Desde a independência do Suriname da Holanda, em 1975, os povos indígenas e quilombolas do país têm lutado para que seus direitos à terra sejam reconhecidos.
“Somos os habitantes originais do país, e nossos direitos devem ser protegidos”, disse Sergio Jubithana, em uma coletiva de imprensa da Associação de Chefes de Aldeias Indígenas do Suriname (Vids, na sigla em neerlandês) em fevereiro. Ele é o chefe — ou kapitein — de Hollandse Kamp, aldeia indígena no distrito de Para, no norte do país, onde o governo tem liberado novas concessões de exploração ao setor madeireiro.
“É lamentável ver a maneira pela qual somos tratados”, acrescentou Jubithana. “Mas não vamos mais aceitar que nossos direitos sejam esmagados”.
O Suriname é o único país da América do Sul que ainda não reconheceu os direitos de povos tradicionais à terra em sua Constituição. Apesar disso, uma decisão histórica da Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, em 2007, que o país demarcasse o território do povo Saamaka (também conhecido como Saramaka), um dos seis grandes grupos quilombolas do Suriname. Na época, as comunidades denunciaram os impactos de décadas de projetos de exploração.
Quase 17 anos após a sentença, ainda não foi criada nenhuma legislação para assegurar os direitos coletivos dos povos indígenas e quilombolas. Um projeto de lei nesse sentido foi apresentado em 2021 no Congresso surinamês, mas não saiu do papel. Nos últimos anos, as tensões com o governo escalaram devido às concessões para a exploração de ouro e madeira nos territórios dos povos tradicionais, impactando seus meios de subsistência e modos de vida.
Sem demarcação, sem serviços básicos
Cerca de 4% da população do Suriname é indígena, de acordo com último censo, realizado em 2012: são 20 mil pessoas distribuídas entre 50 aldeias. Sem terras legalmente reconhecidas, essas comunidades enfrentam problemas de infraestrutura básica, como a falta de escolas e hospitais, e não têm acesso a crédito ou investimentos.
O caso dos quilombolas surinameses é semelhante. Descendentes de africanos que escaparam de regimes escravocratas na América do Sul, eles representam o segundo maior grupo étnico do país: são 120 mil pessoas concentradas nos distritos do interior, longe da capital Paramaribo, principal porto e centro urbano do Suriname.
Além dos Saamaka, muitas outras comunidades tradicionais enfrentam há anos os impactos de atividades como a mineração e extração madeireira, provocando o deslocamento forçado de pessoas e a poluição das fontes de água.
Com essas operações permitidas por meio de concessões, essas áreas se tornaram proibidas para os povos indígenas realizarem atividades tradicionais de subsistência. “Agora vivemos fora de nossas terras agrícolas, e os homens da aldeia têm que viver da caça e da pesca”, disse Chevani Kassels, presidente de uma organização de mulheres em Pikin Saron, aldeia indígena no norte do distrito de Para. “Se todas as nossas florestas forem cedidas a essas concessões, como vamos sobreviver?”.
Em maio de 2023, o conflito contra o governo estourou de vez: protestos em Pikin Saron resultaram na morte de duas pessoas. Os manifestantes reivindicavam seus direitos à terra e expressaram sua insatisfação com a mineradora estatal Grassalco, que não teria cumprido as promessas de levar mais empregos à aldeia, onde uma mina de ouro foi aberta.
“Depois das manifestações, nada mudou: ainda vivemos na pobreza, não há emprego para os homens da aldeia, então é difícil para eles sustentarem suas famílias”, contou Angela Zaalman, membro do conselho da aldeia. Ela diz que os projetos de exploração continuam operando normalmente, apesar das promessas do presidente Chan Santokhi após as mobilizações. “Dezenas de caminhões de madeira passam por aqui todos os dias, bem na nossa frente, mas o desenvolvimento de nossa comunidade está atrasado”.
Luta indígena e quilombola
Os seis grandes grupos quilombolas do Suriname, incluindo os Saamaka, mantêm até hoje um modo de vida tradicional e, assim como muitos indígenas, vivem da caça, pesca e medicina ancestral. Décadas de discriminação e negligência do governo em áreas como educação e emprego contribuíram para que essas populações ficassem entre as mais marginalizadas do país: 74% dos quilombolas e 65% dos indígenas do Suriname são pobres, segundo uma pesquisa divulgada em 2020 pela Vids.
Quase todas as aldeias indígenas e quilombolas dependem de subsídios para resolver demandas de infraestrutura local. Além disso, muitas comunidades não têm acesso a serviços básicos, como educação, saúde, eletricidade e água potável. Em muitas partes do país, a água dos rios é poluída pelo mercúrio usado na mineração de ouro, atividade geralmente desenvolvida por grandes empresas, forçando o deslocamento de moradores.
Na comunidade quilombola de Nieuw Koffiekamp, cem quilômetros ao sul de Paramaribo, no distrito de Brokopondo, moradores descrevem seu sentimento de impotência.
Em 1994, a aldeia foi incluída em uma área de mineração de ouro concedida à canadense Golden Star Resources, e os moradores resistiram à tentativa inicial de realocação. Os conflitos e as ameaças persistiram por anos, mesmo que a mina tenha trocado de mãos diversas vezes. Desde 2023, o local faz parte do portfólio da Zijin Mining Group, explorado sob o nome de Rosebel Gold Mine.
Chester Darius, líder comunitário que participou dos protestos, diz que os jovens do vilarejo agora exigem prioridade na seleção de funcionários para trabalhar na mina de ouro, considerando o impacto das atividades de mineração em suas vidas.
“Os jovens da aldeia não têm emprego. É por isso que estamos sentados aqui, olhando uns aos outros [sem fazer nada]”, lamentou Darius. “Esperamos que o governo intervenha antes que os protestos aumentem”.
Ativistas de Nieuw Koffiekamp reivindicam à Zijin autorização para que os moradores trabalhem com a mineração de pequena escala em áreas inativas da zona de concessão da empresa, onde atualmente não há mineração de ouro. Além disso, pedem que a empresa pavimente a estrada que conduz à aldeia.
Apesar dos novos protestos dos moradores em janeiro, “nada foi resolvido”, disse Darius. “Estamos contando que a empresa faça sua parte. Caso contrário, entraremos em conflito novamente”.
O Dialogue Earth entrou em contato com as mineradoras Zijin e a Grassalco, mas não obteve resposta até o dia da publicação.
Dados do governo mostram que o ouro representa mais de 80% das exportações do Suriname, enquanto a mineração responde por pouco mais de 30% das receitas da União. Não há dados oficiais sobre o status do comércio de madeira.
Diante desse cenário, o reconhecimento dos direitos à terra é um caminho necessário para enfrentar as injustiças nas zonas mais pobres do país, “permitindo com que os povos nativos e tradicionais não dependam mais do governo”, disse Ruben Ravenberg, secretário da Marron Kompas, fundação que defende o desenvolvimento sustentável no interior do Suriname.
Reconhecimento legal: história de longa data
Embora tenha havido uma onda de protestos nos últimos meses pela demarcação dos territórios indígenas e quilombolas no Suriname, essa causa remonta à independência do país há meio século. Desde então, a ex-colônia neerlandesa vê mobilizações de comunidades do interior do país em busca do reconhecimento legal de seu território.
Uma das primeiras manifestações que reivindicaram esse direito ocorreu justamente um ano após o Suriname se tornar uma nação soberana. Em dezembro de 1976, indígenas da organização Kano, que representava os povos Kaliña e Lokono, caminharam quase por 140 quilômetros da cidade de Albina até Paramaribo como forma de protesto.
Nos anos seguintes, entretanto, sucessivos decretos e leis serviram apenas para tornar as florestas e recursos naturais propriedade do Estado, inclusive áreas habitadas por comunidades indígenas e quilombolas.
Recentemente, o governo também anunciou a intenção de transformar várias centenas de milhares de hectares de florestas em terras agrícolas, o que tem preocupado ativistas e organizações ambientais. O pequeno país sul-americano é frequentemente descrito como o país mais arborizado do mundo, com florestas cobrindo mais de 90% de sua área terrestre.
Em novembro de 2015, oito anos após o veredito de Saamaka, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu em favor da organização Kano e dos povos indígenas do Suriname, em um caso que considerou o Estado culpado de violar os direitos humanos ao impedir que os povos acessassem partes de suas terras ancestrais. Ambas as decisões determinaram que o Estado reconhecesse o direito à terra dos povos indígenas e dos quilombolas em um prazo de um ano e meio. No entanto, quase dez anos após a última decisão, o Suriname ainda não implementou a sentença, nem emitiu nenhuma declaração oficial sobre o assunto.
Hoje, a luta continua. “A coisa mais importante que queremos é o reconhecimento de nossos direitos à terra. Depois disso, podemos e vamos desenvolver nossos territórios”, disse Hugo Jabini, especialista jurídico e membro da Associação Comunitária Saamaka.
Jabini foi uma das figuras responsáveis por levar o caso Saamaka ao tribunal internacional. Ele explicou que sua organização iniciará em breve uma campanha de conscientização em todo o país, enfatizando a importância dos direitos à terra para as comunidades indígenas e quilombolas.
“Vai ser difícil, mas somos obrigados a continuar com essa luta”, acrescentou Jabini.