Os manifestantes avisaram à polícia que entre eles havia uma mulher grávida. Em pé em frente a uma fila de retroescavadeiras, eles tentavam defender suas casas de um pedido de reintegração de posse a uma empresa privada. Mas a polícia os pressionava a deixar o comboio passar e logo usou spray de pimenta.
A grávida saiu da frente das retroescavadeiras, cambaleante, com as mãos nos olhos.
Era dia 12 de agosto, e os moradores da comunidade de Cajueiro, na Amazônia brasileira, continuavam uma luta iniciada em 2014, para salvar suas casas de um empreendimento que o governo autorizara a tomar seu lugar: um megaporto que ligaria a zona rural de São Luís, no estado do Maranhão, ao resto do mundo.
O chamado Porto de São Luís, capitaneado pela China Communications Construction Company e pela brasileira WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais, visa facilitar a exportação de minérios e soja produzidos no Brasil. Apesar de haver outros portos na região, este seria o primeiro a ser operado por uma empresa da China, o país mais interessado em baratear e tornar mais eficiente exportação brasileira de minérios, soja e outras commodities.
Naquele dia, mais casas foram destruídas na reintegração de 22 lotes. Hoje restam 34 pessoas das 250 que viviam ali originalmente. Apenas sete lotes ainda não foram reintegrados.
O conflito entre a polícia e os moradores da comunidade demonstrou a truculência do governo para garantir a continuidade da obra, mesmo com investigações do Ministério Público Estadual apontando possíveis ilegalidades no projeto.
Como o estado concede uma escritura pública à comunidade, e anos depois, aparece alguém se dizendo dono da área?
A comunidade internacional se mostra preocupada com o tratamento oferecido pelas autoridades à comunidade. Uma carta em defesa de Cajueiro foi assinada por mais de cem entidades brasileiras e internacionais, além da relatora especial das Nações Unidas sobre o Direito à Moradia, Leilani Farha.
A batalha é também mais um capítulo do conflito entre quem luta por uma Amazônia com mais floresta e aqueles que a imaginam como uma fronteira aberta ao desenvolvimento industrial e agropecuário. O Porto São Luís é parte do chamado Arco Norte, iniciativa que recebe pesados investimentos públicos e privados em portos, ferrovias e rodovias mirando o escoamento da produção crescente de minérios e grãos na Amazônia e no Cerrado.
18%
A Amazônia já perdeu 18% de seu verde
A Amazônia já perdeu 18% de seu verde e o Cerrado, metade da vegetação original. As áreas ainda preservadas comumente abrigam indígenas, quilombolas (descendentes de escravos) e pequenos produtores rurais, como os que lutam por Cajueiro.
“Na comunidade havia pessoas que viviam e conviviam há décadas, que tinham uma vida boa e ajudavam a preservar a floresta”, explicou Ademar Pereira, 70, um dos moradores a perder sua casa nas últimas duas semanas. “Agora, é uma tristeza total”.
Entre investigações e protestos
A obra do porto já desmatou área equivalente a 200 campos de futebol. Para deslanchar, mais famílias precisaram ser removidas da comunidade do Cajueiro, cujas origens remontam a meados do Século XIX.
Como revelamos na reportagem especial Sitiados pelo progresso, desde 2014 casas são derrubadas no local, com ou sem autorização da justiça. A pressão para que os moradores deixem a comunidade é tamanha que, conforme a Comissão Pastoral da Terra, alguns foram ameaçados de morte por jagunços.
Além disso, a compra do terreno onde avança a obra pode estar envolvida em uma série de crimes.
Investigações do Ministério Público do Maranhão apontam que uma “quadrilha” atua na grilagem de terras públicas para dar espaço a obras de infraestrutura na zona rural de São Luís. A apuração ganhou força com uma apreensão de computadores e documentos que lotou quatro caminhonetes, em abril.
O esquema de grilagem seria pilotado por um bando formado por empresas, cartórios e servidores públicos, conta Haroldo Paiva de Brito, promotor de Justiça de Conflitos Agrários do Ministério Público do Maranhão.
“Como o estado concede uma escritura pública à comunidade, e anos depois, aparece alguém se dizendo dono da área? Pelo que apuramos, particulares usurparam terras públicas e as venderam às empresas ligadas à construção do porto”, ressaltou. “Isso pode levar à anulação do registro privado de terras e do licenciamento da obra”.
Sem freio
Para Ana Carolina Carvalho Dias, advogada da União dos Moradores Proteção de Jesus do Cajueiro, a reintegração de posse foi ilegal, já que ainda não foi esclarecido a quem pertencem as terras onde acontece a obra portuária.
Os moradores tampouco foram alertados que seriam retirados de lá. Segundo Dias, eles começaram ser removidos na segunda-feira, dia 12, mas a ordem judicial autorizando a reintegração de posse só chegou no dia seguinte. Moradores foram surpreendidos com pertences na rua e casas demolidas.
“Num estado democrático de Direito, as partes envolvidas em processos devem ser intimadas e informadas antes de ações como essa.”, reclamou. “A reintegração não respeitou esse processo e tratou os moradores como invasores”.
Dias depois, quando protestavam contra a truculência oficial, manifestantes, moradores e ex-residentes do Cajueiro foram expulsos com força policial, balas de borracha e gás lacrimogêneo da frente do Palácio dos Leões, sede do Governo Estadual. A Ordem dos Advogados do Brasil no Maranhão investiga o caso.
Há um lado pouco transparente da expansão da China no sul global
Sobre a reintegração de posse autorizada pelo judiciário estadual, o governador Flávio Dino (PCdoB) comentou, em seu Twitter, que “a polícia militar não pode simplesmente se recusar a cumprir ordem judicial. Houve várias tentativas de mediação, infelizmente frustradas. Não cabe ao governador cassar ou suspender decisão de outro Poder”.
Em nota, o Governo do Maranhão afirma que está investigando as denúncias de violências contra moradores e manifestantes, mas não explicou por que os lotes foram reintegrados sem aviso prévio.
Aos moradores removidos da comunidade do Cajueiro, a WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais oferece “casa nova, emprego, aluguel social e cesta básica”. Um panfleto distribuído pela empresa não detalha as características e nem informa por quanto tempo esses benefícios seriam concedidos.
Até o fechamento desta reportagem, a China Communications Construction Company não atendeu aos pedidos de entrevista. Também não conseguimos contato com a WPR – São Luís Gestão de Portos e Terminais.
O Brasil no tabuleiro chinês
O Porto São Luís recebeu um financiamento de até 700 milhões de dólares (cerca de 2,6 bilhões de reais) do Banco Comercial e Industrial da China, depois de um acordo assinado pelo ex-presidente Michel Temer, em setembro de 2017.
De acordo com Ariel Armony, diretor do Centro Universitário de Estudos Internacionais da Universidade de Pittsburgh,, tais investimentos fazem parte de uma política do governo chinês que estimula empresas nacionais a expandirem negócios em inúmeros países. Fincando bandeiras no tabuleiro global do desenvolvimento econômico, a China também aquece a disputa pela liderança política com os Estados Unidos.
“O envolvimento da China na América Latina é parte de uma política governamental que incentiva empresas chinesas a buscarem maiores oportunidades de investimento, em todo o mundo. Embora a intenção dessa política tenha sido amplamente econômica, os líderes chineses entendem que essa expansão global tem ramificações geopolíticas”, explicou.
Sobre os prejuízos ambientais e impactos sociais desses projetos, Armony avalia que a China tem exigido mais transparência e respeito à legislação para participar de projetos na América Latina. Todavia, na maioria dos casos as restrições legais de cada país ou estado são suficientes para atrair investimentos.
Assim, ele explica, dribles em impactos ambientais e violação de direitos de populações indígenas e tradicionais pontuam obras com participação chinesa na região:
“Há um lado pouco transparente da expansão da China no sul global”.
Na carta aberta assinada por Leilani Farha, da ONU, apoiadores da comunidade Cajueiro argumentaram que as autoridades foram contra as leis brasileiras em benefício do empreendimento portuário. O texto também criticou a escolha do governo por um modelo de desenvolvimento baseado em cultivos altamente destrutivos para o meio ambiente e as comunidades tradicionais.
“O estado do Maranhão reforça a política de se tornar um corredor de exportação”, escreveram eles, “em detrimento de seu povo e sua história”.