No ano passado, a estatal e maior produtora global de cobre Codelco fechou sua fábrica de fundição em Las Ventanas, na região central de Valparaíso, uma das áreas mais poluídas do Chile. A decisão do governo veio após um novo episódio de poluição do ar que afetou centenas de pessoas e forçou o fechamento de escolas. O presidente chileno, Gabriel Boric, se disse “envergonhado” com os níveis de degradação ambiental da região.
Em resposta ao fechamento, trabalhadores da fábrica em Las Ventanas convocaram uma greve geral, argumentando não terem sido consultados sobre a decisão que, segundo eles, resultaria na perda de empregos. Após vários dias de protestos, a situação foi resolvida quando o governo se comprometeu a dar apoio aos trabalhadores que poderiam ficar desempregados.
O que ocorre no Chile se repete em toda a América Latina. A transição para economias sustentáveis com baixa emissão de gases do efeito estufa vem forçando uma mudança nas indústrias poluentes. Porém, especialistas afirmam que a forma como essa transformação ocorre é tão importante quanto sua velocidade, para evitar o aumento das desigualdades sociais.
O conceito de “transição justa” é promovido por sindicatos e organizações socioambientais como fundamental para garantir que a transição rumo a uma economia neutra seja igualitária. Embora o conceito exista há décadas, ele ganhou popularidade nos últimos anos em razão da urgência da crise climática.
“O conceito vem chegando com força”, diz Javiera Lecourt, coordenadora de campanhas do projeto Transição Justa na América Latina, que pesquisou os diferentes significados do termo na região. “A transição não é a finalidade, é a maneira. Trata-se de mudar as culturas de trabalho e as formas de desenvolvimento profundamente enraizadas. Não vai acontecer da noite para o dia. Há pessoas que se especializaram em atividades extrativistas e não sabem fazer mais nada além disso”.
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma transição justa significa “tornar a economia o mais justa e inclusiva possível para todas as partes envolvidas, criando oportunidades de trabalho decente e sem deixar ninguém para trás”. Embora essa definição capte a ideia geral do que está sendo discutido, o conceito varia entre países e setores econômicos — cada qual com seu ponto de vista.
A Confederação Sindical das Américas (CSA), que reúne 48 organizações trabalhistas em 21 países da região, define a transição justa como uma mudança no modelo de produção e consumo. “É necessário realizar uma discussão aprofundada em que os trabalhadores estejam envolvidos”, afirmam porta-vozes da organização. “A transição justa é sobre criar um novo modelo econômico”.
Origens da transição justa
Sindicatos nos Estados Unidos introduziram o conceito de transição justa nos anos 1980. Inicialmente, referia-se apenas a um programa de apoio aos trabalhadores que perderam seus empregos em razão de políticas de proteção ambiental. No entanto, com o tempo, passou a significar algo muito mais amplo: uma transição gradual em direção a empregos e economias sustentáveis, cujo foco é não deixar ninguém para trás.
À medida que crescia a conscientização sobre a crise climática, os sindicatos começaram a relacionar a transição justa às ações climáticas. Essas entidades fizeram campanhas para que o conceito fosse incluído em tratados da Organização das Nações Unidas (ONU), como o Acordo de Paris de 2015, que busca limitar o aquecimento global.
A pressão funcionou. No preâmbulo, o acordo reconhece “os imperativos de uma transição justa da força de trabalho e a criação de trabalho decente e empregos de qualidade de acordo com as prioridades de desenvolvimento definidas em nível nacional”. Além disso, o conceito de uma transição justa está ligado a 14 das 17 Metas de Desenvolvimento Sustentável da ONU, adotadas em 2015.
“Não há uma única solução. Cada lugar precisa de abordagens específicas para sua transição justa”
No mesmo ano, a OIT também estabeleceu diretrizes para uma transição justa após negociações com governos, sindicatos e empresas. Essas orientações enfatizam a importância de um consenso social, respeitando os direitos trabalhistas e adaptando as políticas à realidade econômica de cada país.
Organizações socioambientais também têm suas próprias diretrizes. O projeto Transição Justa na América Latina, por exemplo, defende que empresas e governos adotem medidas para a conversão de empregos, diversificação da matriz energética, compensação financeira a pessoas afetadas pelas mudanças climáticas e promoção do diálogo sobre a transição em toda a sociedade.
“Não há uma única solução para a transição justa”, diz Catalina Gonda, coordenadora de política climática da Fundação Ambiente e Recursos Naturais (Farn), na Argentina. “Várias organizações criaram suas listas de princípios, mas o conceito que tem que ser ajustado às condições locais. Cada lugar precisa de abordagens específicas para sua transição justa”.
Superando os combustíveis fósseis
De todos os setores econômicos em transição, a energia é a que passa pela maior mudança. O setor energético é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa da América Latina. O petróleo, o gás e o carvão são utilizados na geração de eletricidade, no transporte e nas indústrias, e isso tem um custo ambiental.
A transição energética refere-se ao afastamento gradual dos combustíveis fósseis como fonte de energia e a sua substituição por fontes de energia renováveis, como a eólica e solar. Especialistas entendem que pode ser uma mudança complexa, mas necessária para evitar um novo aumento das temperaturas globais, que já subiram em média pelo menos 1,1 ºC desde a Revolução Industrial.
Mas a mudança para as energias renováveis não pode ocorrer de maneira aleatória, apontam organizações socioambientais e sindicatos. É por isso que eles reivindicam uma “transição energética justa”. Não se trata apenas de desenvolver fontes de energia mais limpas, mas também um sistema mais justo e democrático que considere os direitos dos trabalhadores e das comunidades.
“O setor energético é um dos principais responsáveis por conflitos ambientais e violações aos direitos das comunidades e dos povos tradicionais”, afirmam a organização Amigos da Terra e a central sindical CSA em um relatório de 2022. Para evitar novas tensões, as entidades pedem que as iniciativas de energias renováveis não cometam os mesmos erros dos combustíveis fósseis enquanto se expandem pela América Latina.
No México e no Brasil, parques eólicos têm enfrentado a resistência de comunidades rurais, que alegam não terem sido consultadas sobre a instalação das usinas. No Equador, a demanda por madeira de pau-de-balsa, um dos principais materiais utilizados na construção das pás das turbinas eólicas, ameaça a floresta e povos indígenas da Amazônia.
Empregos na transição justa
Uma transição bem planejada para economias sustentáveis pode impulsionar a criação de empregos, melhorar a qualidade do trabalho e reduzir as desigualdades, de acordo com a OIT. Durante a pandemia de Covid-19, a América Latina perdeu 26 milhões de empregos — situação agravada por problemas preexistentes, como falta de estabilidade laboral e desigualdade.
Segundo um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da OIT, a descarbonização da economia da região poderia gerar um saldo positivo de 15 milhões de empregos. Embora haja uma perda de 7,5 milhões de postos de trabalho, principalmente no setor de combustíveis fósseis, outros 22,5 milhões de empregos seriam criados em setores como energia solar e eólica, silvicultura e construção civil, entre outros.
Os autores do relatório argumentam que muitos dos trabalhadores que perderiam seus empregos poderiam transferir suas habilidades para novas indústrias. Mas, para que isso aconteça, empresas e governos precisarão implementar programas de requalificação e mecanismos de capacitação para apoiar os trabalhadores durante a transição.
Isso é especialmente importante para as cidades e comunidades latino-americanas cujas economias dependem fortemente de indústrias poluentes, dizem pesquisadores do escritório colombiano do Stockholm Environment Institute (SEI). Diversificar a economia exigirá investimento, suporte técnico e comprometimento político, acrescentam.
Na Argentina, por exemplo, milhares de pessoas migraram para Vaca Muerta em busca de empregos na indústria petrolífera. A economia da província de Neuquén gira em torno da formação geológica que abriga uma das maiores reservas de gás de xisto do mundo — e que já está na mira do Brasil diante da redução das exportações de gás boliviano.
Jonatan Nuñez, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina, observa que o cálculo dos empregos criados e perdidos na transição ignora questões importantes. “A mudança de um setor para o outro nem sempre é possível. Além disso, os empregos criados e extintos não necessariamente estão no mesmo lugar”.
Nuñez acredita que a América Latina deva usar a transição energética para repensar seu lugar no mundo. A região tem grandes reservas de minerais cuja demanda cresce à medida que os países se afastam dos combustíveis fósseis, como é o caso do lítio, usado em baterias de carros elétricos. Mas se os minerais forem apenas extraídos e exportados, diz o pesquisador, o potencial de criação de empregos será muito limitado em comparação com minerais utilizados em indústrias locais.
Longo caminho pela frente
O conceito de transição justa começa a aparecer nas políticas públicas dos governos latino-americanos, diz José Vega Araujo, assistente de pesquisa do SEI na Colômbia. “Mas ainda há um longo caminho pela frente”, acrescenta. “Cada país deve definir claramente o que entende por transição e incorporá-la em políticas concretas”.
Dos 170 países que já atualizaram seus planos de ação contra as mudanças climáticas, 65 (38%) mencionam uma transição justa, segundo a análise da ONU publicada no ano passado. Na América Latina e no Caribe, a lista inclui Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Honduras, República Dominicana, Paraguai e Antígua e Barbuda.
No fim do ano passado, o governo Boric criou o Escritório de Transição Socioecológica Justa no Ministério do Meio Ambiente do Chile. O objetivo é aproximar comunidades com indústrias poluentes às novas oportunidades na iniciativa privada e no Estado para avançar rumo a uma economia sustentável.
Com isso em mente, o governo chileno está criando planos de transição para as chamadas “zonas de sacrifício”, cidades ou vilarejos cuja qualidade de vida e meio ambiente foram afetados pela atividade industrial. O termo, criado por organizações da sociedade civil, refere-se aos impactos não apenas da indústria do carvão, mas também do cobre, do cimento e de produtos químicos, entre outros.
Na última conferência climática COP27, em novembro de 2022, a Colômbia também anunciou sua proposta para uma transição energética justa. O governo de Gustavo Petro quer substituir os combustíveis fósseis por fontes de energia renovável de forma “igualitária, gradual e com participação comunitária”, de acordo com plano apresentado na cúpula.
O carvão é o mineral mais importante da economia colombiana: fica em segundo lugar nas exportações e gera mais de 130 mil empregos. O governo garante que esses trabalhadores não correm risco, já que a transição será gradual, e os setores de turismo e agricultura podem absorver os desempregados remanescentes da indústria do carvão. Segundo Petro, ainda resta uma década de exportações de combustíveis fósseis na Colômbia — cinco para o carvão e dez para o petróleo.
Sindicatos e movimentos socioambientais latino-americanos reconhecem que a transição já está em marcha na maioria dos países da região. No entanto, acreditam que ainda há tempo para ajustar como ela ocorre. Por isso, pedem a governos e indústrias que dialoguem para encontrar soluções inclusivas.
“Limpar as indústrias poluentes em prol da transição energética não significa criar novas desigualdades ou aprofundar as já existentes”, ressalta Catalina Gonda, da Farn. “Todos precisam de um lugar à mesa para discutir o significado da transição justa, considerando as necessidades específicas de cada setor — como comunidades, indústrias e governos”.