Clemente Flores vive na comunidade El Moreno em Salinas Grandes, na província de Jujuy, na Argentina, onde comunidades indígenas tentam impedir a chegada de empresas mineradoras para extrair lítio. A água necessária para obter o mineral, usado para baterias elétricas, alteraria radicalmente seu modo de vida, argumenta Clemente.
“Em nome do lítio”, novo documentário de Cristian Cartier e Martín Longo, reflete o conflito gerado na região pela extração do mineral. O filme, que levou mais de cinco anos para ser produzido, está disponível online gratuitamente até 9 de agosto, e após esta data será lançado nas salas de cinema da Argentina.
“Não estamos dizendo ‘não ao lítio’. O que nos preocupa é a gestão da água. Vemos o que está acontecendo em outras províncias do país onde eles já estão extraindo o mineral e utilizando milhares de litros d’água. Se eles se instalarem aqui, não teremos água para nós, para nosso gado e para os animais selvagens”, diz Clemente de El Moreno.
O problema do lítio
A província de Jujuy, que acumula 36% do total do lítio da Argentina, é o principal foco do conflito de lítio. Ali, a empresa Sales de Jujuy, formada pela japonesa Toyota, a canadense Orocobre e a argentina JEMSE, opera a única mina ativa na localidade de Olaroz.
Ao mesmo tempo, a mineradora canadense Lithium Americas, juntamente com a chinesa Ganfeng e a JEMSE, estão construindo uma segunda mina com capacidade de produção de 25 mil toneladas, que deverá começar a operar até o final do ano. Além disso, há interesse em desenvolver projetos em Salinas Grandes, onde Clemente vive.
Argentina, Bolívia e Chile estão localizados no “triângulo do lítio”, uma área geográfica reconhecida mundialmente por seus vastos recursos minerais. Estima-se que o país tenha 47 milhões de toneladas de lítio, cerca de 65% do total mundial, de acordo com a Pesquisa Geológica dos Estados Unidos.
Telefones, laptops, tablets, câmeras digitais e muitos outros eletrônicos utilizam baterias de íons de lítio. Mas o interesse pelo lítio tem sido especialmente impulsionado por veículos elétricos e pela energia renovável, que dependem de baterias para o armazenamento e carregamento de energia.
Em Salinas Grandes há um acordo implícito. Eles sabem que, se as empresas de mineração entrarem, todos serão igualmente afetados pelo uso d’água
“A transição energética para abandonar os combustíveis fósseis é necessária, mas também devemos refletir sobre certas práticas que prejudicam o meio ambiente e a diversidade sociocultural. Não é simplesmente uma questão de trocar uma coisa pela outra”, diz o diretor Cristian Cartier.
O lítio é obtido através de um processo de evaporação, que requer dois milhões de litros d’água para cada tonelada de minério extraído. Esse alto consumo d’água pode afetar os aquíferos da região e as comunidades que dependem dela para a agricultura.
Além disso, há riscos para a biodiversidade nas províncias de Jujuy e Catamarca, onde os projetos já foram aprovados.
“O documentário busca problematizar a visão predominante do lítio, geralmente apresentado como o grande salvador diante da crise climática, e mostrar os impactos socioambientais ligados à sua extração”, diz Pia Marchegiani, diretora de política ambiental da Fundação Ambiente e Recursos Naturais (FARN, em espanhol) da Argentina, que produziu o filme.
O lítio e as comunidades
Mais de 30 comunidades indígenas vivem na bacia das Salinas Grandes, que é o foco do documentário. Entre elas estão as comunidades de Santuario Tres Pozos, Aguas Blancas e El Moreno. A maioria não possui títulos de terra, mas a lei indígena reconhece a ocupação ancestral e pública do território.
Em 2010, as comunidades apresentaram uma liminar coletiva contra os governos locais de Jujuy e Salta e contra o governo federal para garantir o direito de expressar seu consentimento à exploração do lítio. O processo tramita na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Argentina adotou a Convenção 169 da OIT em 1992, que exige que os governos realizem consultas livres, prévias e informadas antes de adotar qualquer decisão que possa de alguma forma afetar os povos indígenas. Além disso, na reforma constitucional de 1994, o país reconheceu a pré-existência étnica e cultural dos povos indígenas.
“Em muitos lugares, as comunidades estão divididas, e assim fica mais fácil para as empresas de mineração entrarem. Mas em Salinas Grandes há um acordo implícito. Eles sabem que, se as empresas de mineração entrarem, todos serão igualmente afetados pelo uso d’água. É um dos poucos lugares onde o lítio ainda não está sendo extraído”, diz Cartier.
Cartier e Longo visitaram cinco vezes as comunidades de Salinas Grandes. Eles participaram das assembleias e observaram a vida cotidiana de Clemente e de muitas outras pessoas. Embora algumas das situações tenham sido recriadas, o documentário é um reflexo fidedigno da luta das comunidades contra os interesses das empresas de mineração para se estabelecerem na região.
Em uma hora e quinze minutos de duração, “Em nome do lítio” registra como a resistência é organizada. Inclui testemunhos de especialistas, políticos e cientistas, imagens da paisagem branca das salinas e destaca a resiliência das comunidades.
A ideia dos cineastas era estrear o documentário em projeções itinerantes com um cinema móvel nas comunidades da região dos salares. Eles conseguiram realizar apenas uma projeção no final de 2019 antes que a pandemia interrompesse o projeto. Eles esperam retomar seus planos assim que as condições de saúde o permitirem.
O filme destaca “a violação dos direitos implicados pela extração de lítio e as dificuldades dos governos locais para promover o diálogo. De início, eles buscaram informação e participação, e na falta de uma resposta, hoje eles buscam continuar vivendo como têm vivido”, diz Marchegiani, cuja tese de doutorado inspirou o documentário.