Quando Sandro Chinkim voltou a seu povoado, ele já não existia. Chinkim —um pai de família na casa dos 30— havia saído apenas um dia antes de sua comunidade, Nankints, para visitar seus sogros, que moram a apenas 100 quilômetros de distância. “Quando voltei já não havia nenhuma casa, e todinhas estavam enterradas. Não havia uma ripa de madeira sequer”, disse ele. Em Nankints — um minúsculo enclave de indígenas shuar aos pés da Cordilheira do Condor, ao sul da Amazônia equatoriana — moravam 32 pessoas. Mas, quando Chinkim voltou, não havia nenhum rastro delas, nem de suas casas. Havia militares, policiais, e restos de madeira e zinco, talvez as únicas evidências de que uma comunidade existia ali antes. Era 13 de agosto de 2016.
Quarenta e oito horas antes, um monte de policiais, com uma ordem judicial em mãos, havia desalojado a comunidade: a terra, disseram, era de propriedade da empresa mineradora Explorcobres S.A., e eles eram invasores. Os pais de Sandro Chinkim estavam em Nankints naquele dia.
“Disseram que eles tinham dois minutos para pegar suas coisas e sair”, diz Chinkim. “Logo depois, derrubaram as casas, e enterraram em um buraco que cobriram com terra”. As oito famílias de Nankints se refugiaram em povoados vizinhos como San Carlos de Limón, Santiago de Pananza e Tsuntsuim. Era quinta-feira ,11 de agosto de 2016, e Nankints deixava de existir. Seus breves quatro hectares se tornaram, pela força da remoção, no acampamento da mina La Esperanza – ou “A Esperança”, em português.
O povo de Chinkim nunca mais conseguiu votar à sua terra.
Dois anos e meio depois, em uma manhã de fevereiro de 2019, já não havia restos de madeira e zinco no que um dia foi Nankints. Mas há sete pequenas casas com tetos prateados em ruas de terra bem conservadas, rodeadas por uma cerca metálica de dois metros de altura, reforçada com espirais de arame farpado.
Dentro de uma guarita de cimento, um segurança observa desconfiado a caminhoneta quatro por quatro que chacoalha e levanta uma fumaça de terra, enquanto passa devagar à beira do acampamento do projeto Panantza-San Carlos. Ali, a Explorcobres S.A. quer começar a explorar a cordilheira recheada de cobre durante os próximos 25 anos.
Mas a empresa não consegue, por causa da resistência do povo shuar. O desalojamento forçado que deixou Sandro Chinkim sem casa e sem povoado, era só o início de uma jornada de quatro meses iniciada naquele agosto de 2016. Ali começara a violenta escalada de um conflito entre a mineradora e os indígenas, que deixaria um rastro de morte, perseguição, abusos judiciais e desalojamento.
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Tsuntsuim está a seis quilômetros de Nankints. É outra comunidade indígena shuar submersa pelas montanhas cobertas por árvores verdes e recheadas de cobre. Fica ao sul da Amazônia equatoriana, na Cordilheira do Condor —reconhecida como uma das áreas mais ricas em biodiversidade da América Latina— 1.100 metros acima do nível do mar. Por isso, embora ao meio-dia haja um céu de um azul profundo e limpo, espessas nuvens se levantam de manhã cedo cobrindo os picos das montanhas, enquanto à noite sopra um vento refrescante. O silêncio é constante, assim como a tranquilidade. As 27 famílias que moram ali têm casas de dois andares com paredes de madeira e tetos de zinco. A comunidade se organiza como em um grande retângulo, em cujo centro fica uma quadra de cimento com dois gols e uma rede de vôlei.
Jonathan e Steven, de seis e quatro anos, correm de gol a gol. Riem. Na grama que separa as casas da quadra, uma senhora puxa uma mula, que relincha. Rita, de 21 anos, apara a grama que rodeia sua casa com um facão, de cócoras. Uma galinha cacareja.
Em Tsuntsuim não há centro de saúde, nem mercearia. Há apenas uma escola para todas as crianças entre 5 e 13 anos.
No dia em que as oito famílias foram desalojadas de Nankints, algumas se refugiaram em Tsuntsuim. Alvino Pinchupá, morador de Tsuntsuim, lembra que “chegaram com apenas um cobertor debaixo do braço. ‘Eles expulsaram a gente’, eles disseram, e nós os convidamos para ficarem aqui”.
A notícia do desalojamento se espalhou pelas províncias de Morona Santiago e Zamora Chinchipe, parte do território ancestral shuar —uma das 15 nacionalidades indígenas do Equador. Quase uma dúzia de homens, que não eram de Nankints, foram até Tsuntsuim para apoiar a seus companheiros e tomar de volta a comunidade.
Havia apenas um mês que Domingo Nayash era síndico de Tsuntsuim, a máxima autoridade administrativa, quando ele ajudou a planejar o que chama de “o golpe”. “Antes do que aconteceu em Nankints, já vinha se falando e protestando sobre esse assunto de mineração, mas alguém aqui precisava decidir e tomar uma atitude”, diz Nayash, um homem magro, moreno, de nariz largo e braços forte, enquanto sentava em um banco de madeira, embaixo de um teto de zinco onde alguém pendurara camisetas, calças e meias recém lavadas.
Durante os meses depois do desalojamento, houve assembleias, reuniões, planejamentos entre líderes das organizações shuar e os homens que se prontificaram a defender seu território.
Depois de semanas de planejamento, na madrugada de domingo, 20 de novembro, cerca de 25 homens saíram de Tsuntsuim para o acampamento La Esperanza. “Demoramos mais porque tínham dois homens gordos entre nós que caminhavam devagar. Queríamos chegar às 3 da manhã para surpreender aos trabalhadores, mas chegamos quando já estava claro”, lembra Nayash.
Eram as seis da manhã quando os shuar —alguns com lanças, outros com explosivos e rifles— irromperam no acampamento da mineradora. Entre disparos, golpes e sobretudo confusão, os trabalhadores de Explorcobres S.A. e os policiais que faziam a segurança do acampamento bateram em retirada. Nayash diz que o plano era queimar as casas, mas alguém no grupo sugeriu não as destruir porque podiam servir aos moradores de Nankints, que, segundo seus planos, refundariam sua comunidade.
Mas o contra-ataque da mineradora e do Estado foi acachapante. Os shuar dormiram uma noite no acampamento tomado, mas já na manhã seguinte um contingente de policias e militares, cujo número, segundo Nayash, havia dobrado, os expulsou. A tomada de La Esperanza demorou 24 horas.
Os shuar partiram, então, para San Carlos de Limón, um pequeno povoado de colonos e indígenas que está entre a comunidade de Tsuntsuim e a antiga Nankints.
Há três formas de chegar a San Carlos de Limón (chamada também só de “Limón”). A mais simples e rápida —que dura entre 3 e 4 minutos— é cruzando meio quilometro em um teleférico 300 metros acima do rio Zamora. Os vinte e tantos homens que foram expulsos da antiga Nankints se refugiaram em Limón pelas três semanas seguintes.
“Vamos dar mais um golpe”, disse o Nayash, lembrando vários outros homens haviam chegado de outras comunidades para apoiar a retomada. Vinte e quatro dias depois, em 14 de dezembro, os shuar voltaram a La Esperanza. Mas, desta vez, o acampamento já abrigava milhares de policiais e militares. O enfrentamento foi mais violento. “Dava para escutar o tiroteio daqui”, disse Natalia Nankamai, uma moradora de Tsuntsuim.
As balas deixaram dois militares, cinco policiais e dois shuar feridos. O policial José Luis Mejía morreu com um tiro que as autoridades dizem ter vindo dos shuar, e que os shuar dizem ter sido dos militares.
Vieram com carros blindados, com tanques de guerra destruindo tudo
Naquele mesmo 14 de dezembro, o então presidente Rafael Correa decretou o aumento de militares na região, além de um estado de exceção na província de Morona Santiago, onde fica a mina, por 30 dias.
Três dias depois, Correa endereçou o assunto em um dos discursos que dava a cada sábado em cadeias de rádio e televisão para informar sobre sua gestão e fustigar seus inimigos. Ele mentiu: disse que os shuar eram parte de “um grupo armado extremadamente violento” e negou que o espaço fosse território ancestral. O então comandante da polícia, Diego Mejía, disse que tinham “armas de grosso calibre”. Alvino Pinchupá e Domingo Nayash insistem em que só tinham carabinas, dinamites e lanças.
Aqueles dias de dezembro de 2016 estão intactos em nas mentes das mulheres e crianças de Tsuntsuim. Nayash estava em San Carlos de Limón, mas dois dias despois decidiu ir a Tsuntsuim para avisar aos outros o que havia acontecido.
O caminho entre o principal município da região e a comunidade tem trechos cobertos por uma lama profunda e movediça, como o concreto fresco. Outros pedaços são empinados e rochosos e, com rios repletos de anacondas e pedras pré-históricas, atravessados por troncos escorregadios. As pessoas que vivem na região demoram aproximadamente quarenta minutos para percorrê-lo, mas quem é de fora pode demorar até quatro horas.
Nayash lembra que, enquanto caminhava até Tsuntusim, escutava tiroteios e helicópteros. “Vieram com carros blindados, com tanques de guerra, destruindo tudo. Entraram em três frentes diferentes, para fazer uma emboscada contra nós”. Os militares e policiais invadiram vários povoados da região. Eles queriam deter os suspeitos da morte do policial José Luis Mejía.
Rosa Tuits, moradora de San Pedro, uma comunidade próxima a Tsuntsuim, conta que estava tomando banho quando começaram a chutar sua porta. “Isso me assustou. Por sorte, eu estava em casa, porque eles quebraram as portas das pessoas que não estavam, as dobradiças. Reviraram e bagunçaram toda a minha casa, e foram embora levando a carabina. Nós sempre temos armas porque moramos na floresta e temos galinhas. Essa arma foi que levaram”.
Tuits e seus vizinhos foram alvo da operação do Ministério do Interior que confiscou armas de fogo e explosivos para analisá-los e determinar quem havia participado do enfrentamento do dia 14.
O então ministro do Interior, Diego Fuentes, reagiu na sua conta de Twitter: “Desmentimos qualquer afirmação e informação de intervenções violentas por parte da força pública”.
Os moradores de Tsuntsuim tinham medo. O barulho dos helicópteros, das balas, dos drones horrorizava as crianças. Perto das oito da noite, as 27 famílias decidiram deixar a comunidade. Não queriam enfrentam os militares e policiais.
“Os militares vinham dando tiro, e dava para escutar os helicópteros baixinho. Nós tínhamos que pegar as crianças. Que animais? Que cobertores? Nada. Fomos sem nada e tivemos que dormir na montanha. Os filhos sem lanche”, lembra Benito Jimpikit, membro da comunidade de Tsuntsuim. Nayash conta que muita gente não conseguiu fazer mala, nem levar comida. Nada. Durante a noite e a madrugada, muitos não tinham sequer uma lanterna para percorrer a floresta na escuridão.
Na manhã seguinte, chegaram ao Tink, outra comunidade shuar a 12,4 quilômetros (em linha reta) de Tsuntsuim, onde se refugiaram. “Não sabíamos o que ia acontecer, eu pensei que, no dia seguinte, voltaria a ver minhas coisas, a trazer comida para os meus filhos”, diz Nayash. Segundo ele, demoraram quatro meses para voltar.
Voltaram apenas quando tiveram certeza de que todos os militares haviam abandonado a comunidade.
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Queimaram as casas de Benito Jimpikit e outros três membros da comunidade. “Tinha uma pequena cozinha, geladeira, 7 vacas, 78 frangos. E, quando voltei, recebi apenas uma ajuda de 25 chapas de zinco para reconstruir minha casa. Eu só comecei a me recuperar”, diz. Benito se lembra da noite em que, escondido dos militares que ainda ocupavam Tsuntsuim, ele chegou na comunidade para ver como estavam as coisas. Era verdade, não tinha casa, não tinha restado uma vaca sequer. Voltou para sua esposa e começou a chorar, inconsoladamente, por tudo o que tinha perdido. “Chorei como quem quer morrer naquele instante”.
María Luisa Utitiaj, de 61 anos, está sentada junto à mesa de madeira de sua pequena cozinha, rodeada de panelas de alumínio e cachos de banana da terra. Na sua mão, tem um cadeado enferrujado colado à dobradiça da porta que os militares e policiais derrubaram. Ela já havia se refugiado no Tink quando aconteceu, mas diz que comeram suas galinhas e levaram seus tanques de gás. “Não respeitaram nada”.
Soledad Chumpik era a professora da escola de Tsuntsuim. Passava de segunda a sexta-feira na comunidade e o fim de semana com sua família em Gualaquiza, uma cidade próxima. Chumpik não estava no dia em que todos os moradores fugiram para o Tink, mas voltou à comunidade dois dias depois. O distrito educativo lhe pedira que faça um relatório sobre a situação da escola. Quando chegou a Tsuntsuim, conta, estava cheio de militares e policiais. “Haviam invadido as casas, a escola, estava tudo bagunçado. Na minha casa, não tinha mais comida guardada, tudo tinha sido consumido pelos policiais, que ainda ocuparam o meu quarto”. Naquela noite, Chimpik dormiu em Tsuntsuim, e, no dia seguinte tirou fotos da escola e fez anotações para o relatório que haviam lhe pedido.
E uma manhã de fevereiro, em 2019, no corredor da escolinha de Tsuntsuim, que ainda dirige, Chumpik conta que cumpriu com a ordem que lhe deram. “Não tinha medo de estar lá porque não tinha nada a ver”.
Mesmo assim, policiais a detiveram e a levaram algemada para um ponto de verificação em San Juan Bosco, onde ela passou uma noite. “No dia seguinte me levaram ao hospital para me examinar, e depois à Unidade de Polícia Comunitária, e ao Ministério Público”.
O marido de Chumpik se encarregou da papelada e dos advogados. Durante os interrogatórios, ela conta que lhe pediam para entregar as provas. “Que provas eu podia dar, se eu não sabia de nada? ”
Chumpik foi acusada e incitação à discórdia entre cidadãos. Mas, por enquanto, espera que as crianças terminem uma tarefa antes de despachá-los para as férias do fim da primeira metade do ano letivo. Ela ainda se lembra de como a emboscada policial na região afetou as crianças. Muitas ficaram traumatizadas, assustadas com os helicópteros, os disparos e pela fuga no meio da noite, sem lanternas, para o Tink.
Mas aqui estamos dos anos depois, todo segue igual
Um morador de Tsuntsuim contou sua história enquanto suas cinco filhas de 7 e 2 anos o abraçavam, observavam e brincavam ao seu lado. Ele disse que não sobrou nada da sua casa, que quebraram tudo e levaram sua motosserra. Mas preferiu não dar seu nome por medo de retaliações. “Aqui toda hora vem gente perguntando coisas, mas ninguém ajuda”, disse.
Segundo os moradores de Tsuntsuim, antes da invasão de policiais e militares, ninguém—salvo uma ou outra ONG— havia ido lá. Trabalhadores da mineradora também foram à comunidade para oferecer galinhas, porquinhos-da-índia para as mulheres, cadernos e lápis para as crianças. E só.
Nenhum político nacional pisou em Tsuntsuim. Nunca. Durante campanhas eleitorais, alguns candidatos à câmara municipal ou a prefeito da província visitaram. Mas suas visitas não se transformaram em obras concretas. Basta percorrer o caminho enlameado até ali para entender que atendê-los não é uma prioridade.
Talvez a última vez que receberam alguma atenção foi durante a guerra com o Peru que terminou em 1998. O território disputado com o vizinho está muito próximo de Tsuntsuim e, durante o conflito, os shuar foram recrutados pelo exército equatoriano. Depois da guerra, mesmo assim, a contribuição dos shuar não foi reconhecida, segundo indígenas da região.
Depois do conflito em Nankints, diz o senhor que não quis se identificar, muitos jornalistas, ambientalistas e ativistas sociais visitaram. “Mas aqui estamos, dois anos depois, tudo continua igual, não nos recuperamos e ninguém se importa”.
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A remoção de Nankints para instalar o acampamento La Esperanza foi em 2016, mas o projeto de mineração vai durar mais 10 anos. Ocupa quase 42 mil hectares —é três vezes maior que Miami. Segundo um relatório da Fundação Tiam (que defende os direitos humanos e da natureza), quatro povoados —Indanza, San Miguel de Conchay, San Carlos de Limón e San Jacinto de Wakambeis— estão dentro das áreas de concessão. Outras quatro —San Antônio, Pan de Azúcar, San Juan Bosco e Santiago de Pananza—, na área de influência do projeto. São mais de 12 mil pessoas afetadas; 5 mil delas, shuar.
Em 2012, a Controladoria Geral do Estado auditou a gestão dos ministérios do Meio Ambiente, de Energia e Recursos Naturais Não Renováveis e outras instituições relacionadas ao projeto de mineração Panantza-San Carlos. O relatório concluiu que o projeto tem sete irregularidades porque os ministérios envolvidos descumpriram leis, como o Mandato Minerário, e a própria Constituição.
Segundo a Controladoria, o governo teve que suspender o projeto por razões como: a empresa Explorcobres S.A. superava o número de concessões permitidas (são permitirdas no máximo 3 e havia 4 vigentes e 7 suspensas); está em um território com nascentes de rio e outras fontes de água; e porque o estudo de impacto ambiental estava “à margem da legislação aplicável”.
O relatório deixava claro que o projeto fora realizado conforme padrões duvidosos nas áreas ambiental, social – e inclusive na econômica.
Em fevereiro de 2019, Panantza-San Carlos estava em uma etapa avançada de exploração. Quer dizer, já tinha feito a etapa de prospecção —para determinar se há ou não minerais no solo—, e a etapa de exploração —quando se abrem trilhas e se fazem perfurações.
No Equador existe só um projeto de mineração a céu aberto que já começou a produzir, e ele não fica longe de Panantza-San Carlos, na mesma Cordilheira do Condor onde ficava Nankints. O projeto foi concedido a uma empresa distinta, chamada Ecuacorriente S.A., mas que também é uma filial do mesmo conglomerado chinês. Fazem parte dele as empresas estatais Tongling Nonferrous Metals —dedicada à mineração — e China Railway Construction Corporation (CRCC) —dedicada à construção civil. Ambos os projetos pretendem explorar a mesma jazida, que se estende debaixo das províncias de Morona Santiago e Zamora Chinchipe, e é conhecida como “o cinto de cobre”
Mirador chamou mais a atenção da opinião pública equatoriana pelos já visíveis danos ambientais e às comunidades próximas. Mas espera-se que Panantza-San Carlos o dobre em extensão e, consequentemente, em danos ambientais.
Não se sabe quem escolheu o nome de La Esperanza para o acampamento onde a profecia dever ser cumprida, mas muitos se questionam se sua motivação era produto do cinismo, do desprezo ou da mais abjeta arrogância.
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A resistência shuar não é nova. Em novembro de 2006, moradores da comunidade shuar de Warints, também no sul amazônico, chegaram com lanças e rifles até o acampamento da empresa canadense Lowell Mineral Exploration e exigiram que abandonassem seu território. Tal foi a pressão —membros da comunidade até bloquearam a pista de aterrissagem para impedir a chegada de militares e policiais— que a mineradora foi embora.
Raúl Ankuash é um dos líderes shuar que esteve mais perto da luta e da resistência contra a mineração. Atualmente é dirigente de território da Federação Interprovincial de Centros Shuar (Ficsh) e diz que, desde sempre, a nação shuar rejeitou a mineração no seu território ancestral. “Mas as empresas geraram divisões internas dentro da organização e continuam gerando mais conflitos”, diz.
O conflito com Explorcobres S.A. é apenas um novo capítulo de uma longa história. “Se não fosse pela resistência do povo shuar, o projeto Panantza-San Carlos teria começado faz tempo”, diz Gloria Chicaiza de Ação Ecológica, uma organização que defende os direitos associados ao meio ambiente.
Segundo Chicaiza, a vitória contra Lowell teve um efeito em cascata e conseguiu também a interrupção do projeto Panantza-San Carlos cujo acampamento tinha um nome mais sincero, Rosa de Oro. “Para os shuar estas ações foram uma limpeza de território”, explica Chicaiza. Foi uma maneira de deixar claro que queriam sua terra livre de mineração.
A área onde as mineradoras querem cavar a céu aberto no sudeste do Equador é território ancestral do povo Shuar Arutam, formado por umas 13 mil pessoas da etnia shuar. Embora o artigo 57 da Constituição do Equador reconheça os territórios indígenas ancestrais, a história política, em especial aquela que aconteceu nas terras da Amazônia, é mais complexa.
Em 2016, os habitantes de Nankints foram desalojados à força porque, segundo o Ministério do Interior, a comunidade era uma “invasão ilegal”, e os prédios haviam sido concedidos à Explorcobres S.A. Mas o acampamento La Esperanza, instalado em 2016, funciona no mesmo espaço onde um dia foi o Rosa de Ouro.
Os indígenas shuar tomaram o Rosa de Ouro, batizaram-no de Nankints, e nele moraram pelos 10 anos seguintes. A empresa que insistia em ser dona do território processou os indígenas e, em 2015, a Corte Provincial de Morona Santiago decidiu em favor da empresa sobre a posse e uso da área de concessão minerária.
Mario Melo é advogado do povo Shuar Arutam e insiste que o território lhes pertence. O contexto histórico é longo e complexo. Mas ele lista alguns fatores para explicar como e por quê os shuar foram “encurralados” em seu próprio território. Houve a missão dos monges salesianos, a seca dos anos 60 na Serra Sul que levou camponeses a ocuparem terras na Amazônia, e a primeira reforma agrária, em 1964. Um relatório da Fundação Regional de Assessoria em Direitos (Inredh) menciona também que na década de 70 houve um processo de colonização impulsionado pelo então Instituto Equatoriano de Reforma Agrária e Colonização (IERAC) “que adjudicou terras ancestrais shuar a colonos como se aquelas não existissem”.
Melo explica que o Estado, apesar de saber que a região é um território ancestral indígena, concedeu títulos de propriedade a camponeses. “O povo da Serra chegou com outra mentalidade. Para eles, a propriedade coletiva não tem significado, então pediam para legalizar em seu nome, individual, dois, três hectares. Os lotes eram pequenos e isolados, o que não parecia preocupante para os shuar”. Mas tudo mudou quando os camponeses venderam esses títulos às empresas mineradoras. Desde 1998, começou a prospecção na Cordilheira do Condor, uma área que antes estava em disputa, era zona de guerra – três anos antes, o Equador e o Peru haviam mandado soldados para não muito longe, às margens do rio Cenepa.
Segundo Melo, os camponeses viram uma oportunidade de negócio: pediam ao Estado as escrituras para cultivar a terra e, quando conseguiam os papéis, vendiam o terreno às empresas. “A empresa á dona dessa terra, mas esta transação realmente não foi legítima. Se voltarmos para trás, vamos encontrar um momento em que houve uma adjudicação de alguma organização estatal. Esse é o início do desalojamento dos Shuar”, diz Verónica Potes, advogada especialista em direitos indígenas.
Uma dessas escrituras de poucos hectares que os colonos venderam às mineradoras foi Nankints. Segundo o documento, a Explorcobres S.A. é dona de 3 hectares — onde está o acampamento La Esperanza. Mas a concessão que o governo equatoriano lhe entregou é de quase 42 mil hecares. Essa diferença pertence ao povo Shuar Arutam que, desde a última década do século XX, tem pedido ao governo os títulos oficiais de um território que, em teoria, a Constituição do Equador reconhece que lhes pertence.
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No dia 12 de fevereiro de 2019, a sala de imprensa da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, em Quito, estava cheia de jornalistas e operadores de câmeras. Na mesa retangular, o advogado Mario Melo, acompanhado de líderes e dirigentes shuar, começou a entrevista coletiva e anunciou que o povo Shuar Arutam entraria com uma ação de proteção — um mecanismo jurídico para proteger os direitos humanos — contra o projeto Panantza-San Carlos.
Melo explicou que o principal argumento da ação era que o Estado descumpriu o direito constitucional à consulta prévia, livre e informada, um requisito indispensável em todo projeto extrativo no Equador. O país também aderiu ao compromisso quando assinou o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas. Ele consiste basicamente em perguntar os habitantes de povos tradicionais se permitem, ou não, que se extraia recursos em seus territórios.
Quando o governo de Rafael Correa se deu conta de que havia desrespeitado a Constituição escrita por eles mesmos, criou modelos de consultas em papel.
Segundo Melo, no caso de Panantza-San Carlos, a identidade cultural dos povos indígenas está sendo desrespeitada. “Além disso, com os atos violentos de 2016, atentou-se contra o direito à vida digna e à integridade”, disse.
Cinco dias depois da coletiva de imprensa, em San Carlos de Limón, Claudio Washikiat, um shuar que é dirigente de território da confederação indígena e que ostentava marcas vermelhas pintadas em zigzag nas bochechas, falou em uma assembleia das comunidades shuar da região sobre a ação de proteção.
A assembleia foi realizada no centro comunitário, que tem uma quadra multiesportiva de cimento, com teto curvo de zinco e umas poucas arquibancadas pintadas de amarelo e verde, as cores da província. Elas são também como uma metáfora da Cordilheira do condor: floresta e minério.
Neste mesmo lugar, dois anos antes, os militares armaram suas barracas para viver ali pelos 30 dias do estado de exceção. Mas agora, a quadra estava repleta de cadeiras brancas de plástico. Elas receberam o povo, que estava ali para saber, entre outras coisas, o que vai acontecer com a exploração do território que consideram legitimamente seu.
No palco, falaram Washikiat, Vicente Tsakimp —presidente do Pueblo Shuar Arutam—, um secretário, e outros dois dirigentes Shuar. A maior parte do diálogo é na língua local. Mulheres e homens participam com longas intervenções. O secretário que modera pede que façam propostas concretas.
“Mas vamos recuperar o território? ”, perguntou uma mulher.
É uma pergunta que ninguém se atreve a responder.
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Três dias antes da assembleia em Limón, em fevereiro de 2019, Claudio Washikiat — um homem com um rosto redondo e gestos duros e um ar de superioridade — chegou a Tsuntsuim, vindo de Quito. Não tinha voltado à comunidade desde dezembro de 2016, depois da morte do policial e do estado de exceção do presidente Correa.
O síndico Domingo Nayash, o morador Alvino Pinchupá e sua esposa María Natalia Nankamai o receberam com alegria. Em 2016, Washikiat era vice-presidente da Federação Interprovincial de Centros Shuar. Quando estourou o conflito, em novembro, foi um dos homens que chegou para tentar recuperar Nankints, e era um dos buscados pelos policiais e militares que roçaram as pequenas comunidades shuar com helicópteros e patrulhas. “Neste dia, você desapareceu, achamos que tinham te matado, ou que tinha morrido”, lhe diz Nayash.
Washikiat terminava de comer um caldo de tatu que tinham lhe oferecido como cumprimento de boas-vindas e se levantou da mesa para contar o que ninguém em Tsuntsuim sabia até então. Lembrou dos helicópteros voando baixo, dos carros blindados, dos tanques, da emboscada. Disse que, quando se sentiu encurralado, lançou-se pelo barranco cheio de árvores que termina no rio Zamora, de onde sai e chega o teleférico que conecta Limón com o resto de comunidades e municípios.
Washikiat ficou escondido durante meses porque tinha contra si uma denúncia pelo assassinato do policial Mejía. Como ele, Rosa Tuits e outro morador de Limón chamado Oswaldo Domínguez foram processados como suspeitos do homicídio. Mas diferente de Washikiat, Rosa Tuits e Oswaldo Domínguez não haviam estado no acampamento La Esperanza naquele 14 de dezembro, quando morreu Mejía.
Segundo a o Ministério Público General do Estado, o caso do assassinato de Mejía está ainda em investigação previa. Um mês depois de enviado um pedido informação, os promotores responderam, via email, que havia uma denúncia contra Oswaldo Domínguez, Rosa Tuits e Claudio Washikiat. Mas também que Tuits e Washikiat foram exonerados, e que o caso contra Domínguez foi arquivado.
O tiroteio, os helicópteros e o deslocamento dos habitantes de Tsuntsuim durante quatro meses não foram as únicas formas de violência sofrida pela população da região. Quarenta e três pessoas — entre Shuar e mestiços — foram acusadas de assassinato, 22 de ataque ou resistência, 10 de intimidação, 10 de incitação à discórdia entre cidadãos, 4 de roubo, 3 de roubo de gado, 2 de receptação, 2 de danos ao bem alheio, 1 de furto e 1 de porte ilegal de armas.
As acusações —como as que enfrentaram Tuits e Domínguez— ocorreram em um contexto político em que qualquer pessoa que resistia ou protestava contra o governo era denunciada. Segundo listas elaboradas pela confederação indígena, a Ecuarunari (a Confederação de Povos da Nacionalidade Kichwa do Equador, que reúne os povos indígenas da Serra) e várias organizações de direitos humanos, de janeiro de 2009 a dezembro de 2018, mais de 200 pessoas foram processadas durante protestos ou manifestações em que pediam, entre outras coisas, um território livre de mineração.
No Equador, a criminalização de protestos foi a forma de violência mais recorrente sofrida por defensores de território durante a última década.
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No dia 6 de março de 2019, o advogado Mario Melo apresentou a ação de proteção que havia anunciado vinte e dois dias antes. Por enquanto, em Quito, as organizações que apoiam a luta do povo Shuar se reúnem, elaboram relatórios, mapas sobre a perda do território e análises sobre o impacto da mineração. Benito Jimpikit continua morando em seu sitio, porque ainda não juntou o suficiente para construir uma casa nova em Tsuntsuim.
Ainda há pessoas shuar que moram escondidas, com o peso de uma acusação de assassinato em suas costas. As famílias de Tsuntsuim seguem lamentando a perda de seus escassos pertences. E as 32 pessoas deslocadas ainda não conseguiram retornar a seu território, Nankints.
Sandro Chinkim, um dos 32 habitantes violentamente removidos ainda fala do assunto com amargura. “O dia em que nos desalojaram, desde este momento, ficamos sem terra. Toda minha família teve que buscar um refúgio. Eu perdi tudo. Até agora estou me recuperando”.
Esta reportagem e parte do especial transnacional Terra de resistentes, realizado por jornalistas em sete países latino-americanos.