputa é uma situação urgente: quase 30 mil yanomamis sofrem as mazelas provocadas pelo avanço de garimpeiros ilegais em seu território, que trouxeram doenças, desnutrição e violência.
Crise humanitária em curso
Em janeiro de 2023, o governo brasileiro anunciou uma força-tarefa para expulsar os garimpeiros da terra Yanomami e controlar a emergência em saúde pública provocada no rastro da atividade ilegal. No entanto, meses depois, eles foram retornando. Em março deste ano, o Ministério dos Povos Indígenas estimava haver sete mil garimpeiros na área.
Com isso, a destruição ambiental também continua. Um cruzamento feito pelo Dialogue Earth a partir do Deter, sistema de alerta de desmatamento do governo federal, mostra que a mineração provocou a perda de 384 hectares de vegetação nativa no território Yanomami em 2023, mais do dobro dos 188 hectares registrados no ano anterior.
Nesta região de floresta amazônica cujo acesso é difícil e, às vezes, impraticável por rios e estradas, garimpeiros usam aeronaves para se locomover. Para isso, seus pilotos precisam se arriscar em pistas precárias de terra, que às vezes não chegam a 300 metros de comprimento — as pistas do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, têm mais de mil metros, por exemplo. Qualquer manobra errada pode custar a vida da tripulação e a perda da carga explorada ilegalmente. Justamente por isso que eles precisam praticar bastante.
Com o programa Microsoft Flight Simulator, esse trabalho ficou bem menos arriscado. O software pago da gigante de tecnologia usa imagens de satélite e a topografia do território para simular situações reais para usuários, entre curiosos e pilotos profissionais.
Paulo Figueiredo diz em um site ser filho de um piloto que, entre as décadas de 1970 e 1990, aterrissou em várias das desafiadoras pistas abertas pelo garimpo no meio da floresta amazônica. Agora, ele continua, o Flight Simulator permite usar a tecnologia “para descobrir e realmente sentir um pouco como é voar” por essas áreas clandestinas.
Embora não esteja claro se o simular realmente seja usado para atividades ilegais, Figueiredo criou pacotes de simuladores de voo com pistas clandestinas, além de postar tutoriais sobre como editar o software para adicionar tais pistas.
O Dialogue Earth cruzou dados do programa da Microsoft com as 1.269 pistas clandestinas identificadas em 2022 por uma investigação conjunta do Intercept Brasil e o New York Times. A partir disso, a reportagem descobriu que pelo menos duas dessas pistas ilegais da terra Yanomami estão entre aquelas disponíveis para treino no simulador de voo.
Além disso, uma terceira pista, que era legalizada, perdeu seu registro em março deste ano. A Agência Nacional de Aviação Civil informou à reportagem que a pista foi descadastrada por falta de um plano de proteção. Mas imagens de satélite consultadas pelo Dialogue Earth mostram um garimpo a menos de um quilômetro dela.
A pista está próxima à aldeia Waikás, que fica às margens do rio Uraricoera, um dos principais focos de garimpos ilegais na área Yanomami. Antes usada pela população local, ela foi ocupada por garimpeiros, segundo Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana, que representa povos do território.
Segundo Ye’kwana, os próprios indígenas têm informado às autoridades quando há uma pista recém-aberta ilegalmente no meio da floresta. “Mas é um trabalho arriscado porque os garimpeiros podem estar no local quando vamos verificar a pista”, diz o líder indígena.
Ye’kwana reforça que a atividade poderia melhorar com uma ajuda tecnológica: “Queremos fazer uma capacitação de jovens indígenas para que esse monitoramento possa ser feito de outras formas mais seguras, talvez com o uso de drones”. Algo similar já é feito na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau em Rondônia.
O Dialogue Earth entrou em contato com a Microsoft e Figueiredo, mas não obteve nenhuma resposta até a publicação desta reportagem. Em nota oficial, a Polícia Federal disse que a sofisticação das tecnologias empregadas em atividades criminosas requer que a corporação intensifique suas ações de repressão.
Starlink em alta
Se o deslocamento é difícil dentro desse território remoto, a comunicação também sofre empecilhos e, por muito tempo, foi realizada basicamente por meio de radioamador. Mas recentemente, antenas de internet via satélite começaram a aparecer nas mãos de garimpeiros na terra Yanomami e em outras reservas da Amazônia.
Estevão Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental que trabalha com os Yanomami, explica que a internet é fundamental para a existência de um garimpo: “Serve para recrutar pessoas, articular a logística do garimpo, garantir suprimentos e driblar a fiscalização”.
A internet via satélite de alta velocidade melhora a comunicação e a coordenação dos garimpeiros ilegais, particularmente por meio de grupos do WhatsApp. Essa conectividade permite que eles desviem da fiscalização de forma mais eficaz, aumentando os riscos para os oficiais que combatem essas atividades em regiões remotas.
A Polícia Federal informou que apreendeu mais de 50 acessórios para permitir a conexão rápida no território Yanomami em 2023. Segundo a corporação, o uso dessa tecnologia “impõe mais desafios” aos órgãos de controle e coloca “servidores públicos em maior risco”.
Hoje, os garimpeiros usam principalmente a antena de internet via satélite Starlink, empresa do bilionário norte-americano Elon Musk. Em março, mais de 155 mil antenas Starlink operavam no país, sendo mais de 40% nos estados da Amazônia Legal, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em janeiro de 2023, havia 15 mil antenas, apenas 10% do registrado hoje.
O estado de Roraima, que abriga a maior parte da terra Yanomami, registrou um salto de 148 atenas Starlink ativadas em janeiro de 2023 para 4.761 unidades em março de 2024, segundo a Anatel. Já o Amazonas, que também abriga a reserva, foi o estado com o maior número de ativações, quase 19 mil novas antenas em funcionamento até agora.
Senra lembra que as operações de fiscalização do território já haviam encontrado aparelhos de internet via satélite em garimpos em 2021, mas que o uso da Starlink vem desbancando seus competidores. “O que mudou foi que a Starlink barateou muito os custos dessa internet, e a qualidade do sinal é melhor”, disse o pesquisador.
Mas ele pondera que o acesso à internet de alta velocidade também traz benefícios aos Yanomami. “Internet sempre foi uma questão para a Amazônia de modo geral”, afirma o pesquisador. “Há um lado bom dessa conectividade, pois há escolas indígenas que a utilizam para a realização de cursos à distância e equipes de saúde para emergências”.
IA e satélites contra o desmatamento
Quando escolheu a graduação em engenharia de computação, Stefany Pinheiro, hoje com 25 anos, nem imaginava que usaria sua habilidade com algoritmos em prol do meio ambiente. Mas é justamente o que ela faz com a Previsia, plataforma lançada em 2021 por sua equipe na organização Imazon, que usa inteligência artificial para ajudar no combate ao desmatamento.
“Estamos produzindo tecnologia de ponta na nossa região”, diz Pinheiro, que vive em Belém, município amazônico que receberá a conferência climática COP30 ano que vem.
A organização estima que a ferramenta tenha um índice de acerto de 70% para identificar áreas com o risco de serem desmatadas no ano seguinte. Segundo a pesquisadora, essa avaliação leva em conta fatores como a proximidade de estradas — onde ocorrem 95% dos desmatamentos — e de terras indígenas — que, ao contrário, contribuem para a proteção das florestas.
Enquanto isso, agora há uma maneira de o público ajudar a identificar pistas de pouso clandestinas na Amazônia. A organização Greenpeace criou um jogo a partir de uma modificação independente (MOD) do Microsoft Flight Simulator. No Flying Guardians, jogadores são convidados a encontrar pistas de pouso clandestinas na Amazônia.
Em abril, no primeiro mês de funcionamento da plataforma, jogadores alertaram para mais de 250 pistas clandestinas nas terras indígenas Yanomami e Munduruku. A organização — que não divulga outras informações do jogo, como a demografia dos usuários — informou que está elaborando boletins com base nas descobertas para compartilhar com órgãos de controle.
“Acreditamos que isso é uma forma de chamar a atenção de um público diferente para pautas prioritárias ao meio ambiente”, diz Jorge Dantas, porta-voz do Greenpeace. “Assim a nossa mensagem chega mais longe”.