Completa-se em maio uma década do assassinato do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo por pistoleiros em Nova Ipixuna, no Pará. Seu trabalho para construir uma reserva extrativista ecológica, que a um só tempo preservasse a floresta e oferecesse meios de subsistência a seus moradores, tornou os ambientalistas alvos de inimigos cobiçosos de derrubar árvores centenárias para vender madeira.
Hoje quem sofre ameaças é a irmã do líder extrativista, Claudelice dos Santos, que leva adiante a luta dos parentes mortos no Instituto Zé Cláudio & Maria.
“Sobretudo nos últimos meses, precisamos tomar todo o cuidado. É como se não existisse mais uma política de proteção”, ela afirma à reportagem. “Estamos sendo empurrados para a morte.”
A vulnerabilidade de Claudelice poderia ser amenizada se o governo brasileiro não se recusasse a ratificar um inovador acordo internacional sobre temas ambientais que está prestes a entrar em vigor em países da América Latina e do Caribe.
O acordo combate justamente aquilo que o governo promove
No dia 22 de abril, o Acordo de Escazú, assinado por 24 países dos 33 da região em 2018, finalmente se tornará vigente em 12 de seus signatários, após Argentina e México o ratificarem na ONU em janeiro, ultrapassando o mínimo necessário de 11 oficializações para a sua validação.
O acordo tem caráter vinculante — isto é, de cumprimento obrigatório — e é o primeiro tratado internacional do mundo a incluir uma cláusula de proteção a defensores de direitos humanos.
Em seu artigo 9, determina que cada Estado-parte “tomará medidas apropriadas, efetivas e oportunas para prevenir, investigar e punir ataques, ameaças ou intimidações que os defensores dos direitos humanos em questões ambientais possam sofrer no exercício dos direitos contemplados no acordo”.
A cláusula não é a única virtude do pacto em questões ambientais. O Acordo de Escazú tem como pilares o direito de acesso à informação, o direito à participação pública e o direito ao acesso à justiça, e pode produzir um significativo impacto na governança ambiental.
O Brasil, a princípio, já segue estes compromissos, e já tem construído um arcabouço institucional avançado em relação ao resto do mundo. O acordo viria para aprimorar normas vigentes, oferecendo uma oportunidade para o país se destacar e melhorar implementação da legislação atual, hoje muito falha.
A aterrissagem do pacto, no entanto, acontece no pior momento para o meio ambiente em décadas no Brasil. Sob o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, o país vive enormes retrocessos. Depois da assinatura pelo ex-presidente Michel Temer em 2018, a ratificação do acordo depende de um ato discricionário de Bolsonaro, que pode enviar o termo para avaliação do Congresso quando quiser.
Frente a um compromisso cujos princípios seu governo ataca diretamente, Bolsonaro nada faz. Em vez disso, seu governo opera um desmonte das normas e instituições de proteção ambiental construídas nas últimas décadas. O resultado são recordes de desmatamento e queimadas.
“O acordo combate justamente aquilo que o governo promove”, disse Gabrielle Alves, pesquisadora da plataforma Cipó, organização dedicada ao clima, à governança e à construção da paz. “É assustador o que estamos vivendo, e não há previsão de melhora”.
Participação interditada
No que diz respeito à participação, o Acordo de Escazú permitiria ao Brasil aprimorar décadas de práticas. Um dos maiores marcos brasileiros da área é a Lei 6.938 de 1981, instituída em plena ditadura militar, que criou um modelo democrático de participação, com mecanismos para atividades como licenciamento, avaliação de impactos e zoneamento.
Uma das primeiras ações do governo Bolsonaro, ainda em abril de 2019, foi o chamado “revogaço”, decreto que extinguiu todos os conselhos do governo federal não assegurados por lei. De uma hora para a outra, órgãos como o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, a Comissão Nacional da Biodiversidade e a Comissão Nacional de Florestas foram extintos.
3º
é a posição do Brasil no ranking de países com o maior número de mortes de ambientalistas e de defensores de direitos humanos
Sobrou o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), garantido pela lei de 1981. Mesmo este espaço, no entanto, foi completamente desidratado em julho de 2019, quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reduziu seus membros de 96 para 23, tirando do órgão entidades civis e estados. Com isso, o poder de decisão ficou concentrado nas mãos do governo federal e de representantes do setor produtivo.
Os aprimoramentos previstos por Escazú incluem a obrigação da participação do público acontecer em momentos iniciais dos projetos com impactos ambientais. Em geral, o público só se envolve hoje em etapas avançadas, o que reduz as chances de mudar a tomada de decisão. Há também outras inovações, como o dever das autoridades de proporcionar o acesso à informação em termos claros e não técnicos.
”Quando há participação, a norma se torna legítima e tem mais chances de ser adotada”, disse Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA). “O fato de o Conama sempre ter tido representações de diferentes segmentos permitia discutir legislações de forma mais adequada, e isso chegava na ponta do processo depois”.
Transparência mais ampla com o Acordo de Escazú
Em termos de acesso à informação, Escazú tem uma abrangência mais ampla do que a atual legislação brasileira. O pacto torna necessário o acesso público a informações sobre riscos ambientais contidos em empreendimentos privados que impliquem no uso de recursos, serviços ou bens públicos.
O pacto também reforça a chamada transparência ativa, quando o Estado busca, por iniciativa própria, divulgar informações da qualidade ambiental de bens e serviços. Isto se liga diretamente à participação, e pode facilitar investimentos, conferindo maior segurança jurídica a grandes obras.
A transparência e a participação se traduzem em “maior capacidade de mediar, gerir e pactuar conflitos”, explica Renato Morgado, da Transparência Internacional Brasil. “Isso implica em calcular melhor custos da obra e atrasos, e ajuda que o processo de investimento ocorra com previsibilidade.”
Escazú e a proteção aos defensores ambientais
Do ponto de vista do acesso à justiça, a norma de maior repercussão no Brasil diz respeito aos defensores de direitos humanos em questões ambientais, disse Rubens Born, colaborador da Fundação Grupo Esquel Brasil que participou das nove sessões que levaram à assinatura do pacto.
Embora o Brasil não ratifique, o acordo serve como norma de fundamentação. Não tem obrigatoriedade, mas pode ser usado como fonte do direito
A violência continua muito presente na vida de defensores dos direitos humanos e ambientalistas brasileiros. Segundo a ONG Global Witness, 24 destas lideranças foram assassinadas no Brasil em 2019, o que faz do país o terceiro com maior número de vítimas, atrás só de Colômbia (64) e Filipinas (43). Segundo a ONG, 90% destes assassinatos no Brasil foram na Amazônia, e a população indígena é a mais vulnerável.
“A ratificação obrigaria o Brasil a não só ter a lei, porque já tem, mas a tomar medidas oportunas para investigar e punir quem comete os crimes. Com o acordo, esses casos não seriam só coibidos, mas investigados”, disse Born.
Perspectivas atuais para o Acordo de Escazú no Brasil
Todos os entrevistados pela reportagem são unânimes em afirmar que não veem possibilidade de ratificação do acordo durante o governo de Bolsonaro. Segundo Dort, todos os outros presidentes brasileiros desde o fim da ditadura militar, em 1985, ratificariam o acordo.
“Não tenho dúvidas de que, se o presidente fosse outro, o acordo passaria”, disse Dort. “Embora o cenário seja muito ruim, tenho esperanças de que parlamentares comprometidos possam reconhecer Escazú a partir de 2023, e então o Brasil possa se tornar um protagonista responsável”.
Antes disso, o acordo pode ter efeitos positivos para o país. Mesmo não vigente, o pacto pode ser citado em julgamentos.
“Embora o Brasil não ratifique, o acordo serve como norma de fundamentação. Não tem obrigatoriedade, mas pode ser usado como fonte do direito”, disse Silvia Capelli, procuradora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul especializada em Meio Ambiente.
Isto aconteceu no Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 5 de março, em uma ação que julgava a inconstitucionalidade do esvaziamento do Conama por Bolsonaro.
Ao justificar seu voto pela derrubada da ação presidencial, a ministra Rosa Weber citou o acordo, antes de dizer que o governo não tinha o direito de reduzir a participação no conselho.
O julgamento continua em andamento, e atualmente quatro juízes votaram pela derrubada da atitude de Bolsonaro, contra nenhum voto favorável ao presidente.