Oceanos

Conferência da ONU firma acordo vinculante para proteger alto-mar

Tratado histórico cria marco para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade nas áreas internacionais de mar aberto
<p><span style="font-weight: 400;">Novo tratado prevê proteção de áreas marinhas em alto-mar para preservar espécies migratórias como a tartaruga-de-pente (Imagem: Tommy Trenchard / Greenpeace)</span></p>

Novo tratado prevê proteção de áreas marinhas em alto-mar para preservar espécies migratórias como a tartaruga-de-pente (Imagem: Tommy Trenchard / Greenpeace)

Após duas décadas de negociações, quase 200 países aprovaram um tratado de caráter vinculante para proteger a vida marinha em alto-mar. Essas vastas áreas do oceano cobrem cerca da metade da superfície do planeta e, até agora, muitas seguem desregulamentadas.

O acordo foi finalizado no sábado (4) à noite, em Nova York. Foram duas semanas de tratativas na sede da ONU e várias rodadas de discussões fracassadas desde 2018. Rena Lee, presidente da conferência, comemorou o término das negociações. 

“O navio chegou à costa”, disse Lee, agradecendo o comprometimento de vários delegados que permaneceram dois dias seguidos nas salas de reuniões, inclusive durante a noite, para concluir o acordo. “O sucesso também é de vocês”.

Rena Lee fazendo sinal de positivo
Rena Lee, presidente da conferência da ONU sobre a biodiversidade em alto-mar, na sessão de encerramento (Imagem: Mike Muzurakis | IISD/ENB)

As zonas de alto-mar, também conhecidas como águas internacionais, abrigam habitats únicos para espécies e ecossistemas, contribuem para a pesca e absorvem emissões de gases de efeito estufa. Mas também são vulneráveis às atividades humanas mais invasivas, como a pesca industrial e, possivelmente no futuro, à mineração em alto-mar. Há também uma crescente demanda por “recursos genéticos marinhos” — principalmente sequências genéticas de plantas e animais marinhos de grande valor para as indústrias farmacêutica, química e de biocombustíveis.

O tratado BBNJ (sigla em inglês para “Biodiversidade Marinha de Áreas fora da Jurisdição Nacional”) estabelece um marco para a conservação e o uso sustentável da vida marinha em alto-mar. O acordo terá um papel crucial no cumprimento da meta 30×30, que visa proteger 30% do solo e dos oceanos até 2030, um compromisso global firmado na última COP15, em dezembro.

O novo documento “vai permitir o tipo de monitoramento e integração necessários para que o oceano siga proporcionando os benefícios socioeconômicos e ambientais dos quais a humanidade desfruta atualmente”, disse Jessica Battle, especialista em política oceânica na WWF.

Detalhes do acordo

Um dos efeitos mais significativos do novo tratado é que os países podem criar áreas marinhas protegidas (AMPs) em alto-mar. Embora essas águas representem quase dois terços dos oceanos, apenas 1% está sob proteção.

1%


das águas em alto-mar está sob proteção

Os países deverão apresentar suas propostas de AMPs para votação entre os signatários do acordo. Será necessário atingir uma maioria qualificada de três quartos dos votos.

Dar a possibilidade de criar AMPs em alto-mar, mesmo sem consenso, é “uma das grandes vitórias do acordo”, afirmou Andrew Deutz, diretor de política global da organização Nature Conservancy.

Grupos de conservação, governos e cientistas já sugeriram áreas que deveriam ser priorizadas para as novas AMPs em alto-mar: o grupo Pew Charitable Trusts identificou dez locais no mundo com “características dignas de proteção”, incluindo as cordilheiras submarinas de Salas e Gómez e de Nazca, propostas pelo Chile em 2021.

O acordo BBNJ também pede aos Estados signatários que realizem estudos de impacto ambiental (EIAs) para as atividades em alto-mar com potenciais efeitos, mesmo que pequenos ou temporários, sobre o ambiente marinho. 

Porém, alguns detalhes do texto sobre os EIAs preocupam especialistas. Órgãos que já trabalham na regulamentação de atividades potencialmente prejudiciais — por exemplo, a mineração em alto-mar, avaliada pela Autoridade Internacional do Fundo Marinho (ISA, na sigla em inglês) — podem seguir funcionando normalmente, sem precisar adotar as regras estabelecidas pelo tratado para os EIAs. 

“É uma lacuna que os países poderiam ter preenchido — não é tão forte quanto gostaríamos”, avaliou Veronica Frank, assessora política do Greenpeace. Ela classificou as análises de impacto ambiental da ISA como “muito ruins e pouco transparentes”.

Manifestante ao lado do navio Hidden Gem
Manifestante ao lado do Hidden Gem, primeiro navio autorizado pela ISA a testar seu equipamento de mineração na região de Clarion-Clipperton, no Oceano Pacífico (Imagem: Charles M. Vella / Alamy)

Um dos pontos de atrito entre países desenvolvidos e em desenvolvimento foi o compartilhamento dos recursos genéticos marinhos em alto-mar, bem como os potenciais lucros envolvidos. Para sanar a questão, os países signatários concordaram em criar um mecanismo que distribuirá equitativamente quaisquer benefícios financeiros decorrentes do uso desses recursos — um fundo que será discutido mais detalhadamente em uma próxima conferência.

Embora alguns detalhes e dúvidas sobre a implementação do acordo sigam pendentes, o tratado BBNJ tem sido bem recebido pelas partes envolvidas.

“O texto oferece a oportunidade de avançar significativamente na proteção do alto-mar”, destacou Torsten Thiele, diretor da Global Ocean Trust. “Mas ele precisa de recursos para a gestão eficaz do ecossistema marinho”. 

Para Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, o oceano “deu tanto à humanidade” que agora é “hora de retribuir”. A União Europeia (UE) e seus membros fazem parte da Coalizão de Alta Ambição, grupo de 52 países que apoiam o tratado.

Monica Medina, uma das subsecretárias de Estado dos EUA, também saudou o acordo: “O mundo se reuniu para proteger o oceano em benefício de nossos filhos e netos”.

Já Rússia e Nicarágua foram reticentes em relação ao texto final. Julian Chen, pesquisador da Universidade Macquarie, da Austrália, acrescentou que, de início, a China também demonstrou preocupação sobre o acordo, mas acabou se envolvendo bastante no processo enquanto membro da coalizão.

Rumo à implementação

O tratado ainda será formalmente adotado na próxima sessão na ONU e, em seguida, precisa aguardar sua aprovação legal nos países-membros. O acordo entra em vigor dois meses após ser ratificado por pelo menos 60 países. Organizações e especialistas em conservação marinha esperam que esse processo dure no máximo um ano, já que é preciso aproveitar o timing enquanto a proteção dos oceanos segue no foco das discussões globais.

Recentemente, a UE prometeu quase 820 milhões de euros (R$ 4,5 bilhões) para a proteção dos oceanos. Além disso, o Fundo Bezos para a Terra e a Fundação Gordon e Betty Moore se comprometeram com um aporte de US$ 5 milhões (R$ 25 milhões) para apoiar nações em desenvolvimento na adesão ao tratado.

elizabeth mrema na conferência sobre os oceanos da ONu
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“Os governos e a sociedade civil agora devem assegurar que o acordo seja adotado, entre em vigor rapidamente e seja devidamente implementado para salvaguardar a biodiversidade do alto-mar”, disse Liz Karan, da Pew Charitable Trusts.

Rebecca Hubbard, diretora da High Seas Alliance, rede com mais de 40 organizações de conservação, disse que tais entidades vão acompanhar de perto os países integrantes da Coalização de Alta Ambição nas tarefas de adoção, ratificação e identificação de áreas de alto-mar que precisem de proteção.

No ano passado, um grupo de especialistas marinhos destacou em um artigo que, além de colocar o acordo em vigor, os países devem garantir ampla participação social e implementação efetiva. 

“Os impactos crescentes das mudanças climáticas e das atividades humanas sobre o oceano global exigem ações urgentes”, escreveram os cientistas. “Por isso, devemos começar a trabalhar na implementação do acordo BBNJ o mais rápido possível para preservar a saúde dos oceanos em benefício das gerações presentes e futuras”.