No fim de agosto, chamas atingiram a reserva de Ñembi Guasu, no leste da Bolívia. O território próximo à fronteira com o Brasil, no departamento de Santa Cruz, é protegido sob a jurisdição indígena do povo Charagua Iyambae. Por 11 dias, o fogo queimou a mata e o pasto dessa região — incêndios impulsionados pelo vento e pelo acúmulo de biomassa.
“Quando você vê o fogo chegando, é assustador. Mas aprendemos a não fugir, a enfrentá-lo com respeito. Às vezes, o fogo ensina mais do que qualquer escola”, contou Juan Carlos Chané, guarda florestal e morador da província de Guarayos, em Santa Cruz, que está próxima à reserva de Ñembi Guasu.
Há três anos, Chané integra um grupo de indígenas que atua voluntariamente na conservação da reserva, monitorando a flora e a fauna e percorrendo áreas que registram temperaturas extremas. Ele trabalha em parceria com o Centro Operacional Ñembi Misi, criado pelo governo autônomo indígena de Charagua Iyambae, principal autoridade local, e conta com o apoio de organizações civis.
Quando a fumaça apareceu, as equipes responsáveis pela proteção de Ñembi Guasu responderam prontamente: abriram aceiros, que são faixas de terra limpas de vegetação para interromper o avanço do fogo; planejaram queimadas controladas para criar uma barreira protetora contra os incêndios; e limparam áreas recém-queimadas para impedir a reignição do fogo.
“Trabalhamos incansavelmente, dormindo pouco, reunindo-nos entre árvores carbonizadas para elaborar estratégias, compartilhar recursos e concentrar toda a nossa energia em conter as chamas”, lembrou Hugo Sánchez, bombeiro florestal e técnico em gestão de incêndios.
A operação exigiu forte coordenação. Motocicletas e quadriciclos foram usados para levar equipes e água a pontos distantes, que a pé levariam horas para serem alcançados. Também foi preciso abrir acessos manualmente, com pás e enxadas, para instalar as barreiras de contenção do fogo.
“Vimos animais carbonizados e florestas destruídas. O fogo é implacável”, lamentou o bombeiro e guarda florestal Eliezer “Pirulico” Suárez Cuéllar.
Não é a primeira vez que a população local enfrenta essa situação: moradores contam que, em 2019 e 2021, Ñembi Guasu sofreu grandes incêndios, o último deles com cerca de 180 mil hectares afetados.
A área de conservação de Ñembi Guasu — que significa “grande esconderijo” em guarani — cobre 1,2 milhão de hectares de vegetação nativa, com alguns dos ecossistemas mais ameaçados do planeta.
Na Bolívia, o ano de 2024 marcou o recorde histórico de áreas queimadas por incêndios florestais, principalmente nos departamentos de Santa Cruz e Beni. Ao todo, 12,6 milhões de hectares foram queimados — área equivalente a três estados do Rio de Janeiro —, conforme o Ministério do Meio Ambiente e Água da Bolívia.
No 11º dia, o incêndio em Ñembi Guasu foi finalmente controlado com a ajuda da chuva, que coroou os esforços de combate ao fogo. No total, 1,7 mil hectares foram afetados na área de conservação, segundo Jorge Sea, engenheiro florestal local e bombeiro da Nativa, organização que auxilia a comunidade indígena com conhecimento técnico e suprimentos.
Protetores do Chaco
Ñembi Guasu é uma reserva com características ecológicas e biológicas singulares: ali, as florestas secas da Chiquitania e do Gran Chaco — segundo maior bioma florestal da América do Sul, que se estende por Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil — encontram as áreas úmidas tropicais do Pantanal boliviano. Zonas de transição como Ñembi Guasu têm valor ambiental inestimável, pois abrigam combinações únicas de ecossistemas e biodiversidade.
Para chegar a Ñembi Guasu, o melhor acesso é por uma estrada de terra que parte da cidade de Roboré, em Santa Cruz, percorrida de preferência em um veículo 4×4. O trajeto é ladeado por uma vegetação densa e espinhosa.
“Este lugar é o coração do Chaco. Se ele for danificado, tudo ao seu redor fica doente”, resumiu Alejandro Arambiza, diretor da reserva Ñembi Guasu.
A Bolívia reconhece 36 povos originários e oito governos autônomos indígenas. O Governo Autônomo Indígena Guarani Charagua Iyambae, primeiro do tipo no país, é responsável pela administração de Ñembi Guasue, além dos parques nacionais Kaa Iya e Otuquis.
Conforme o estatuto do governo indígena Charagua Iyambae, o termo guarani kaa iya é uma expressão de reciprocidade: a floresta é um ser vivo com o qual a humanidade coexiste e que deve ser respeitada. Essa visão orienta a gestão de Ñembi Guasu, especialmente na definição de áreas restritas, na proteção de nascentes e no uso dos recursos naturais.
Mulheres e homens indígenas que contribuem com a proteção da área combinam conhecimento ancestral e capacitação técnica. O centro operacional Ñembi Misi, a sete quilômetros de Roboré, é responsável pelo planejamento, treinamento e revisão das câmeras de monitoramento. A partir daí, as brigadas patrulham a área por semanas: registram a presença de vida selvagem, detectam pontos críticos e saem para combater o fogo à medida que ele for avançando.
“Eu costumava caçar. Agora protejo essa área”, disse Franz Chumira, guarda florestal guarani de Isoso, uma das seis zonas sob a jurisdição de Charagua Iyambae. “Gosto de pensar que sou como a onça-pintada: ando silenciosamente e protejo meu território”.
“Ñembi Guasu nasceu da filosofia guaraní de Yaiko Kavi Päve, ou ‘bom viver’: conservar, mas também viver em equilíbrio com a floresta”, explicou o engenheiro florestal Jorge Sea.
Território vivo
Ñembi Guasu conecta as bacias hidrográficas da Amazônia e do Rio da Prata e protege as nascentes dos rios San Miguel e Parapetí. Ela forma um corredor ecológico que cobre mais de seis milhões de hectares.
Um de seus ecossistemas mais singulares é o Abayoy, floresta endêmica do Chaco boliviano, onde crescem espécies vegetais como o ipê-rosa (Handroanthus abayoy), o jutaí-mirim (Hymenaea parvifolia) e a braúna (Schinopsis brasiliensis). No meio delas, circulam animais como a onça-pintada (Panthera onca), a anta (Tapirus terrestris), o tatu-canastra (Priodontes maximus) e o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla). Outras espécies de cobras e aves também habitam a área.
Os Totobiegosodes, um grupo indígena do povo Ayoreo, vivem em isolamento voluntário dentro dessa área protegida, e seu modo de vida depende diretamente da floresta.
“A floresta parece adormecida, mas está cheia de vida”, descreveu Rubén Darío Montero, que trabalha no centro operacional. Ele é responsável por monitorar a área com câmeras de segurança. “À noite, você pode ouvir tudo: os macacos, as onças, os papagaios”.
Montero identificou pelo menos oito onças-pintadas e várias pumas na área de conservação. “Uma vez, fiquei cara a cara com eles a cinco metros de distância. Primeiro, senti medo, depois respeito”, contou.
Ameaça constante
A Ñembi Guasu protege uma região bastante sensível. O desmatamento e as ocupações ilegais do território pressionam a floresta seca e aumentam sua vulnerabilidade ao fogo. Embora a reserva tenha sido poupada dos grandes incêndios de 2024 que devastaram Santa Cruz, um incêndio eclodiu no ano seguinte, mostrando que o risco está sempre presente.
“As chamas vêm das fronteiras de Roboré ou Charagua Iyambae, impulsionadas pelo vento e pela seca. Às vezes, basta uma única faísca para incendiar tudo”, alertou Sánchez.
Na região, a temporada de incêndios ocorre entre junho e setembro, quando a biomassa acumulada e a baixa umidade tornam a área mais inflamável.
“Estamos em uma reserva ambiental, mas ainda há pessoas que desmatam e queimam sem autorização. Meu trabalho é detectar pontos de calor e enviar alertas. Quando um incêndio é confirmado, os protetores correm para socorrer a área”, disse Romualdo Enríquez, técnico ambiental que monitora o território do governo indígena Charagua Iyambae.
Estudos de campo elaborados pela Nativa e pela equipe do centro operacional Ñembi Misi — que inclui protetores, técnicos, bombeiros e membros do governo autônomo — indicam pontos críticos ligados à expansão agrícola e às ocupações ilegais nas margens da área protegida, onde os alertas precoces são fundamentais para impedir que o fogo avance.
“A maioria dos incêndios aqui é causada deliberadamente. Algumas pessoas queimam para limpar a terra e economizar em maquinário. Mas a floresta tem memória: se queimar uma vez, ela leva anos para se recuperar. As fronteiras são definidas pelos humanos, não pela natureza”, enfatizou o guarda florestal Eliezer Suárez Cuéllar.
A logística é organizada a partir de Ñembi Misi: água, combustível, ferramentas e equipes de socorro. Rose Mary Braner Weber é a responsável por coordenar os veículos e trazer água e baterias — tudo isso com as chamas a apenas 30 metros de distância.
Quando o fogo chega perto, uma resposta é acionada imediatamente. O governo autônomo Charagua Iyambae, o corpo de bombeiros e as organizações da região ativam seu sistema de alerta precoce e comunicação comunitária: protetores, autoridades e moradores coordenam esforços por rádio e telefone.
“A resposta não vem de cima, mas do próprio território. Os guardiões, o governo indígena e as comunidades organizam as ações rapidamente”, explicou Pamela Rebolledo, bióloga e coordenadora de projetos na Nativa. Segundo ela, isso serve de exemplo para mostrar como a soberania ambiental pode funcionar, com um sistema que pode ser replicado em outros países.
Mesmo assim, há tensões com o governo nacional quando o assunto envolve, por exemplo, os planos de desenvolvimento ou compartilhamento de recursos. “Há um plano de gestão aqui. Defendemos nosso lugar com reuniões, relatórios e nossa presença”, disse Alejandro Arambiza, diretor da Ñembi Guasu.
Ele também afirmou que não quer que “a floresta seja dividida em duas”, em referência a um projeto rodoviário que, segundo os mapas da Administração Boliviana de Estradas, visa conectar a Bolívia e o Paraguai atravessando parte do território protegido. O governo autônomo Charagua Iyambae manifestou sua oposição ao projeto e exigiu ser consultado para manter o controle da gestão ambiental, conforme estabelecido em seu estatuto. Enquanto isso, uma organização de direitos indígenas acusou as autoridades de Santa Cruz de espalhar desinformação à medida que avançam os planos de construção da estrada.
Desde a promulgação da Constituição de 2009, a Bolívia reconhece o direito dos povos indígenas, tradicionais e campesinos à autodeterminação, ao autogoverno e à gestão dos recursos em seus territórios.
Para os defensores de Ñembi Guasu, a resistência não é apenas um tema ambiental: é também cultural e político. O direito de decidir sobre o território – incluindo o manejo do fogo – faz parte dessa defesa.
Esta reportagem foi produzida com o apoio da Bolsa de Biodiversidade de 2025 da Earth Journalism Network.






