Energia

Seca intensa expõe fragilidade do setor energético do Peru

Enquanto peruanos sentem impactos na agricultura e na tarifa de luz, especialistas criticam falta de planejamento em energia renovável
<p>Hidrelétrica Gallito Ciego em Cajamarca, no Peru, operada pela norueguesa Statkraft. Devido à seca, a geração de energia hidrelétrica no Peru caiu 29% em dezembro de 2022, comparada ao mesmo mês de 2021 (Imagem: Eduard Goričev / Alamy)</p>

Hidrelétrica Gallito Ciego em Cajamarca, no Peru, operada pela norueguesa Statkraft. Devido à seca, a geração de energia hidrelétrica no Peru caiu 29% em dezembro de 2022, comparada ao mesmo mês de 2021 (Imagem: Eduard Goričev / Alamy)

As plantações secaram na região de Puno, no sul do Peru. “Está começando a chover só agora”, diz Jaén Cañazaca, agricultor e presidente da Cecovasa, cooperativa de produtores de café na província de Sandia. É fim de março, e o país enfrenta há vários meses sua pior seca dos últimos 58 anos.

“A falta de chuva já afetou a qualidade de nossos grãos de café, tornando-os tão pequenos que parecem trigo”, diz Cañazaca, que também cultiva batatas e quinoa, culturas comuns nessa região dos Andes. O agricultor calcula que a seca dos cinco meses anteriores deve arruinar mais de 16 mil hectares de plantações em Puno, onde houve 70% de redução das chuvas em março, em um momento crítico para a produção agrícola.

A estiagem não é um incidente isolado. O Peru sofreu pelo menos dez episódios de seca severa entre 1981 e 2018, segundo o Senamhi, serviço meteorológico do país. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, o verão de 2022-23 foi o terceiro consecutivo em que o Peru enfrentou o estresse hídrico, impulsionado por uma sequência de três anos seguidos de La Niña — o fenômeno provoca o resfriamento das águas do Oceano Pacífico equatorial, deixando o clima mais frio e seco na região próxima.

Além do impacto nas plantações, a seca também fez soar o alarme sobre os efeitos na geração de energia no Peru, onde quase metade do fornecimento nacional de eletricidade depende de hidrelétricas. Nos últimos meses, os peruanos sentiram as consequências dessa forte dependência.

Dependência cara

Nos períodos de seca, algumas das mais de 200 usinas hidrelétricas do Peru não conseguiram produzir energia suficiente para atender à demanda nacional. “Sofremos cortes de energia, o que normalmente não acontece em Puno”, diz Cañazaca, referindo-se à falta de energia em novembro do ano passado.

Quando as hidrelétricas não geram energia suficiente, o país geralmente recorre à queima de diesel, uma fonte cara e poluente. Na atual seca, a geração hidrelétrica chegou a cair 29% em dezembro de 2022, em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Enquanto isso, as usinas térmicas a gás natural aumentaram a produção em 76%, e as usinas a diesel em 208%, de acordo com dados do Ministério de Minas e Energia do Peru (Minem).

“O atraso das chuvas forçou o uso de diesel por quase um mês”, diz Roberto Tamayo, engenheiro e ex-diretor de eletricidade da Minem.

Segundo Tamayo, isso já afetou os “usuários livres” — grandes consumidores de energia, como shoppings, indústrias, mineradoras e outras grandes empresas que contratam o fornecimento diretamente nos mercados atacadistas. Em dezembro passado, eles pagaram US$ 86,30 por megawatt-hora, quase o triplo do que foi pago em julho de 2021, quando a tarifa era de US$ 30.

Embora o impacto tenha sido menor para outros consumidores e variado conforme a região, as tarifas de eletricidade aumentaram em média 8,56% em 2022, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Informática.

Cañazaca conta que ele e seus vizinhos sofreram o aumento na tarifa de luz e que, como agricultor, sente as consequências da seca de diferentes maneiras. A situação dele segue complicada apesar do subsídio do governo para as famílias de baixa renda que consomem menos de 140 quilowatts-hora por mês, lançado em fevereiro.

Corrida por energias renováveis

Para Brendan Oviedo, presidente da Associação Peruana de Energias Renováveis (SPR), a dependência do país nas hidrelétricas está se tornando insustentável com o avanço da crise climática. “A adoção da energia renovável não pode esperar”, diz. Sem essa transição, a queima de diesel pode se tornar um recurso permanente para suprir o sistema elétrico, alerta o Coes, órgão que coordena o setor no país.

Esse é um cenário preocupante em um país onde as fontes eólica e solar respondem por apenas 3% e 2% da capacidade instalada, respectivamente. Juntas, geram pouco mais de 3% da eletricidade do país — as usinas hidrelétricas e termelétricas são as principais fontes.

Esses números destacam o atraso peruano na América Latina, cujo potencial é ser líder em geração eólica e solar, de acordo com um relatório do Global Energy Monitor. Por enquanto, essa corrida é liderada pelo Brasil, que tem uma capacidade combinada de energia eólica e solar de 27 gigawatts (GW). Na sequência, vem o México, com 20 GW; o Chile, 10 GW; a Argentina, com 5 GW; e o Uruguai, com 2 GW.

Se o Peru desenvolver novos projetos de energia renovável, poderá se juntar a essa lista e até mesmo ultrapassar a Argentina, segundo o mesmo estudo. De fato, a própria SPR estima que o Peru deva receber cerca de US$ 23 bilhões em investimentos em energias renováveis nos próximos dez anos, o que geraria mais de 120 mil empregos.

Renováveis para o longo prazo

Especialistas concordam que a falta de planejamento de longo prazo atrasa a transição energética do Peru. “Muitos países optaram por ter uma estratégia energética desde o início, mas o Peru não”, diz Tamayo, ex-diretor da Minem. “Houve esforços por parte de empresas para tentar elaborar um plano de transição, mas isso não se traduziu em um documento oficial do governo”.

Brendan Oviedo, da SPR, aponta o Chile como um exemplo a ser seguido: o país estabeleceu metas ambiciosas em sua nova política energética, como gerar 70% ou mais de sua eletricidade a partir de energia renovável e atingir a neutralidade de carbono até 2050.

“No Chile, eles têm uma política que trouxe bilhões de dólares de investimento anual na última década”, explica o especialista, destacando o contraste com o Peru, que não atualiza sua Política Energética Nacional desde 2010. “Aqui [no Peru], há muitos objetivos individuais, mas nenhum processo de planejamento energético de médio e longo prazo”.

Houve esforços para elaborar um plano para nossa transição, mas isso não se traduziu em um documento oficial
Roberto Tamayo, engenheiro e ex-diretor de eletricidade da Minem

Atualmente, estão sendo discutidas reformas regulatórias que facilitem a participação de usinas eólicas e solares nas licitações oferecidas pelas distribuidoras de eletricidade. No momento, esses processos exigem que a energia comprada esteja associada a uma fonte de energia constante ou controlável, o que limita a participação de renováveis, já que sua produção varia com as flutuações de sol e vento.

Para reverter essa situação, a Minem apresentou um projeto de lei no Congresso peruano que, nas palavras de Oviedo, “ajudaria a reduzir as tarifas de eletricidade e não deveria ter oposição de nenhum lado”. Entretanto, a atual crise política do país impediu que a proposta fosse debatida e avançasse.

Investimento chinês

Apesar do interesse das empresas chinesas em investir em projetos de energia renovável na América Latina, no Peru esses investimentos têm se concentrado em infraestrutura e usinas hidrelétricas, explica Rebecca Ray, pesquisadora sênior do Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston.

Mesmo a Luz del Sur — concessionária peruana que detém mais de 30% do mercado de distribuição elétrica e cujo acionista majoritário é a China Yangtze Power — não planeja iniciar projetos solares e eólicos antes de 2024, segundo palavras de seu diretor-geral, Mario Gonzales del Carpio, em entrevista à revista Minería & Energía.

Além disso, a italiana Enel anunciou recentemente sua saída do Peru, declarando que deseja se concentrar em mercados onde “os marcos legais apoiem uma transição energética clara, ordenada e acelerada”. A empresa vendeu suas ações para a China Southern Power Grid International. A transação aguarda autorização do governo e deixaria duas estatais chinesas no comando da produção e fornecimento de 70% da energia do Peru, embora isso não garanta mais investimentos em energias renováveis.

Ray concorda que o país precisa de um marco legal sólido para dar início aos projetos de renováveis. “Isso é algo que precisa ser feito, porque o investimento não virá apenas porque o país tem sol e vento”, diz pesquisadora, acrescentando que as empresas chinesas entenderam que a América Latina quer ser mais do que fornecedora de matérias-primas. “Elas estão, no mínimo, dispostas a apoiar a ideia”.