Outdoors espalhados às margens de rodovias que cortam as maiores fazendas de soja do país traziam uma mensagem clara: “Mato Grosso fora da Amazônia Legal”, diziam os anúncios instalados em 2020. “Queremos crescer e produzir”.
Na época, o manifesto de produtores rurais do estado chegou a causar revolta nas redes sociais. Mas, com o tempo, a pauta saiu dos holofotes. Agora, às vésperas das eleições, a demanda voltou à tona em Brasília.
Apoiado pela bancada ruralista do Congresso, o deputado federal Juarez Costa, que busca a reeleição, apresentou, no dia 22 de fevereiro, o Projeto de Lei 337/2022. Se aprovada, a lei excluirá Mato Grosso da lista de estados que compõem a Amazônia Legal.
Composta por nove estados que abrigam a floresta tropical e sua bacia hidrográfica, a Amazônia Legal foi estabelecida por lei federal em 1953. Ela serviu para incentivar o planejamento econômico e se complementa a outras normas de proteção do bioma.
Em 1965, o Código Florestal determinou que proprietários rurais protegessem 50% da vegetação amazônica dentro de suas fazendas, a chamada “reserva legal”. Em 2012, uma revisão do código elevou essa proteção para 80%.
Com a exclusão de Mato Grosso da Amazônia Legal, ruralistas do estado, que é o maior produtor agropecuário do país, teriam que proteger apenas 20% da floresta tropical dentro de seus imóveis, como já ocorre em alguns biomas brasileiros.
— André Trigueiro (@andretrig) September 21, 2020
“Hoje você tem mil hectares e só pode plantar em duzentos [na Amazônia]. Você é obrigado a cuidar de oitocentos para quem? Que preservação é essa?”, disse Costa em entrevista em março.
Se nas últimas décadas o Brasil ganhou uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo, que contribuíram para desacelerar o desmatamento da Amazônia, nos últimos anos o caminho tem sido o inverso: o da desregulamentação e aceleração da perda florestal.
Segundo um estudo publicado na Nature, a flexibilização da proteção ambiental a partir de 2019 já reverteu avanços de anos anteriores no controle de incêndios na Amazônia e provocou “os impactos potencialmente mais graves à biodiversidade do bioma da última década”.
Boa parte dessas pressões veio da própria cúpula do governo de Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência em 2019 e busca a reeleição em outubro. Em caso de vitória, a tendência deve continuar, dizem ambientalistas. Mas grupos têm pressionado por uma virada sustentável.
Nesse cabo de guerra com as eleições no pano de fundo, o futuro da Amazônia está em jogo.
Flexibilização da proteção ambiental
Em 2019, o senador Flávio Bolsonaro apresentou um projeto de lei para extinguir totalmente a reserva legal, ou seja, permitir o desmatamento de toda a propriedade rural, inclusive às margens de cursos d’água. Com a repercussão negativa em meio à crise internacional das queimadas na Amazônia naquele ano, o projeto foi arquivado pouco depois de proposto.
Outros projetos de lei com o apoio da cúpula do governo seguem em discussões acaloradas. Tramita no Congresso Nacional em regime de urgência um projeto que autoriza a mineração em terras indígenas. “A Amazônia é uma área riquíssima. Em Roraima, há uma tabela periódica debaixo da terra”, afirmou Jair Bolsonaro em março deste ano.
Em outubro de 2021, o presidente visitou um garimpo ilegal no território indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Meses depois, em fevereiro deste ano, ele lançou um programa de apoio ao garimpo, o Pró-Mape, para estimular a mineração em pequena escala, principalmente na Amazônia.
Este mês, representantes da bancada ruralista se reuniram com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para pedir o avanço de tramitações importantes para o setor e que têm o apoio do presidente. Entre eles está o marco da regularização fundiária, que, segundo especialistas, legalizaria a ocupação indevida de terras públicas. Pacheco avisou ao caucus que projetos como esse não seriam apressados.
Mas se leis como essas têm encontrado resistências para serem aprovadas, a tendência de flexibilização flui mais facilmente pelo Executivo. Uma série de decretos e atos normativos do presidente eliminou ou enfraqueceu políticas ambientais. Bolsonaro extinguiu centenas de órgãos de participação pública, limitou a aplicação de multas ambientais e reduziu a transparência às informações de cadeias de produção, por exemplo.
A analista de políticas públicas do projeto Política Por Inteiro, Taciana Stec, explica que os discursos de desregulação e ataques ao meio ambiente nascem nos estados e chegam lentamente ao Congresso Nacional por atos legislativos e executivos.
O Política Por Inteiro, que monitora a movimentação de propostas legislativas, também percebe que muitos projetos que surgem tímidos em municípios e estados voltam à tona em anos eleitorais. “Esse foi um dos propósitos para começarmos a monitorar a política ambiental dos estados, mas encontramos desafios de transparência, principalmente no Mato Grosso”, afirmou Stec.
Um relatório lançado nesta quarta-feira mostrou exatamente que os órgãos estaduais vêm dificultando o acesso à informação sobre a regularização ambiental. A falta de transparência, diz o documento, “compromete a implementação do Código Florestal, dificultando também seu monitoramento”.
O presidente também travou a liberação de verbas de proteção a biomas, sendo o principal deles o Fundo Amazônia. Financiado com recursos da Noruega, Alemanha e Brasil, ele foi criado para fomentar atividades sustentáveis e de controle do desmatamento e de queimadas.
Há R$ 3,3 bilhões parados no Fundo Amazônia desde 2019. Isso é inadmissível
“Há R$ 3,3 bilhões parados no Fundo Amazônia desde 2019. Isso é inadmissível. Eu presidi o Ibama, e o fundo foi fundamental para as medidas de controle”, comentou Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e presidente do órgão de proteção ambiental entre 2016 e 2018.
Araújo é uma das autoras do Brasil 2045, um plano com 62 medidas proposto por ambientalistas para “desfazer os retrocessos” do atual governo na área. O documento, lançado na última semana pelo Observatório do Clima, defende que a derrota de Bolsonaro nas próximas eleições “é a única forma de reverter o quadro de deterioração da política ambiental, principalmente no que diz respeito à preservação da Amazônia”.
‘Propostas eleitoreiras’ contra a Amazônia
Com uma campanha regional pouco eficaz em 2020, a proposta de retirada do Mato Grosso da Amazônia Legal agora encontra adeptos de peso em Brasília. Ex-ministro da Agricultura em 2014 e deputado federal pelo Mato Grosso, Neri Geller, é relator do projeto.
“Ocorre que nesse mapeamento Mato Grosso foi muito prejudicado”, disse o político e produtor rural do estado que buscará uma vaga ao Senado nas próximas eleições. “Há um desequilíbrio que precisamos corrigir”.
Porém, segundo o Observatório do Código Florestal, organização que atua no combate ao desmatamento, a exclusão de Mato Grosso da zona de proteção implicaria na liberação de, no mínimo, dez milhões de hectares (ha) de Amazônia para o desmatamento. A lei também perdoaria o desmatamento ilegal na região, reduzindo em 3,3 milhões ha as áreas a serem restauradas.
Enquanto isto, o desmatamento segue avançando de forma acelerada sobre o bioma. Dados do governo federal, indicam que, em abril, o desmatamento na floresta tropical aumentou 74,5% em relação ao mesmo mês de 2021. A área total de 1.012,5 quilômetros quadrados desmatados foi a maior desde que o sistema começou a funcionar em 2015.
Pesquisadores avaliam que o aumento do desmatamento impulsionaria a seca regional e provocaria perdas agrícolas da ordem de US$ 2,7 bilhões ao ano. “O aumento do desmatamento não implicaria em maior produção agrícola e ganho econômico — pelo contrário, geraria perdas em áreas já consolidadas e prejuízos de grande monta”, diz a nota técnica do observatório.
Propostas de flexibilização ambiental e discursos contra a Amazônia abrem caminho para um sentimento de permissividade da devastação, segundo Alice Thuault, diretora-executiva do Instituto Centro de Vida, organização que atua com políticas públicas ambientais.
É preciso reconstruir a governança ambiental no Brasil porque ela sofreu nos últimos anos um processo muito claro de desconstrução, aparelhamento e má gestão
“Os projetos são baseados em um discurso simplificador e cheio de mitos, como o mito de que o Brasil precisa produzir para alimentar o planeta”, afirmou Thuault.
Na avaliação de Herman Oliveira, secretário-executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento, propostas de abertura de áreas protegidas para impulsionar setores agrícolas na Amazônia “são ideias eleitoreiras”.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de intenção de voto, e Bolsonaro farão uma disputa polarizada nas eleições de outubro. Apesar de Lula antagonizar com o atual presidente, Oliveira avalia que o debate sobre Amazônia ainda é pouco presente no discurso do petista. Entre suas propostas, está a criação de um “Ministério Indígena”.
“É óbvio que se colocar o governo Bolsonaro em contraste com qualquer outro em matéria ambiental, este foi o governo mais desastroso que já existiu”, disse Oliveira. “Mas olhando para Lula, não há proposta ambiental. Ele tem proposta social, econômica, mas não ambiental”.
Já Thuault diz que a situação se tornou tão dramática que é preciso garantir pelo menos a manutenção de elementos democráticos no país. Nesse cenário de terra arrasada, qualquer sinalização de manutenção da democracia seria um alívio:
“É muito óbvio para todo mundo que é preciso reconstruir a governança ambiental no Brasil porque ela sofreu nos últimos anos um processo muito claro de desconstrução, aparelhamento e má gestão”.