Uma tradição antiga do povo indígena Tohono O’odham é viajar pelos desertos do noroeste do México em busca de sal. As peregrinações duram semanas até chegar às salinas próximas à costa, que compreende o Golfo da Califórnia.
As expedições são essenciais na cultura e modo de vida dos Tohono O’odham. O sal serve para rituais sagrados, além de preservar alimentos e como fonte de água doce.
Essas mesmas salinas vão abrigar um projeto solar fotovoltaico do governo mexicano que deve se tornar o maior da América Latina.
Baseada a 27 quilômetros do município de Puerto Peñasco, no estado de Sonora, a usina solar vai ocupar dois mil hectares e será coberta por 278 mil painéis até 2027 — quando terá capacidade de gerar um gigawatt de energia, segundo a Comissão Federal de Eletricidade (CFE) do México. O megaprojeto solar faz parte do Plano Sonora, que também prevê grandes torres de aço para suportar os 290 quilômetros de linhas de transmissão a serem construídas no deserto de Sonora. A expectativa do governo é erguer essas linhas ainda este ano.
Mas as comunidades indígenas da região alertam que as linhas de transmissão fragmentariam suas terras ancestrais. “É como se eu construísse um muro no meio de uma igreja católica ou evangélica”, diz Matías Valenzuela, porta-voz do Conselho de Anciãos do povo indígena Tohono O’odham. “Nas salinas, há poder, ainda há energia”.
Ambientalistas também são contrários à instalação das linhas de transmissão, já que elas cortariam duas reservas da biosfera da Unesco: El Pinacate e Grande Deserto de Altar; e o Alto Golfo da Califórnia e Delta do Rio Colorado. Ambas abrigam enorme biodiversidade.
Nas salinas, há poder, ainda há energiaMatías Valenzuela, porta-voz do Conselho de Anciãos do povo indígena Tohono O’odham
“Não éramos contra ou a favor do projeto”, diz Gerardo Pasos, líder Tohono O’odham e representante do Conselho de Anciãos em Puerto Peñasco. “Queríamos apenas que eles nos respeitassem enquanto conselho e que as licenças ambientais fossem concedidas corretamente — para o solo e as áreas úmidas. Não queríamos que prejudicassem nossa comunidade ou a trilha pelas terras ancestrais. Mas eles não nos escutaram”.
O líder indígena explica que, antes do início do projeto, em 2022, foram realizadas três reuniões entre a comunidade indígena e órgãos do governo. Em cada uma delas, seu povo reiterou a discordância com o plano. Mas o projeto foi aprovado por um representante dos Tohono O’odham do outro lado da fronteira, no estado americano do Arizona.
“Eles saíram [das negociações] com uma pessoa dos Estados Unidos, que se autodenomina governante tradicional”, diz Pasos. “Os anciãos não o reconhecem como autoridade. Não reconhecemos a decisão que eles tomaram. Nós nos sentimos humilhados pelo que fizeram com o conselho”. O Diálogo Chino e a Mongabay Latam, que produziram esta reportagem em parceria, entraram em contato com a CFE, os ministérios de Energia e Meio Ambiente do México, além da Comissão Nacional de Áreas Naturais Protegidas e a administração da Reserva da Biosfera El Pinacate. Não houve resposta até o fechamento do texto.
Mais benefícios ou impactos?
A estimativa é que o parque solar de Puerto Peñasco forneça eletricidade para 1,6 milhão de mexicanos. Sua construção deve custar US$ 1,6 bilhão e será dividida em quatro etapas — a primeira delas deve ser concluída ainda este ano.
O governo mexicano argumenta que o projeto é uma questão de “soberania e segurança energética”, já que ele visa reduzir a dependência energética dos EUA e contribuir para os compromissos climáticos do México.
Além de atender à demanda de eletricidade, o projeto vai ainda, segundo o governo, promover o crescimento econômico nos setores de indústria, comércio, serviços e habitação de várias cidades do estado de Sonora.
Carlos Tornel, pesquisador da Universidade de Durham, no Reino Unido, e especialista em transição energética no México, ressalta que a energia renovável também pode ter impactos ambientais. “Vários minerais usados nos painéis solares são extraídos na África ou na China”, explica Tornel. “Depois, são transportados e instalados em Sonora com caminhões movidos a combustíveis fósseis, que removem tudo o que está pelo caminho”.
“Vários minerais usados nos painéis solares são extraídos na África ou na China”, explica Tornel. “Depois, são transportados e instalados em Sonora com caminhões movidos a combustíveis fósseis, que removem tudo o que está pelo caminho”.
É como se eu construísse um muro no meio de uma igreja católica ou evangélicaMatías Valenzuela, porta-voz do Conselho de Anciãos do povo indígena Tohono O’odham
Alteração da paisagem
“A linha de transmissão vai parecer uma cicatriz”, diz Federico Godinez Leal, que atuou como diretor da Reserva da Biosfera entre 2004 e 2017.
A usina deve afetar especialmente a paisagem no sul das áreas protegidas de El Pinacate e da reserva vizinha do Alto Golfo da Califórnia.
“Olhando para o norte, onde estão as dunas, você verá as torres. Elas são gigantescas. Não são como as torres que normalmente vemos nas cidades ou nas rodovias”, diz Leal. Mas a paisagem, lembra Leal, foi um dos principais critérios da Unesco para declarar a reserva como Patrimônio Mundial da Humanidade em 2013.
A CFE reconhece em seu estudo de impacto ambiental que o projeto provocará uma “fragmentação do território, levando a uma diminuição do valor cênico desses lugares”. Em outubro de 2022, o órgão enviou um resumo do projeto e do estudo à Unesco.
Já o órgão da ONU disse à reportagem que cobra medidas de mitigação. Com base em uma análise técnica da União Internacional para a Conservação da Natureza, ele vem dialogando com autoridades mexicanas para minimizar os impactos negativos do projeto.
A Reserva da Biosfera El Pinacate e Grane Deserto de Altar foi criada em 10 de junho de 1993. Nela, é possível caminhar por entre cinzas vulcânicas e bordas de crateras. Já a Reserva da Biosfera do Alto Golfo da Califórnia e do Delta do Rio Colorado tem áreas terrestres e marinhas, incluindo as áreas úmidas da Baía de Adair — local que reúne uma combinação de habitats, como estuários, marismas, mangues e salinas.
O estudo ambiental do CFE diz que “o projeto afeta apenas a parte norte” dessa reserva. Porém, as rotas ancestrais dos Tohono O’odham estão localizadas justamente nessa área.
A rede da usina solar consistirá em duas linhas de transmissão e uma subestação elétrica em Sonora. A primeira linha corta 77 quilômetros na divisa das duas reservas, por entre áreas protegidas pelas leis mexicanas, enquanto a outra percorre 68 quilômetros no limite da reserva do Alto Golfo da Califórnia.
As duas linhas correrão paralelas à rodovia costeira Puerto Peñasco-Golfo de Santa Clara e por um trecho da ferrovia Sonora-Baja Califórnia. No estudo de impacto ambiental, a CFE argumenta ainda que a maior parte das linhas de transmissão não serão visíveis para os visitantes da reserva El Pinacate, porque “ficam fora do campo de visão”.
Godinez, ex-diretor da reserva, rebate a afirmação: “No estudo de impacto ambiental, usaram medições e uma metodologia com as quais não concordamos, porque isso foi feito apenas para tentar justificar o projeto”.
Cultura em risco
Nas caminhadas em busca do sal de El Pinacate, os Tohono O’odham saem em grupos de suas comunidades em Sonora e no Arizona, nos Estados Unidos. “Para chegar às salinas, é preciso passar pelo Pinacate”, diz Matías Valenzuela, do Conselho de Anciãos. “É uma rota muito importante para entrar nas salinas, porque era usada por nossos ancestrais”.
Essas rotas, diz ele, também estão em risco: a saúde dos anciãos que conhecem o caminho piorou e violência nos municípios vizinhos, provocada pelo crime organizado, aumentou.
Valenzuela reitera que os locais sagrados têm um poder incalculável. “É preciso protegê-los, porque restam bem poucos aqui no México”, diz. “Os locais sagrados estão sendo destruídos em nome de alguns trocados que acabarão amanhã”.
“Por sermos indígenas, devido às nossas crenças, eles nos veem como selvagens e acham que valemos menos”, acrescenta Valenzuela.