<p>Vista aérea da usina hidrelétrica de San José del Tambo (à esquerda) e do rio Dulcepamba na província de Bolívar, Equador (Imagem: Misha Vallejo Prut)</p>
Energia

Comunidades ribeirinhas do Equador sofrem com pressões de hidrelétricas

Inundações, secas e disputas na Justiça colocam em xeque operação da hidrelétrica da empresa Hidrotambo, cujo caso definirá marco legal para projetos renováveis no Equador

Durante o inverno, Polo Jiménez reza para que as águas do rio Dulcepamba não inundem sua casa. Antes de dormir, ele separa uma lanterna, uma muda de roupa e seus documentos de identificação na porta, caso precise evacuar durante a noite. 

Há 30 anos, quando se estabeleceu nessa porção central do Equardor, Jiménez, então com 20 anos, jamais imaginaria que teria uma rotina como essa. Ele vive em San Pablo de Amalí, comunidade de 480 pessoas na província de Bolívar, ao pé da cordilheira dos Andes. Lá, a abundância de água era vista como uma bênção, mas agora está se tornando uma grande preocupação.  

“Quando construí [minha casa], estava a 300 metros do rio. Agora, como você pode ver, não há nem 15 metros de distância”, diz Jiménez.

Ele culpa a usina hidrelétrica de San José del Tambo por isso. O Ministério do Meio Ambiente do Equador autorizou a empresa Hidrotambo a construir a hidrelétrica em 2005, a sete quilômetros de San Pablo de Amalí. A usina entrou em operação em 2016, com uma capacidade instalada de oito megawatts (MW). 

Desde o início das obras, moradores próximos ao rio Dulcepamba denunciaram os desvios do curso d’água causados pelo projeto. Eles afirmam que as mudanças no rio afetaram 140 comunidades, provocando inundações que levaram a mortes e prejuízos econômicos.

Polo Jiménez em uma das rochas que, ele espera, possa conter o fluxo do rio Dulcepamba em caso de inundação
Polo Jiménez em uma das rochas que, ele espera, possa conter o fluxo do rio Dulcepamba em caso de inundação. Ele mora em San Pablo de Amalí, uma das muitas comunidades que alegam ter sido afetadas pela construção de uma usina hidrelétrica na região (Imagem: Misha Vallejo Prut)

Hidrelétricas: entre o excesso e a paralisação

A energia hidrelétrica gera mais de 80% da eletricidade do Equador, e só a Amazônia equatoriana, do outro lado da cordilheira, abriga 18% das usinas hidrelétricas ativas na região pan-amazônica — embora o Equador detenha apenas 1,5% dessa floresta. A maior hidrelétrica do país, Coca Codo Sinclair, tem sido apontada como uma das causas do desaparecimento da emblemática cachoeira de San Rafael

A usina de San José del Tambo, da Hidrotambo, depende da vazão natural do rio Dulcepamba para mover suas turbinas, e não de uma barragem. Esse tipo de usina, a fio d’água, é considerada uma alternativa mais ecológica do que as hidrelétricas tradicionais, ou seja, com grandes reservatórios, que comprometem a ecologia do rio e aumentam os riscos de inundações. Mesmo assim, a usina desvia parte do Dulcepamba, aproximando o rio das casas e aumentando os riscos de enchentes quando os níveis d’água sobem.

Uma brecha na legislação ambiental equatoriana permite que os mesmos projetos de exploração de recursos renováveis sejam apresentados sucessivamente, até que enfim sejam aprovados, alimentando diversos conflitos legais e socioambientais.

O contrário também ocorre, como se vê na paralisação parcial da hidrelétrica Toachi Pilatón, na região central do Equador. Esse projeto de 254 MW foi concedido à construtura brasileira Odebrecht (atual Novonor) em 2007, mas, após uma série de atrasos e um escândalo de corrupção, a usina opera com menos de 20% da capacidade.  

Já o projeto hidrelétrico de Piatúa, de 30 MW, na província amazônica de Pastaza, obteve a licença ambiental do Ministério de Meio Ambiente em 2014, mas a construção foi suspensa em 2019 pela Corte Provincial de Pastaza em razão de outro escândalo de corrupção envolvendo um juiz que teria recebido propina para favorecer a usina. A decisão em segunda instância exigiu uma auditoria ambiental e novos estudos técnicos. Desde então, o caso está nas mãos dos magistrados da Corte Constitucional do Equador.

Mudanças no Dulcepamba

O estudo de impacto ambiental produzido em 2005 pela Hidrotambo para a usina hidrelétrica de San José del Tambo minimizou os riscos de inundação. O estudo reconheceu que o deslocamento de sedimentos do leito do rio poderia bloquear as rotas de drenagem na bacia do rio Dulcepamba, mas concluiu que “a incidência desse fenômeno é baixa”.

Canal do rio Dulcepamba, a menos de 15 metros das casas de San Pablo de Amalí
Canal do rio Dulcepamba, a menos de 15 metros das casas de San Pablo de Amalí, elevando os riscos de inundações (Imagem: Misha Vallejo Prut)

Quase 20 anos depois, as enchentes ocorrem hoje com frequência. Em entrevista ao Diálogo Chino, o diretor-geral da Hidrotambo, Franklin Pico, descreve a bacia do rio como uma “área de alto risco” para inundações.

Polo Jiménez vive à beira do Dulcepamba desde 2015, quando a maior enchente da história do rio levou a margem do curso d’água até sua casa. A enchente também deixou três pessoas mortas e levou casas, animais e plantações.

O morador Filadelfo Borja conta que, antes da chegada da hidrelétrica à região, as enchentes de Dulcepamba destruíam “no máximo duas árvores de cacau”. Em 2015, no entanto, Borja perdeu toda sua plantação e sua família foi forçada a deixar a área. 

Em 2014, o vizinho de Jiménez, Manuel Trujillo, apresentou uma denúncia à Justiça da província de Bolívar. Ele alegou que o rio havia sido desviado em direção à sua propriedade, o que foi rejeitado pelo tribunal. Um ano depois, as enchentes destruíram sua casa.

Após a inundação de 2015, um relatório da Agência de Regulação e Controle de Eletricidade do Equador aconselhou a Hidrotambo a construir uma contenção para proteger San Pablo de Amalí, alertando que “a próxima inundação do rio poderia afetar gravemente a população”. 

Ainda não foi construída essa barreira contra inundações. Desde então, as enchentes atingiram a zona em 2017, 2019 e 2023. Na inundação deste ano, a única estrada de acesso à área foi destruída, e pessoas da comunidade disseram ao Diálogo Chino que foram necessários helicópteros para abastecê-los com suprimentos.

Ribeirinha segura o único peixe que conseguiu capturar após quatro horas de pesca no rio Dulcepamba
Ribeirinha segura o único peixe que conseguiu capturar após quatro horas de pesca no rio Dulcepamba. Os moradores afirmam que o número de peixes caiu drasticamente nos últimos anos (Imagem: Misha Vallejo Prut)
Carmen Guanulema, moradora de San Pablo de Amalí, sentada em um dos canais artificiais da usina hidrelétrica vizinha à sua comunidade
Carmen Guanulema, moradora de San Pablo de Amalí, sentada em um dos canais artificiais da usina hidrelétrica vizinha à sua comunidade. Ela afirma que o fluxo do rio está aumentando (Imagem: Misha Vallejo Prut)

A queda no número de peixes do Dulcepamba também foi notada recentemente pela população local. “Eles desapareceram; não há mais pesca como antes”, conta Carmen Guanulema, moradora de San Pablo de Amalí.

Um estudo de 2021 sobre os peixes de água doce do Equador constatou que muitas espécies nativas estão ameaçadas, entre outros fatores, pelas hidrelétricas. As usinas que desviam um grande volume d’água, como a da Hidrotambo no rio Dulcepamba, podem alterar drasticamente os habitats dos peixes. Mas, apesar das denúncias da população, nenhum estudo sobre os peixes da região foi realizado até agora.

Obstrução do rio

Na borda da área de captação da usina hidrelétrica, a reportagem do Diálogo Chino viu uma grande quantidade de pedras. Os moradores de San Pablo de Amalí dizem que elas são colocadas pela Hidrotambo todo verão, quando o rio está mais baixo, para direcionar o máximo de água possível para a usina; no inverno, afirmam, a empresa remove as pedras. A comunidade diz que isso provoca escassez de água no verão e enchentes no inverno. 

Franklin Pico, da Hidrotambo, dá outra explicação: ele diz que esse conjunto de pedras se forma sozinho, a partir “do material que cai das áreas mais altas da montanha”. Ele também afirma que o rio nunca foi desviado pela empresa. 

Alguns cientistas discordam. O pesquisador Jorge Celi, especialista da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre gestão de água doce tropical, disse ao Diálogo Chino que essa formação de rochas não poderia ter aparecido sozinha. Com base em um trabalho de campo no qual comparou o rio Dulcepamba em 2012 e 2018, Celi assegura que a usina hidrelétrica da Hidrotambo “influenciou a mudança no leito do rio”.

Vista aérea do canal da usina hidrelétrica de San José del Tambo (à direita), próxima à comunidade de San Pablo de Amalí
Vista aérea do canal da hidrelétrica de San José del Tambo (à direita), próxima à comunidade de San Pablo de Amalí. Os moradores alegam que a Hidrotambo constrói um ‘muro de pedras’ todo verão para maximizar a água desviada em direção à usina e o desmonta no inverno, criando alternadamente escassez de água e inundações; a empresa nega (Imagem: Misha Vallejo Prut)

Da mesma forma, uma inspeção de risco de enchentes realizada em março de 2023 pela Secretaria de Gestão de Riscos do Equador identificou uma ameaça crescente de inundações em San Pablo de Amalí e atribuiu “algum grau de responsabilidade” à Hidrotambo pela ausência de obras de contenção. O relatório também entende que as pedras que bloqueiam a passagem do rio teriam sido colocadas pela empresa e, portanto, exigiu sua remoção. Em julho de 2023, esse muro de pedras seguia lá.

Disputas com hidrelétricas aguardam na Justiça

A Hidrotambo abriu vários processos judiciais contra moradores de San Pablo de Amalí desde 2006, quando a construção da usina começou. Naquele ano, a empresa entrou com uma ação contra 42 pessoas que se recusaram a cumprir as notificações de despejo. Em 2013, a Hidrotambo também acusou dois moradores de “terrorismo” — uma forma de ameaça comum usada contra ativistas socioambientais durante o governo de Rafael Correa (2007-2017).

Em 2018, a comunidade revidou e moradores de San Pablo de Amalí entraram com um pedido na Secretaria de Águas do Equador para revisar o uso do Dulcepamba pela Hidrotambo. O governo aceitou a solicitação no ano seguinte, retirando o direito de exploração do rio por parte da empresa durante os meses de verão.

Manuela Pacheco, acusada de terrorismo pela Hidrotambo
Manuela Pacheco, acusada de terrorismo pela Hidrotambo, sentada na sala de sua casa em San Pablo de Amalí. Ela tem sido uma voz ativa em defesa do rio Dulcepamba, mas há vários anos sofreu um infarto medular e não consegue mais andar (Imagem: Misha Vallejo Prut)
O marido de Pacheco em sua cozinha em San Pablo de Amalí
O marido de Pacheco em sua cozinha em San Pablo de Amalí. Há alguns anos, durante os protestos contra a instalação da usina hidrelétrica da Hidrotambo, ele perdeu um olho devido ao impacto de uma bala de borracha da polícia (Imagem: Misha Vallejo Prut)

Em 30 de maio dese ano, o Ministério do Meio Ambiente revogou totalmente a autorização da Hidrotambo para usar as águas do Dulcepamba. Entre as infrações da empresa citadas pela decisão, está a captação de um fluxo de água maior do que o autorizado entre julho e dezembro e a não apresentação de projetos previamente acordados para resolver os problemas descritos por moradores na captação de água.

A Hidrotambo recorreu da decisão menos de duas semanas depois, citando “violações de direitos”. O ministério deveria ter dado um veredito até agosto, mas ainda não o fez. Sem essa palavra final, a empresa segue operando, apesar da determinação anterior. 

A empresa também é alvo de uma ação na Corte Constitucional do Equador: em setembro de 2019, a Defensoria Pública do país e a Comissão Ecumênica de Direitos Humanos entraram com uma medida cautelar contra a Hidrotambo. 

Em 2008, o Equador se tornou o primeiro país a proteger os direitos da natureza em sua Constituição. O advogado ambiental Hugo Echeverría disse ao Diálogo Chino que o caso Hidrotambo-Dulcepamba foi um dos seis selecionados pela Corte Constitucional para “estabelecer uma jurisprudência” — ou seja, criar um precedente legal — para a defesa desses direitos. Além dele, também foi incluído o caso da hidrelétrica de Piatúa e outro que garantiu o direito à proteção de uma macaca-barriguda conhecida como Estrellita, abrindo precedentes para salvaguardar outros animais selvagens.

Quando houver uma sentença final no processo Hidrotambo-Dulcepamba, será a primeira do Equador a fixar um entendimento sobre os padrões e as limitações da exploração de recursos renováveis e não renováveis geridos pelo Estado. A decisão também deve delimitar a atuação das empresas concessionárias, para saber quando elas infringem os direitos coletivos e da natureza. E ainda pode ir além: o processo determinará se a possível inação do Estado causou uma violação dos direitos humanos, já que os cidadãos haviam denunciado anteriormente os problemas relacionados ao desvio do rio.

Carmen Guanulema (centro), mostra seus documentos a dois advogados
Carmen Guanulema (centro), mostra seus documentos a dois advogados que lideram a ação judicial da comunidade contra a Hidrotambo (Imagem: Misha Vallejo Prut)

Futuro hidrelétrico do Equador

Apesar de todos os entraves legais e socioambientais citados até aqui, uma hidrelétrica com o dobro do tamanho da de Coca Codo Sinclair está sendo planejada na província de Morona-Santiago, no sudeste do Equador. Batizado como o rio de pretende explorar, Santiago, o projeto teria uma capacidade máxima de 3,6 gigawatts. 

A previsão é que a usina entre em operação até 2031, embora ainda não tenha sido anunciada qual empresa ficará responsável pela operação, nem tenha sido aprovada sua licença ambiental. 

“O Santiago é um rio único”, diz Jorge Celi, da Unesco, sobre uma das principais artérias fluviais que conectam a Amazônia peruana e equatoriana. “Estamos falando de uma hidrelétrica com 200 metros de altura em um rio torrencial que carrega muitos sedimentos. Tudo isso vai parar atrás da barragem, gerando um forte impacto sobre a dinâmica rio abaixo”.

De volta à província de Bolívar, Polo Jiménez e as comunidades do rio Dulcepamba esperam o dia em que não haja mais ameaça de enchentes. “Não quero mais ter medo de dormir”, diz. “Só espero que haja mais segurança para que o rio não venha e vivamos em paz”.

Esta história é fruto de uma parceria entre Diálogo Chino e Youtopía Ecuador. A história foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network da Internews.