Justiça

Justiça brasileira avança no julgamento de danos climáticos

Brasil é pioneiro em abordagem para litígios climáticos, oferecendo aos juízes ferramentas para atribuir valor monetário aos danos provocados pelo desmatamento
<p>Reunião do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas aos Povos Indígenas, abril de 2024. Atualmente, o Brasil tem pelo menos 134 ações judiciais sobre o clima, muitas delas ligadas a reivindicações de povos indígenas (Imagem: Ana Araújo / CNJ)</p>

Reunião do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas aos Povos Indígenas, abril de 2024. Atualmente, o Brasil tem pelo menos 134 ações judiciais sobre o clima, muitas delas ligadas a reivindicações de povos indígenas (Imagem: Ana Araújo / CNJ)

Ativistas e representantes da sociedade civil ao redor do mundo têm recorrido à Justiça para tentar responsabilizar as grandes empresas poluidoras pelo agravamento das mudanças climáticas. Até agora, nenhuma ação judicial conseguiu vincular diretamente as emissões globais de uma empresa a impactos climáticos específicos. Porém, o último relatório anual da London School of Economics sobre litígios climáticos observa que “avanços importantes estão sendo feitos em casos envolvendo danos climáticos provocados por danos ambientais específicos”. O documento destaca principalmente os esforços do Brasil nessa área.

O país tem se mostrado um terreno fértil para litígios climáticos. Um banco de dados do grupo de pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), enumera pelo menos 134 ações judiciais ativas relacionadas ao clima. Isso faz do Brasil uma das nações com o maior número de litígios climáticos em andamento. 

Danielle Moreira, professora de direito da PUC-Rio que coordena o grupo, afirmou que não foi só a quantidade de casos que aumentou nos últimos anos, mas também houve uma mudança no tipo de ação apresentada. De acordo com ela, as referências às mudanças climáticas estão “se tornando mais diretas e explícitas”.

O CNJ indicou a todos os juízes brasileiros que é responsabilidade do Judiciário agir contra as mudanças climáticas globais
Patryck Ayala, professor associado da Universidade Federal do Mato Grosso

Essa mudança foi impulsionada por agentes públicos, explicou Rafaela Santos Martins da Rosa, juíza substituta do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ao contrário de outros países, onde a maioria das ações relacionadas ao clima é iniciada pela sociedade civil, no Brasil elas geralmente são movidas por promotores estaduais ou procuradores federais. 

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também desempenhou um papel importante nesse processo. Essa instituição pública tem a tarefa de assegurar a independência do Judiciário, conduzir processos disciplinares e criar normativas e diretrizes legais. Em 2019, o CNJ decidiu incorporar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU em suas diretrizes estratégicas, tornando-se o primeiro órgão judicial do mundo a fazê-lo.

Dois anos depois, o CNJ publicou uma resolução que estabelece uma Política Nacional do Poder Judiciário para o Meio Ambiente. Patryck Ayala, professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), considerou a resolução “surpreendentemente inovadora” para os padrões estabelecidos até então. “Ela cria uma diretriz nacional do CNJ para todos os juízes brasileiros, indicando a responsabilidade do Judiciário nas ações contra as mudanças climáticas globais”.

Novos protocolos para danos climáticos

Apesar dos avanços com a política nacional do CNJ, era necessária uma regulamentação que detalhasse como os juízes brasileiros poderiam aplicar isso na prática. Um grupo de trabalho foi criado para desenvolvê-la, incluindo acadêmicos, pesquisadores estrangeiros e representantes da Justiça federal e estadual de todas as regiões do Brasil. 

O primeiro protocolo do CNJ sobre o tema focava no uso de provas para julgar ações de danos ambientais — por exemplo, as imagens de sensoriamento remoto.

Em seguida, veio o segundo protocolo, que buscava explicar como os juízes poderiam medir os danos climáticos. O grupo analisou vários mecanismos de cálculo ao longo de dois anos. No fim de 2022, o CNJ realizou uma consulta pública sobre o tema, seguida de uma audiência pública em julho de 2023, onde ouviu o parecer de representantes da sociedade civil. “Eles deram contribuições técnicas fundamentais para a elaboração deste instrumento”, contou Moreira.

O protocolo resultante, publicado em 2024, fornece parâmetros concretos para medir os danos climáticos resultantes do desmatamento e das queimadas florestais em processos da esfera cível e criminal. “O protocolo teve o grande mérito de ser um documento do Judiciário brasileiro que reconhece a categoria de danos climáticos como um tipo separado e distinto de dano ambiental”, afirmou Rosa, atual vice-coordenadora do grupo de trabalho no CNJ. “Isso é histórico.” Em 3 de julho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos publicou um parecer consultivo com um entendimento semelhante. 

Em 23 de julho, foi a vez da Corte Internacional de Justiça emitir seu parecer consultivo sobre as obrigações climáticas dos Estados, reforçando que os países signatários do Acordo de Paris têm a obrigação legal de “proteger o meio ambiente das emissões de gases de efeito estufa”. 

Para avaliar os danos climáticos, o tamanho da área desmatada é inserido em uma calculadora de carbono desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Isso determina quanto do estoque de carbono foi perdido em qualquer bioma brasileiro.

Depois, isso é traduzido em um valor monetário, o que, segundo Rosa, foi um “ponto de difícil consenso”. O grupo queria incluir o custo socioambiental do carbono — o valor real do impacto da emissão de uma tonelada adicional de dióxido de carbono na atmosfera —, mas nenhum órgão público brasileiro havia definido um preço para isso. 

Como resultado, o protocolo conclui que os juízes devem usar um preço mínimo de US$ 5 (cerca de R$ 25) por tonelada de CO₂ equivalente. Esse valor foi estipulado há mais de 15 anos no acordo original do Fundo Amazônia, mecanismo para arrecadar doações de países e empresas para promover a redução das emissões decorrentes do desmatamento e da degradação florestal na Amazônia.

Estimativas posteriores sobre o custo social do carbono, tanto de pesquisas científicas quanto elaboradas por outros países, têm sido significativamente mais altas. Conforme o protocolo, um valor maior deve ser considerado no futuro, assim que o governo federal definir um parâmetro oficial.

indígenas assistem à reunião do Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário
Reunião do Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário, abril de 2024. Entre 2023 e 2024, o CNJ criou um conjunto de protocolos legais para orientar os juízes brasileiros em casos de litígios ambientais e climáticos (Imagem: Ana Araújo / CNJ)

Após a publicação dos protocolos, o CNJ mudou o nome de sua política para incluir explicitamente os assuntos climáticos — agora, é a Política Nacional do Poder Judiciário para o Clima e o Meio Ambiente. Também começou a treinar juízes e criou um fórum para monitorar se eles estão cumprindo as normas. 

Moreira espera que o segundo protocolo “oriente a prática judicial e ajude os litigantes a formular suas reivindicações de forma mais eficaz”. Rosa acredita que isso tornará as sentenças mais justas.

Protocolo aplicado na prática

Essas mudanças já estão começando a aparecer no sistema jurídico. Entre novembro e dezembro de 2024, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com 193 ações judiciais contra mais de 600 desmatadores. Somados, os processos cobram uma indenização de R$ 1,3 bilhão por danos ambientais. 

Enquanto isso, juízes de primeira instância já começaram a usar a metodologia em suas decisões, principalmente em casos relacionados à Amazônia. “Essa nova rodada de processos ainda não teve uma decisão final da Justiça”, destacou Rosa, “mas a movimentação interna do Judiciário sinaliza um esforço conjunto para garantir que essas ações sejam julgadas rapidamente”.

Moreira destaca um conjunto de 22 processos movidos pelo MPF após uma investigação sobre o desmatamento ilegal no Projeto de Assentamento Agroextrativista Antimary, no município de Boca do Acre, no estado do Amazonas. A área ocupada por comunidades extrativistas tradicionais pertence à União e é administrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Autoridades estimam que o desmatamento no local tenha resultado na emissão de quase 79 mil toneladas de CO₂ equivalente. Em abril, o fazendeiro Paulo de Lima Paulo foi condenado a pagar R$ 1.957.677,57 por danos climáticos no assentamento, valor definido com base no custo de US$ 5 por tonelada de CO₂ equivalente, parâmetro usado pelo protocolo do CNJ.

Aldeia indígena Tixuiri em Formoso do Araguaia, estado de Tocantins
Aldeia indígena Tixuiri em Formoso do Araguaia, estado de Tocantins. Um novo protocolo sobre litígios climáticos conclui que os juízes brasileiros devem considerar um custo mínimo de US$ 5 por tonelada de CO₂ equivalente emitida (Imagem: G. Dettmar / CNJ)

Antes da elaboração do protocolo, alguns juízes ainda se recusavam a definir a responsabilidade por danos climáticos causados por emissões decorrentes do desmatamento ou incêndios, alegando, entre outros motivos, a falta de provas periciais. Mas, segundo Rosa, não há registro de nenhum juiz brasileiro que tenha se recusado a aplicar o protocolo desde sua publicação. 

Por sua parte, o Ministério Público tem buscado avaliar os danos climáticos com valores muito superiores ao limite mínimo do protocolo. 

Um caso em andamento busca a condenação do fazendeiro Dirceu Kruger por desmatamento em terras públicas no estado do Amazonas. Kruger usou motosserras para limpar a vegetação, ateou fogo para limpar a área e transformou tudo em pastagens para o gado. Imagens de satélite mostram a escala dos danos causados pelo fazendeiro, que admitiu sua culpa em vídeo.

A Advocacia-Geral da União pediu que fosse considerado um custo de 60 euros por tonelada de carbono (cerca de R$ 324 à época), conforme o valor calculado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. No ano passado, a Justiça Federal do Amazonas congelou R$ 292 milhões em bens de Kruger enquanto o processo aguarda julgamento.

Efeito cascata

O protocolo do CNJ foi elaborado especificamente para combater o desmatamento e os incêndios florestais. Porém, ele reconhece que muitas ações humanas geram emissões de gases de efeito estufa ou danificam estoques de carbono, afirmando que qualquer uma dessas situações poderia dar origem a uma ação judicial. 

No estado do Paraná, já há uma ação em curso que pede indenização por danos climáticos associados às atividades de uma usina termelétrica a carvão. O Instituto Arayara alega que a termelétrica opera há anos sem as licenças necessárias. No processo, a organização desafia tanto a operadora quanto as autoridades estaduais a provar a legalidade da usina.

Os juízes, observou Rosa, ainda podem alegar que não há metodologia para calcular os danos climáticos para além dos casos de desmatamento e incêndios. O CNJ também não definiu os critérios para calcular os danos climáticos causados pelas emissões de metano da pecuária ilegal. “Mas deveria, porque é um gás muito relevante no cenário das emissões brasileiras”, completou a juíza federal. 

Embora o protocolo tenha como objetivo combater ilegalidades, a magistrada disse que o Ministério Público poderia, em teoria, tentar aplicá-lo para atividades legais que geram um enorme impacto climático.

Programa de Justiça Itinerante do Brasil na aldeia de Camicuã, no estado do Amazonas
Programa de Justiça Itinerante do Brasil na aldeia de Camicuã, no estado do Amazonas. O protocolo do CNJ reconhece que muitas ações humanas geram emissões de gases de efeito estufa ou danificam estoques de carbono, sendo que ambas as situações poderiam dar origem a ações judiciais (Imagem: Leticia Antun / CNJ)

A indenização definida pelos tribunais por crimes ambientais pode ser destinada a qualquer órgão público ou privado cujo objetivo seja a proteção do meio ambiente. Eles podem priorizar projetos relacionados às mudanças climáticas, sobretudo aqueles que envolvem energia renovável. Em ações civis, os juízes podem direcionar os valores arrecadados com as indenizações para o Fundo Nacional de Mudanças Climáticas.

Resta saber qual será o efeito prático do protocolo do CNJ sobre o desmatamento no Brasil. “O sucesso desses casos será avaliado pelo próprio CNJ, verificando se a responsabilidade foi corretamente atribuída e se os recursos das condenações foram utilizados para a mitigação climática”, afirmou Rosa.

Além do Brasil

Embora o Brasil seja único no desenvolvimento de uma metodologia nacional tão completa, tribunais indonésios também atribuíram um valor monetário aos danos climáticos. A Justiça local acatou pedidos de indenização por danos climáticos provocados pela destruição de florestas para o plantio de óleo de palma, bem como pela emissão de CO₂ decorrente de incêndios e destruição de turfeiras.

A diretriz estabelecida no protocolo do CNJ para determinar o valor monetário dos danos climáticos poderia ser facilmente aplicada em outros países, disse Rosa. Porém, seria necessário adaptá-la para avaliar com precisão o impacto climático de diferentes biomas, pois a capacidade de armazenamento de carbono varia consideravelmente conforme o ecossistema. “Em teoria, qualquer outra jurisdição poderia ter casos semelhantes aos exemplos brasileiros”, afirmou Rosa, “sobretudo em países onde o desmatamento é responsável por uma parte significativa das emissões de gases de efeito estufa”.

O professor Patryck Ayala, da UFMT, concordou que o protocolo poderia ser aplicado em outros países, já que torna a ciência existente mais acessível aos tribunais e ajuda a orientar as decisões dos juízes, em vez de interferir em sua independência: “Modelos semelhantes, se adotados por outros países, devem propor normas a serem seguidas por juízes e deve haver esforços para a formação contínua e avaliação desses juízes em relação ao seu trabalho”.

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