Uma fina camada de neve cobre os arranha-céus de Hudson Yards, o mais novo bairro do crescente distrito comercial de Manhattan. Mas artistas e ativistas da proteção do território indígena Yanomami, na Amazônia brasileira, ocupam o centro cultural The Shed, inaugurado em 2019 nesse trecho nova-iorquino, com uma explosão de cores tropicais.
Esse já icônico espaço de 16.000 metros quadrados recebe The Yanomami Struggle, uma exposição com desenhos, pinturas e vídeos de artistas da etnia, acompanhados de fotografias de Claudia Andujar.
A fotógrafa suíça, cuja família foi vítima do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, dedicou grande parte de sua vida à proteção dos Yanomami. O acervo de 200 fotografias da mostra retrata uma cultura permeada pelo xamanismo e uma relação intrínseca com a floresta amazônica, além de uma longa história de violência, mas também de resistência.
“Trabalho com os Yanomami há 50 anos e continuarei defendendo o povo e suas terras, que estão sendo invadidas por garimpeiros”, disse Andujar, que mora em São Paulo, na abertura da exposição este mês em Nova York. Com uma saúde frágil, a fotógrafa de 91 anos só confirmou sua presença alguns dias antes do evento.
A mostra itinerante percorre cidades do Brasil e Europa desde 2018. Mas ganhou um peso político sem precedentes com a explosão da crise humanitária enfrentada pelos Yanomami, com a invasão de garimpeiros ilegais em seu território, que trouxeram doenças, desnutrição e violência.
Para os mais jovens da comitiva, é a primeira vez no inverno do hemisfério norte. Mas não para o xamã e líder indígena Davi Kopenawa, de 66 anos. Em dezembro de 1992, ele representou os povos da Amazônia em evento na sede da ONU, em Nova York. Naquele ano, após mais de uma década de ativismo, o governo brasileiro finalmente reconheceu o Território Indígena Yanomami, que abrange 96 mil quilômetros quadrados, uma área maior que Portugal, no norte do Brasil, próxima à fronteira com a Venezuela.
Nos anos anteriores, Kopenawa havia visitado a Europa e os Estados Unidos como parte de uma intensa campanha internacional em busca de apoio para proteger seu povo de uma violenta corrida ao ouro que avançava sobre a região ocupada há um milênio pelos antigos Yanomami.
“A história é longa, mas ela se repete como em uma novela”, afirma Kopenawa ao Diálogo Chino.
História de violência que se repete
Mais de 70% dos cerca de 27 mil Yanomami que vivem hoje têm menos de 30 anos, reflexo do quase extermínio sofrido por essa população nas últimas décadas.
A primeira onda de mortes ocorreu a partir das incursões de missionários religiosos, agentes do governo e militares entre os anos 1950 e 1960. Naquela época, ainda criança, Kopenawa perdeu seus pais e outros familiares para as epidemias de sarampo levadas por forasteiros.
No início dos anos 1970, o governo militar iniciou a construção da rodovia Perimetral Norte na parte sul da terra yanomami. A obra foi abandonada anos depois, mas chamou a atenção para a presença de ouro e outros metais valiosos, impulsionando o garimpo até o coração da densa floresta tropical, até então quase intocada.
No livro A Queda do Céu: Palavras de um xamã Yanomami, Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert contam como garimpeiros começaram a se infiltrar na região em pequenos grupos, primeiro oferecendo alimentos e mercadorias aos indígenas. Ao longo dos anos 1980, no entanto, sua crescente presença tornou-se hostil e causou a poluição de rios, a escassez da caça e a disseminação de novas doenças infecciosas. No auge, o garimpo contava com 40 mil pessoas e 90 pistas clandestinas, o que facilitava a entrada e saída em pequenos aviões.
Os indígenas se viram diante de um dilema que, segundo os autores, está no cerne da maioria dos conflitos: “Os Yanomami tornaram-se dependentes da economia que gravita em torno dos garimpos no exato momento em que os garimpeiros já não acham necessário comprar a paz com os índios”.
Essas tensões chegaram ao auge com o massacre de Haximu em 1993, no qual 16 indígenas, incluindo crianças, e dois garimpeiros foram assassinados. O episódio chamou a atenção internacional e levou a uma condenação sem precedentes por tentativa de genocídio, embora os acusados tenham sido soltos posteriormente. A demarcação do território Yanomami ajudou a esfriar a crise, e as operações da polícia federal e de órgãos governamentais controlaram o garimpo. Mas agora o número de garimpeiros voltou a aumentar – e Kopenawa está novamente tentando chamar a atenção da comunidade internacional.
Vídeo instalação da mostra em Nova York reúne fotos do povo Yanomami de 1989 e 2018 de Claudia Andujar (Imagem: Flávia Milhorance)
“Esperamos expulsar os garimpeiros de lá novamente, foi uma promessa do governo Lula”, disse Kopenawa. “Jair Bolsonaro não quis escutar, não quis cuidar do meu povo”.
Além de inaugurar a exposição, Kopenawa discursou nas universidades de Princeton e Columbia e, novamente, na sede da ONU em fevereiro. Ele então viajou a Washington em busca de apoio para a campanha contra o garimpo em territórios indígenas.
Devastação socioambiental recente
A mais recente crise Yanomami vem se delineando desde 2019, impulsionada pelo aumento do preço do ouro junto com as políticas permissivas do governo de Jair Bolsonaro. Como deputado federal entre as décadas de 1990 e 2000, Bolsonaro tentou por quatro vezes suspender a proteção da terra yanomami, sem sucesso. Durante sua presidência, entre 2019 e 2022, Bolsonaro desmantelou órgãos de fiscalização ambiental e proteção indígena, além de pressionar no Congresso pela flexibilização do garimpo em áreas protegidas. Embora essa legislação ainda não tenha sido aprovada, sua retórica tem incentivado a devastação da Amazônia por atividades ilegais. Em várias ocasiões, Bolsonaro sugeriu haver “terra demais para pouco Yanomami”.
Aprofundando a crise, há suspeitas de que militares enviados para a região recebessem propina para vazar informações sobre as poucas operações de fiscalização e permitir a livre circulação de ouro e drogas. As riquezas minerais dessa zona fronteiriça também atraíram grupos envolvidos com o tráfico drogas, como o PCC, hoje a maior facção criminosa no Brasil, provocando uma escalada de violência física e sexual.
É o que mostra artista Yanomami Ehuana Yaira, de 38 anos, em seus desenhos. Ela diz querer denunciar o sofrimento de crianças morrendo de fome e malária e de mulheres exploradas sexualmente por invasores. “Os garimpeiros estão nos fazendo sofrer por todos os cantos da nossa terra”, disse Yaira, em Nova York.
A saúde do povo também foi abandonada. O bloqueio de verbas para a infraestrutura indígena e a difícil logística no remoto território, em sua maior parte sem estradas ou comunicação, deixaram os postos de saúde desprovidos de insumos básicos e até profissionais – que partiram pelo medo de morrer no ambiente cada vez mais hostil.
No início de 2021, a situação já era drástica. A fome e as doenças se instalavam por motivos semelhantes aos dos anos 1980. Os mais vulneráveis, principalmente as crianças, morriam de Covid-19. Houve ainda uma grave epidemia de malária, mas um medicamento básico, a cloroquina, estava em falta – em parte porque Bolsonaro promovia seu uso para combater o coronavírus, apesar das evidências científicas indicarem sua ineficácia.
Um ponto de virada?
Brasília permaneceu cega à crise até o primeiro mês do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Novas e chocantes imagens de crianças frágeis e desnutridas foram divulgadas pelo site de jornalismo independente Sumaúma. Instado pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, o presidente desembarcou no epicentro da crise, em Boa Vista, um dia depois.
Com o tema já ganhando destaque internacional, uma força-tarefa tem oferecido tratamento aos pacientes mais graves, e a Força Aérea assumiu o controle do espaço aéreo sobre o território, levam à fuga de garimpeiros por meio de barcos – embora muitos não se intimidem com a presença das forças de segurança.
Kopenawa diz que a retirada dos garimpeiros não será uma missão simples: “Nossa terra é rica, e onde tem riqueza, as invasões não param”. A demarcação do território Yanomami, diz ele, não garante a proteção contra o avanço ilegal do garimpo e outras atividades, como a pecuária e a sojicultura, que se expandem em menor escala.
Empresas têm mais de 500 pedidos de extração mineral ativos na Agência Nacional de Mineração, abrangendo mais de 30% do território. Embora as áreas estejam hoje vedadas à exploração, eventuais mudanças legais, como as propostas por Bolsonaro, podem mudar esse cenário. E embora as atividades ilegais tenham diminuído desde a década de 1990, elas nunca pararam.
Arte como ativismo
“Há um pico nessa crise, claro, mas a maior questão era sua invisibilidade”, diz Hervé Chandès, diretor geral artístico da Fondation Cartier, uma das entidades por trás da exposição.
Chandès acompanha a situação Yanomami há mais duas décadas, quando conheceu Andujar e Albert, encontro que resultou na exposição Espírito da Floresta, em Paris, em 2003. Para essa mostra, artistas não-indígenas, incluindo Andujar, passaram meses no território trabalhando com os Yanomami em peças que buscavam expressar o estilo de vida e a espiritualidade indígena.
Com o tempo, Chandès diz ter compreendido sua posição como patrocinador do projeto. A grande diferença para a nova exposição é que “em vez de irmos ao território deles, eles vêm para cá, Nova York, falar por si próprios”. Pela primeira vez, ativistas de longa data do povo Yanomami e da floresta amazônica, se encontraram no mesmo espaço. “Estão todos juntos aqui, o palco é deles”, diz Chandès. “Isso é muito simbólico”.
Entre eles, está Joseca Mokahesi, um dos artistas indígenas que expôs suas ilustrações na mostra de 2003. Nascido em 1971, sem registro da data de nascimento, Mokahesi fala a língua Yanomami e requer tradutores para se comunicar. Mas seus desenhos ultrapassaram fronteiras e hoje servem como uma chave para o universo de seu povo.
“Minha arte é minha luta. O povo Yanomami está sofrendo, mas estamos lutando”.