A vida na pequena cidade de Tambores, no norte do Uruguai, é bastante pacata. Em outros tempos, a ferrovia que hoje está inativa conectava o município com o país inteiro. Agora, uma empresa de energia quer reativá-la, mas moradores temem que isso afete seu bem mais valioso: a água.
Os 1,5 mil habitantes da cidade aguardam notícias sobre um projeto que planeja produzir hidrogênio verde, apelidado de “combustível do futuro”, gerado a partir de energia renovável. A usina usará o hidrogênio para produzir 70 mil toneladas anuais de outro combustível, o metanol, o que poderia triplicar o consumo de água da cidade.
A geração de hidrogênio verde no Uruguai está se expandindo rapidamente. O governo projeta que, até 2040, cerca de 2% do PIB do país dependa do setor e, no ano passado, lançou um plano oficial para o combustível. De acordo com a engenheira ambiental María José González, coordenadora do programa de hidrogênio verde do Ministério da Indústria, Energia e Mineração (Miem) do Uruguai, o hidrogênio verde poderia gerar uma receita equivalente ao tradicional setor de carne bovina — o principal produto de exportação do país.
“O objetivo é ter uma produção de hidrogênio de cerca de 1 milhão de toneladas anuais até 2040 e um aumento na geração de energia renovável para [suprir] essa produção de hidrogênio”, explica González. Ela acrescenta que, nessa primeira fase até 2030, o foco serão os testes-piloto e a produção de metanol e outros combustíveis sintéticos para o transporte de carga. O hidrogênio também poderá ser usado na produção de fertilizantes.
Com os investimentos, o Uruguai espera movimentar US$ 2,1 bilhões ao ano com o hidrogênio verde até 2040. Além disso, o novo setor poderia gerar mais de 35 mil empregos qualificados para a construção, operação e manutenção das usinas, segundo estimativas do governo.
Apesar do entusiasmo entre autoridades, uma parcela da população teme os possíveis impactos desse setor — e há muita gente receosa em Tambores. González afirma que o país pode garantir um crescimento tranquilo da produção de hidrogênio verde, já que “o Uruguai tem regulamentações ambientais bastante fortes”. Além das atuais licenças ambientais, diz ela, serão criadas novas regulamentações. Ainda assim, a engenheira ambiental reconhece que “as preocupações dos moradores são totalmente legítimas”.
Aquíferos em Tambores
Em Tambores, na divisa dos departamentos de Paysandú e Tacuarembó, a população escuta constantemente as promessas de emprego e desenvolvimento econômico sem o uso de combustíveis fósseis, emissões de carbono ou poluição. Mas, se isso envolve o hidrogênio verde, será necessário usar a água da cidade, proveniente de formações subterrâneas conhecidas como aquíferos.
O hidrogênio pode ser obtido por meio de um processo conhecido como eletrólise: a água (H₂O) é separada em hidrogênio e oxigênio usando eletricidade — no caso do hidrogênio verde, essa energia é derivada de fontes renováveis, como solar ou eólica. O hidrogênio resultante pode ser combinado com dióxido de carbono para obter metanol, usado como combustível ou matéria-prima na indústria química.
Ao contrário da capital Montevidéu — que enfrenta uma crise hídrica histórica — a água da torneira em Tambores segue fluindo normalmente, enchendo as xícaras de chá e cuias com erva-mate. Há água suficiente para cozinhar, tomar banho, regar as plantas e dar de beber aos animais de estimação. A água em Tambores é doce e cristalina, e é um recurso que os moradores querem preservar.
O projeto Tambor será executado pela Belasay — grupo criado pela alemã Enertrag e pela uruguaia SEG Ingeniería — e, de acordo com seu relatório preliminar de 2021, aproveitará “a capacidade de radiação solar e os recursos eólicos” da região. O documento afirma que a zona próxima de Tambores “tem recursos hídricos abundantes, como as águas subterrâneas do aquífero Guarani, capazes de abastecer a usina de hidrogênio sem afetar seus outros usos”.
Para medir a pressão d’água, três poços já foram abertos com autorização da Direção Nacional de Águas (Dinagua) concedida em novembro de 2022. Com cerca de 100 hectares, o local será arrendado pelos próximos 30 anos. O estudo hidrogeológico e geofísico encomendado pela SEG Ingeniería, ao qual o Diálogo Chino teve acesso, afirma que “é possível atingir as taxas de fluxo necessárias para realizar o projeto”.
O projeto, conforme as estimativas da empresa, poderia exigir seis desses poços e consumiria a mesma quantidade de água que um centro urbano no Uruguai com população de 2.250 a 8.400 habitantes.
Também em novembro passado, a base aliada do governo departamental de Tacuarembó votou a favor de uma nova categorização da área onde o projeto será executado, passando de “rural produtiva” para “suburbana industrial”. Com essa mudança legal, o terreno deixa de ser exclusivamente para produção agrícola ou florestal e passa a se qualificar para atividades industriais, embora as fazendas vizinhas permaneçam exclusivamente rurais.
O projeto Tambor prevê a instalação de usinas eólicas e fotovoltaicas, bem como um eletrolisador, para produzir cerca de 13 mil toneladas de hidrogênio verde ou 70 mil toneladas de metanol ao ano, segundo o relatório preliminar. Boa parte seria exportada.
Essa produção, segue o relatório, exigirá entre 500 e 700 metros cúbicos de água por dia, obtidos de fontes subterrâneas como os aquíferos naturais Arapey e Guarani — o último deles é compartilhado com Brasil, Paraguai e Argentina e está entre os maiores aquíferos conhecidos do planeta.
“Os aquíferos são unidades de rocha que contêm água e estão interconectadas por meio de fraturas. As fraturas fazem com que a água da chuva se acumule em seu interior, e é isso que recarrega os aquíferos, seguindo o ciclo da água”, explica a bióloga Graciela Piñeiro, professora da Universidade da República especializada em geociências.
“A extração de água de um aquífero pode afetar a quantidade de água disponível em outros aquíferos conectados”, acrescenta Piñeiro.
A especialista, que levou essas preocupações às autoridades, diz que o uso de águas subterrâneas para um projeto de geração de combustível não tem precedentes no mundo e poderia comprometer a disponibilidade e o reabastecimento do sistema hídrico.
Piñeiro também alerta que “a extração de água dos aquíferos pode causar deslizamentos de terra devido à instabilidade do sistema” e que, quando as moléculas de água são quebradas para obter hidrogênio, o ciclo da água é interrompido.
Já María José González, do Miem, rebate: “Essa afirmação não é correta”. Embora a molécula de água seja de fato quebrada, acrescenta, “a água é gerada novamente e volta para a atmosfera, independentemente de ser usada em um carro elétrico ou como combustível”, referindo-se ao vapor de água que é subproduto do uso do hidrogênio.
Dúvidas sobre impactos da usina
Desde maio, o sul do Uruguai, onde vive 60% da população, está passando por uma das piores crises hídricas da história do país: a reserva de Paso Severino, usada por Montevidéu e pelos departamentos de Canelones e San José, praticamente secou.
Para aliviar a situação, a estatal de água Obras Sanitárias do Estado (OSE) tomou a medida extrema de misturar água doce com água salgada do Rio da Prata, mais do que dobrando o teor de sódio por litro de água recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 13 de julho, um grupo de especialistas da ONU descreveu como “alarmante” o declínio na qualidade da água no Uruguai. No comunicado, os autores criticaram a postura do governo uruguaio — que pediu a redução do consumo doméstico de água, mas não aplicou as mesmas medidas em relação aos grandes consumidores de água, como as indústrias. As empresas e o Estado, segundo eles, têm a responsabilidade de colocar o direito humano à água em primeiro lugar: “Não priorizá-lo é inaceitável”.
Vendo de longe a crise hídrica na capital, os moradores de Tambores têm dúvidas sobre o que pode ocorrer com a qualidade da água caso a usina de hidrogênio verde entre em operação. “Não estamos totalmente informados sobre o que eles vão fazer, nem como será o processo”, diz Graciela Colman, dona de uma loja de conveniência no vilarejo de Piedra Sola, próxima a Tambores. “Pelo pouco que sabemos, usariam o aquífero Guarani. Eles dizem que a área vai crescer e serão gerados empregos durante a construção do projeto, mas o que vai acontecer depois?”.
Os moradores de Tambores, Piedra Sola e Valle Eden ficaram sabendo do plano Tambor quase por acaso, por meio de um pequeno anúncio publicado em um jornal local. O texto convocava a população a uma reunião na qual a Belasay explicaria o escopo do projeto.
“O povo de Tambores não sabia de nada. Eles [a empresa] apostaram que o menor número possível de pessoas compareceria”, diz o jornalista, professor e artista Miguel Ángel Olivera Prieto, que mora na cidade há três anos. “Começamos a espalhar a notícia imediatamente e, em uma cidade de 1.500 pessoas, reunimos quase 400”.
Na reunião, realizada em maio de 2022, a empresa explicou à população suas propostas para transformar o local “em um exemplo nacional e regional de produção de energia limpa”. A companhia prometeu que 1,9 mil pessoas seriam empregadas diretamente durante a construção da usina. Outras duas mil seriam beneficiadas indiretamente e, uma vez em operação, a produção da usina empregaria mais de 500 pessoas.
Naquela noite, muitos moradores se posicionaram contra o projeto, argumentando que “a água não deve ser tocada”. Em fevereiro, um grupo de 43 pessoas entrou com uma ação de inconstitucionalidade na Suprema Corte do país para anular a mudança na legislação fundiária do departamento de Tacuarembó, que permitiria a instalação da usina.
A Belasay contratou uma equipe para sondar as opiniões na cidade e entrou em contato com empresários locais para futuros projetos. Enquanto isso, fazendeiro locais promovem o projeto em suas propriedades e palestras.
Em resposta aos questionamentos do Diálogo Chino sobre os possíveis impactos do projeto Tambor, a alemã Enertrag diz que “só investe e desenvolve projetos sustentáveis”.
“O projeto está atualmente no estágio de pré-viabilidade, o que significa que estudos preliminares estão sendo realizados para avaliar sua viabilidade técnica, econômica e ambiental. Como parte desse processo, estão sendo conduzidas pesquisas que farão parte do estudo de impacto ambiental”, acrescenta o porta-voz da empresa.
Medo de desinformação
Desde o ano passado, a escola de ensino médio de Tambores discute o projeto da usina de hidrogênio verde com seus alunos, para informá-los e permitir que formem suas próprias opiniões como cidadãos.
Os estudantes construíram maquetes de como acham que será a usina e realizaram pesquisas com a comunidade escolar, englobando questões técnicas, econômicas, sociais e ambientais do projeto.
O risco de desinformação é a preocupação mais recorrente entre os cerca de 80 adultos entrevistados (familiares ou vizinhos das crianças), de acordo com Pablo Posada, diretor da escola.
O principal ponto positivo da iniciativa, segundo essa enquete, seriam as oportunidades de emprego que ajudariam a manter os jovens na região. Já as mudanças culturais e sociais que a usina poderia gerar foram vistas como um possível ponto negativo.
As questões ambientais também são motivo de preocupação — não tanto entre os adultos, mas sim entre os próprios alunos. Alguns estudantes mais velhos apontaram seu medo de que o aquífero fosse destruído ou que o Pozo Hondo — piscina natural onde os habitantes se banham durante o verão — pudesse secar.
“É um projeto extrativista, um reduto [cujos benefícios] não se espalharão pela região e não deixará nada para Tambores ou para o Uruguai”, critica Ana María Barbosa, pesquisadora de desenvolvimento sustentável da Universidade da República e ex-moradora da cidade por uma boa parte de sua vida. “Ninguém fala sobre os impactos sociais que isso poderia causar”.
Óscar Núñez, gaúcho uruguaio que trabalha para o município de Tambores, também não acha que ele ou seus vizinhos seriam beneficiados pela nova usina.
“Somos uma vila rural. Não temos engenheiros, biólogos, físicos ou químicos para esse tipo de produção. E pode levar muito tempo para produzir profissionais qualificados aqui no vilarejo. Portanto, não haverá nenhum trabalho nessa área”, diz Núñez.
Núñez diz que a água não é mais tão abundante como antes e acredita que o projeto Tambor poderia causar um grande estresse hídrico: “Será uma exploração expressiva das águas subterrâneas. Vamos perder essa fonte de água”.
O processo apresentado em fevereiro à Suprema Corte também incluiu a Belasay como parte do litígio. Segundo os autores, o projeto da usina “viola as disposições do artigo 47 da Constituição”.
Esse trecho do texto constitucional enquadra o acesso à água como um direito humano fundamental, essencial para a vida. Também exige uma “gestão solidária com as gerações futuras” e ressalta que esse direito deve “colocar as razões sociais acima das econômicas”. Por fim, o artigo determina que tanto as águas superficiais quanto as subterrâneas pertencem ao domínio público do Estado e estão subordinadas ao interesse público. As comunidades alegam que a autorização para a exploração privada das reservas contradiz esse princípio.
O advogado da população, Grey Espinosa, espera ter uma resposta da Suprema Corte até o final do ano. Ele acredita que o fato de o tribunal não ter desistido do caso é um bom sinal.
A Belasay, diz o advogado, já respondeu ao tribunal. “Eles [a empresa] consideram não haver impacto sobre os recursos hídricos, motivo da ação”.
Enquanto o sul do Uruguai sofre com a falta de água, o norte teme que, por má gestão ou interesses privados, a abundância do recurso em seu território também seja ameaçada. A população de Tambores aguarda ansiosa o veredito da justiça.