Justiça

Acordo de Escazú ganha força e já é aplicado em ações judiciais na América Latina

Tratado tem influenciado decisões na região, protegendo os direitos de comunidades e promovendo a justiça ambiental, enquanto Brasil não o ratificou
<p>Rosa da Silva Marques, cacica do povo Sateré Mawé, cuida de sua plantação próxima ao rio Anebá, no estado brasileiro do Amazonas. Indígenas denunciam não terem sido consultados previamente sobre um novo projeto de petróleo e gás na área — direito previsto pelo Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2pzw9vs">Bruno Kelly</a> / <a href="https://flickr.com/people/amazoniareal/">Amazônia Real</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/">CC BY-NC-ND</a>)</p>

Rosa da Silva Marques, cacica do povo Sateré Mawé, cuida de sua plantação próxima ao rio Anebá, no estado brasileiro do Amazonas. Indígenas denunciam não terem sido consultados previamente sobre um novo projeto de petróleo e gás na área — direito previsto pelo Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil (Imagem: Bruno Kelly / Amazônia Real, CC BY-NC-ND)

Já se passou mais de uma década desde o início das negociações do Acordo de Escazú, tratado ambiental da América Latina e do Caribe que visa melhorar o acesso à informação, enfrentar a violência desenfreada contra ativistas socioambientais e assegurar às comunidades o direito de consulta prévia, livre e informada sobre os impactos de grandes projetos em seus territórios. 

O acordo entrou em vigor em 2021 e, até o momento, foi ratificado por 16 países da região. A Dominica foi a última a fazê-lo, em abril. O Brasil é signatário, mas ainda não ratificou o Escazú. 

Embora a implementação do acordo ainda seja um processo em construção, ele já tem sido aplicado em ações ligadas à justiça ambiental. 

Em 2023, a Suprema Corte do Panamá declarou inconstitucional a renovação do contrato de uma mineradora canadense que queria seguir explorando cobre por mais 20 anos no país. O tribunal entendeu que a avaliação de impacto ambiental do projeto estava desatualizada e, portanto, violava o objetivo do acordo de fornecer acesso à informação ambiental sobre tais empreendimentos.

Em alguns países, os tratados internacionais são automaticamente integrados à legislação nacional e, portanto, podem ser aplicados em ações judiciais. Um exemplo disso é o México, onde a Suprema Corte suspendeu uma obra para expandir o porto de Veracruz, na costa leste — a decisão foi favorável às comunidades e ativistas que buscavam proteger os recifes de corais na região. 

Na Argentina, a Corte Federal de Mar del Plata bloqueou em 2022 um projeto de exploração offshore de combustíveis fósseis na região, em um processo movido pelo Greenpeace. A sentença destacou a falta de participação pública e de acesso à informação no processo, pré-requisitos exigidos pelo Acordo de Escazú. Porém, a decisão foi anulada em instâncias superiores. A Justiça argentina também rejeitou um pedido liminar do Greenpeace sobre a exploração, apesar de o Ministério Público ter indicado que a atividade não respeitava o Escazú.

Casos exemplares no Caribe

No Caribe, o Acordo de Escazú tem sido usado como escudo contra planos pouco transparentes de governos da região.

Em Antígua e Barbuda, dois cidadãos iniciaram uma batalha legal para barrar a construção de um aeroporto particular a serviço de resorts de luxo no país. Jacklyn Frank e John Mussington afirmam que o empreendimento — envolvido em casos de grilagem de terras — está destruindo florestas e manguezais.

O pedido da dupla antiguana, que alegou a falta de consulta prévia sobre o projeto, foi rejeitado pela Justiça. Porém, o Conselho Privado do Reino Unido — a Suprema Corte para membros da Commonwealth — discordou da decisão. O conselho publicou uma nova sentença em fevereiro assegurando a Frank e Mussington o direito de continuar na disputa legal — conforme previsto no Acordo de Escazú, ratificado por Antígua e Barbuda em 2020. 

A batalha agora retornará aos tribunais em uma nova ação legal. Mussington disse que a decisão evidenciou a falta de comprometimento do país caribenho com o tratado regional, embora tenha sido um de seus primeiros signatários — em 27 de setembro de 2018. “Enquanto apresentávamos esse questionamento ao governo [em 2020], eles estavam ratificando o Escazú”, observou ele. “Acho que, no futuro, eles provavelmente não cometerão esse erro”.

Príncipe Harry, do Reino Unido, passeia de barco pelos manguezais de Barbuda
Príncipe Harry, do Reino Unido, passeia de barco pelos manguezais de Barbuda. Segundo ambientalistas, os planos de um milionário britânico para construir uma residência de luxo na ilha ameaçam a reprodução de aves fragatas (Imagem: Chris Radburn / PA Images / Alamy)

O processo judicial movido por Frank e Mussington abre precedentes para que outros cidadãos contestem as decisões governamentais que prejudiquem o meio ambiente. Muitas dessas ações judiciais são apoiadas pela Rede de Ação Legal Global (Glan, na sigla em inglês).

Junto de George Jeffery, pescador e guia do santuário de aves de Barbuda, a Glan entrou com um processo contra a Autoridade de Desenvolvimento e Controle do país por ter aprovado a construção de uma residência de luxo de um milionário inglês em Cedar Tree Point, dentro de uma área protegida. Eles alegaram que o empreendimento ameaçava ninhos de tartarugas marinhas raras e a reprodução da fragata, pássaro considerado símbolo de Antígua e Barbuda.

Enquanto isso, a rede Ativistas da Terra em Granada (GLA, em inglês) entrou com uma ação contra o Departamento de Planejamento da ilha caribenha de Granada pela aprovação de três mega empreendimentos turísticos. A organização argumentou que as obras desmataram manguezais, impactaram espécies protegidas e restringiram ou negaram o trânsito de comunidades tradicionais. Uma audiência está marcada para outubro.

Sarah O’Malley, advogada da Glan, disse que o governo de Granada havia se baseado na decisão que rejeitou o caso de Barbuda: “A reviravolta no caso de Mussington significa que agora a GLA pode se concentrar no mérito da ação”.

Uma ação judicial semelhante será apresentada em Dominica, que está construindo um aeroporto internacional em uma área ecologicamente sensível.

Influência internacional

A pressão internacional tem sido um fator importante para o Acordo Escazú. O Chile, que havia rejeitado o tratado, tornou-se signatário e Estado-membro em 2022. No ano seguinte, o país foi responsabilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) por violar a liberdade de expressão de Carlos Baraona Bray, advogado condenado por difamação após acusar um senador de exercer pressão política para autorizar o corte ilegal de ciprestes na Patagônia.

Reunião entre representantes da Defensoria da Mulher Indígena e o novo governo da Guatemala, em maio
Reunião entre representantes da Defensoria da Mulher Indígena e o novo governo da Guatemala, em maio. No ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos mencionou o Acordo de Escazú em um caso referente às comunidades maias do país (Imagem: Governo da Guatemala, PDM)

Em sua decisão, a Corte destacou que o Escazú garante “um ambiente seguro e propício” para ativistas ambientais e determinou ações para protegê-los.

O acordo também foi brevemente mencionado em outras duas decisões da CorteIDH: uma contra o Estado peruano por violar o direito a um ambiente saudável da população na cidade minerária de La Oroya; e outra reconhecendo os direitos indígenas na Guatemala. Nenhum dos dois países ratificou o acordo. 

Viviana Krsticevic, diretora-executiva do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), disse ao Dialogue Earth que o Acordo de Escazú já é forte por si só, mas há iniciativas para reforçá-lo com outros instrumentos jurídicos internacionais.

É provável que o acordo seja mencionado no próximo parecer consultivo da Corte Interamericana sobre mudanças climáticas e direitos humanos, no qual o Cejil desempenhou um papel fundamental. Embora a principal tarefa da Corte seja defender a Convenção Americana  — o pacto de direitos humanos ratificado por 24 estados do hemisfério ocidental —, o Acordo de Escazú foi mencionado várias vezes em apresentações escritas e orais sobre esse parecer. 

“Esperamos que isso dê aos Estados das Américas um conjunto de obrigações claras com base em uma interpretação integrada da Convenção Americana e do Escazú”, disse Krsticevic.

A Fundação para o Meio Ambiente e Recursos Naturais (Farn), sediada na Argentina, também tem um caso pendente na Suprema Corte de seu país para unificar o entendimento sobre o Escazú e o Acordo de Paris. A Farn busca uma medida cautelar que impeça a exploração de combustíveis fósseis offshore até que os impactos ambientais sejam devidamente avaliados.

Cristian Fernández, coordenador jurídico da Farn, disse que as ações judiciais baseadas no acesso à informação são relativamente simples, mas que a aplicação de outros itens do Escazú pode ser mais difícil, incluindo o “princípio da não regressão” — pelo qual os Estados se comprometem a não retroceder em padrões regulatórios. É o que a Farn tenta defender em seu processo.

Uma das principais limitações do Acordo de Escazú é que ele não tem seu próprio tribunal, observou Krsticevic. Há apenas o Comitê de Apoio para sua Implementação e Cumprimento, definindo regras para as consultas públicas e outras recomendações, criado na mais recente conferência sobre o tratado.

Para que os tribunais realmente usem o acordo, ainda há uma enorme lacuna
Natalia Gomez, assessora para políticas de mudanças climáticas da EarthRights International

Natalia Gomez, assessora para políticas de mudança climática da EarthRights International e ex-representante do povo no Acordo de Escazú, disse que o comitê começará a atuar dois anos após a ratificação do acordo nos países. Embora o comitê ainda não tenha recebido denúncias formais, fontes consultadas pelo Dialogue Earth adiantaram que organizações estão prestes a fazê-lo.

Gomez destacou que alguns países resistiram à criação do comitê por temerem que os novos mecanismos atribuíssem mais responsabilidades aos Estados. Ela diz que o comitê não pode sancionar legalmente os governos, mas poderia ter um peso político e jurídico, considerando experiências com outros acordos internacionais, como a Convenção de Aarhus da União Europeia sobre o acesso a informações ambientais: “Muitas vezes, essas decisões são seguidas pelos tribunais”.

Ela acrescentou que ainda há muito trabalho a ser feito para adaptar o Judiciário ao Acordo de Escazú, algo em que muitas organizações estão trabalhando. Além disso, apesar de o acordo incentivar a criação de tribunais especializados em meio ambiente, poucos países da América Latina e do Caribe têm essas instâncias. “Para a aplicação direta e para que os tribunais realmente usem o acordo, ainda há uma enorme lacuna”, disse Gomez.