Há cerca de dois meses, uma severa seca assola o oeste da Amazônia brasileira e atravessa as fonteiras para os demais países sul-americanos que abrigam a floresta tropical.
A crise é mais grave no Amazonas, que, embora sofra crescentes pressões do desmatamento ilegal, principalmente em sua porção sul, é o estado com a maior proporção de vegetação e, logo, de cursos d’água, preservados do Brasil.
Mas nem a resiliência da floresta, nem a abundância de água da Amazônia, cuja bacia é a maior em volume e área do mundo, conseguiram frear os prejuízos, já devastadores, dessa estiagem.
“É uma catástrofe anunciada”, diz Luciana Gatti, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora como o bioma vem perdendo sua capacidade de produzir chuvas e estocar carbono com o avanço do desmatamento.
As mínimas históricas da bacia do rio Amazonas impediram o tráfego de embarcações que transportam pessoas e commodities e isolou comunidades indígenas e ribeirinhas. Combinado à seca, o calor extremo de um inverno anormalmente quente no país, pode ter sido o responsável pela morte de mais de 170 botos no interior do estado — sem precedentes no bioma — e facilitou a disseminação de queimadas, cuja fumaça formou cenas apocalípticas na capital do estado, Manaus.
Afinal, o que está acontecendo com a Amazônia? Como uma das regiões mais abundantes em água e biodiversidade do planeta está se tornando incapaz de resistir às pressões do clima e deixando animais e humanos morrerem ou amargando a insalubridade, a fome e a sede? E o que vem pela frente?
O quão intensa e rara é esta seca?
A região amazônica vive duas estações ao ano: a seca e a chuvosa. Os amazônidas estão acostumados a acompanhar a variação do nível dos rios como quem observa o dia e a noite: é cíclico. Mas o que já não é tão previsível, segundo os especialistas, é a intensidade e a frequência das estações.
Se antes ocorriam uma vez a cada duas décadas, agora secas intensas estão recorrentes, segundo o cientista climático Carlos Nobre, pesquisador da Universidade de São Paulo, citando outros cinco episódios semelhantes desde 2005. “As mudanças climáticas têm aumentando muito a frequência e a severidade dessas secas”, diz.
Uma dessas estiagens mais agudas na Amazônia começou no período seco de 2015, que ocorre entre maio e outubro, e se arrastou pelo período úmido até o primeiro semestre de 2016, com chuvas 50% abaixo dos níveis esperados. Climatologistas consultados pelo Diálogo Chino aguardam a consolidação da estação chuvosa este mês para avaliar a proporção desta seca.
“Ainda não sabemos se essa seca vai bater o recorde de 2015 e 2016”, diz Nobre. “Em alguns lugares já está batendo, como na bacia do rio Negro”.
O nível do rio Negro, que nasce em serras colombianas e deságua a mais de 2.200 quilômetros a sudeste dali, no rio Amazonas, em Manaus, registrou uma sequência de baixas históricas na semana passada. No dia 26 de outubro, ele atingiu 12,70 metros no porto de Manaus, marca mais baixa em 121 anos de medições. No outro extremo da escala, sua máxima recorde ocorreu nas cheias de junho de 2021, atingindo uma altura de 30,02 metros.
Quais são as causas por trás da estiagem?
Entre 2020 e meados de 2023, o Brasil estava sob o efeito do La Niña, fenômeno climático responsável por um resfriamento anormal do Oceano Pacífico, que altera a formação de ventos e leva mais chuvas à Amazônia brasileira. Agora, ao contrário, a região está sob a influência do El Niño, que esquenta essas águas, provocando estiagens mais fortes que as sazonais.
Ao mesmo tempo, as águas a norte do Oceano Atlântico também estão mais quentes que o usual, o que costuma levar ventos secos para a Amazônia. Portanto, são dois oceanos, o Pacífico, do lado esquerdo, e o Atlântico, do lado direito da região amazônica, que estão mais quentes pressionando o bioma.
“Esses dois fatores induzem a uma seca muito pronunciada e muito longa”, explica Nobre, um dos autores da tese de que a Amazônia está perto de seu “ponto de ruptura”, ou seja, de que o desmatamento pode levar a floresta tropical a um processo de savanização.
A progressiva perda de florestas também intensifica a seca deste ano, segundo Luciana Gatti: “O pior de tudo é o desmatamento, porque a própria floresta participa da formação das chuvas”. O lado leste da Amazônia brasileira, por onde avança o arco do desmatamento, perdeu em média 30% de sua cobertura vegetal, e esse trecho, explica pesquisadora do Inpe, influencia na formação das chuvas do lado oeste, onde a seca está mais pronunciada.
O pior de tudo é o desmatamento, porque a própria floresta participa da formação das chuvasLuciana Gatti, pesquisadora do Inpe
Com a volta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder e seus planos de retomar a proteção da Amazônia, a organização Imazon registrou um desmatamento já três vezes menor nos primeiros nove meses deste ano do que no mesmo período de 2022, sob o mandato de Jair Bolsonaro, que incentivou a corrida pela exploração dos recursos naturais da floresta. Mas apesar da redução, a destruição continua expressiva: foram quase 1.300 campos de futebol desmatados por dia este ano, segundo o Imazon, acima do registrado antes de 2017, período de outras gestões petistas.
Quais foram os prejuízos da crise hídrica?
Em meados de outubro, uma comitiva do governo federal desembarcou em Manaus para tentar explicar a nuvem de fumaça que sufocou a capital estadual por vários dias seguidos. Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, disse que a seca provocada por fenômenos climáticos convergiu com incêndios ilegais em áreas já ressecadas nos arredores da cidade e no sul do Amazonas, agravando o problema.
“Não existe fogo natural na Amazônia”, disse a ministra na ocasião, explicando que os incêndios são atos criminosos que fazem parte do processo de desmatamento da região. “Mesmo com uma redução de 64% no estado do Amazonas do desmatamento [em 2023], nós ainda temos uma situação de bastante dificuldade”, acrescentou. “Imagine se tivéssemos mantido o padrão que tínhamos no ano passado [sob a administração bolsonarista]”.
As queimadas levaram Manaus a acumular 387 microgramas de poluentes por metro cúbico, uma das piores marcas de qualidade do ar do mundo, atrás apenas de Chikkamagaluru, na Índia, e de Talang Betutu Palembang, na Indonésia, e cujo nível é bastante prejudicial à saúde. No dia 26 de outubro, embora a poluição tivesse recedido, Manaus continuava com um ar insalubre, com 131 microgramas de poluentes por metro cúbico, segundo o World Air Quality Index.
Mas é a fauna e as comunidades ribeirinhas e indígenas que mais sofrem com a seca aguda. Até o dia 27, 178 botos e tucuxis haviam morrido nos lagos Tefé e Coari, no interior do Amazonas, segundo um boletim do Instituto Mamirauá, organização ambiental que atua na região. No lago Tefé, a temperatura da água chegou a 40,9 °C, e o calor extremo é a principal hipótese para a mortandade. Testes laboratoriais ainda estão sendo conduzidos, mas, até o momento, está descartada a presença de patógenos. Ainda segundo o instituto, o nível das águas voltou a subir, estabilizando a situação.
Problemas históricos, como o acesso à alimentação e água potável, também se tornaram mais pronunciados entre os povos que ocupam as margens dos rios Solimões, Negro e Purus, segundo Mariazinha Baré, coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). “Já existe uma dificuldade contínua, e agora, por conta principalmente dos rios secos e da dificuldade logística, está muito pior”, afirma.
Com a forte seca, Baré conta haver menos peixe, menos caça, menos água limpa: “São quilômetros que algumas comunidades têm que caminhar para conseguir água, por exemplo, e a gente tem receio de que as fontes sequem por completo”.
Também ficou mais difícil se deslocar para buscar itens básicos e ajuda numa região que tem nos rios sua principal forma de transporte. E isso já prejudicou até a economia regional: a indústria de Manaus antecipou as férias de 15 mil metalúrgicos diante da dificuldade de entrega de componentes pelas hidrovias; remessas de exportações de grãos foram interrompidas, e o milho está sendo escoado pelo Sudeste, percorrendo um trajeto mais longo e mais caro do que se embarcasse ao exterior pela região Norte.
Rios menos trafegáveis reacenderam ainda disputas antigas: políticos locais pressionam pela continuidade da pavimentação da rodovia BR-319. A questão da modernização da rota, que liga os estados de Rondônia e Amazonas, entra e sai da agenda política desde a sua construção na década de 1970, mas a obra preocupa comunidades indígenas e ambientalistas sobre seus riscos socioambientais.
“Não se pode utilizar o problema que estamos vivenciando para justificar a construção da estrada”, diz Mariazinha Baré. “A estrada não está 100% construída, e estamos tendo muito mais problemas com ela do que se talvez ela não existisse, com um tanto que queimadas à beira da BR-319”, relacionadas à grilagem de terras e ao desmatamento ilegal.
Quais são as respostas das autoridades à emergência?
Em reuniões sobre a crise hídrica, autoridades do governo federal se esquivaram das pressões pela pavimentação da BR-319: Marina Silva disse que a decisão seria técnica — em vez de política — e o vice-presidente, Geraldo Alckmin, explicou que um grupo de trabalho foi criado para avaliar a obra.
Em uma reunião no dia 18 de outubro, Alckmin também anunciou o envio de R$ 647 milhões para amenizar os prejuízos da seca na Amazônia, distribuídos entre recursos para a alimentação e o abastecimento hídrico, além do controle de doenças ligadas à água e a dragagem de rios. Segundo Mariazinha Baré, esses recursos começaram a chegar na semana passada, principalmente com o envio de cestas básicas a locais mais críticos — quase dois meses depois do início da emergência hídrica.
Baré cobra mais transparência na distribuição de verbas para evitar desvios como os que já ocorreram em outras crises regionais, como na pandemia da Covid-19. “A gente está se desdobrando aqui para ter informações”, diz a líder da Apiam. “Nossa preocupação é que, com tanto recurso enviado direto para as prefeituras e o governo, eles se aproveitem dos problemas que a gente está vivenciando”.
Quanto tempo ainda deve durar a seca e ela pode se repetir?
Não há como prever a duração da seca, mas é possível haver alguns sinais este mês, quando comumente se instala a estação chuvosa, segundo especialistas ouvidos pelo Diálogo Chino.
José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, teme um prolongamento da seca pelo próximo ano. “Os níveis mais altos do rio Negro, em Manaus, ocorrem em junho, e é possível que em junho [do ano que vem], ele tenha um valor muito baixo”, afirma Marengo. “Não sabemos exatamente o quanto, mas muito baixo”.
Um boletim do Inpe e outras agências governamentais indicam que o pico de intensidade do El Niño deve ocorrer entre dezembro e janeiro próximos e que o fenômeno deve persistir durante o primeiro semestre de 2024. Porém, na sequência, já chega outra estação seca, podendo tornar a estiagem um martírio sem um fim próximo.
Cientistas exigem, portanto, mudanças rápidas e significativas para evitar as alterações climáticas. “Temos que reduzir o desmatamento da Amazônia a zero o mais rápido possível”, afirmou ao Diálogo Chino o cientista Paulo Artaxo, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
Essa, disse ele, seria uma das estratégias essenciais para se garantir um “um clima minimamente estável neste século e nos próximos”, dado o papel crucial das florestas tropicais — especialmente a Amazônia — na regulação do clima mundial.