Do alto, a região amazônica reflete dois mundos antagônicos lado a lado.
De um deles, a floresta densa impede que a luz e a vista penetrem além da copa das árvores. Os rios assumem contornos únicos, como se deixassem impressões digitais nas matas. As comunidades ribeirinhas e indígenas quase se fundem com a vegetação.
Do outro, a agricultura mecanizada corta retângulos que se perdem de vista. O garimpo rasga a mata verde como cicatrizes na pele, só que por quilômetros afinco. O gado salpica de branco as pastagens em cores pastel.
Mas a série de incêndios que rapidamente transforma amplas áreas verdes em cinzas expõem uma clara assimetria: um mundo avança sem que o outro consiga reagir.
Nos últimos meses, esse avanço tem sido cada vez mais notório por quem acompanha as transformações da Amazônia de cima.
“Acredito que a aproximação das eleições presidenciais, e essa indefinição de quem vai ser o novo presidente no ano que vem, tenha motivado uma corrida pela destruição da floresta” , comentou Roni Lira, que há mais de duas décadas faz o monitoramento aéreo do bioma.
No dia 26 de agosto, o Diálogo Chino acompanhou um sobrevoo do Instituto ClimaInfo por áreas com rápido avanço do desmatamento nos municípios de Santarém, Belterra, Trairão, Itaituba e Jacareacanga, todos no Pará. Durante o voo, Lira anotava as mudanças no solo que ele percebia em seu sistema de geotecnologia e a olho nu.
“O presidente, desde seus discursos pré-eleição, sinaliza para um incentivo a devastar a Amazônia em prol de um desenvolvimento que a gente não enxerga”, disse Lira.
Além da retórica bélica contra a proteção das florestas e de povos tradicionais, Lira lembra que o presidente trocou delegados que investigavam crimes ambientais e reduziu a verba do Ministério do Meio Ambiente, principalmente no controle de incêndios pelo Ibama, órgão de fiscalização, garantindo um “apoio institucional”, segundo ele, a grandes desmatadores.
Com as pesquisas indicando que Bolsonaro pode não se reeleger nas eleições presidenciais do dia 2 de outubro, a destruição da floresta amazônica avança ainda mais rapidamente.
“Já que ano que vem não há garantia de que o governo vai continuar mantendo essa bondade com quem desmata, estão desmatando a torto e direito”, afirmou Lira.
Incêndios e desrespeito a reserva
O clima úmido da floresta amazônica previne que incêndios ocorram naturalmente. Isso significa que as queimadas da região são ateadas pelo próprio homem, geralmente para tirar a mata do caminho de atividades econômicas que se estabeleceram na região, como a extração de madeira, a soja, o gado e o garimpo. Os incêndios começam a se multiplicar assim que as chuvas torrenciais cessam, desde meados de maio.
Na Amazônia, entre maio e agosto deste ano, já foram registrados um total de 43.338 alertas de incêndio, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Esse número é o maior da gestão de Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência em janeiro de 2019, e representa mais do que o dobro dos alertas de 2018, antes de sua posse. Para o mês de agosto, o número de incêndios já é o maior dos últimos 12 anos.
O desmatamento também segue batendo recordes, segundo dados do Inpe. Ele saltou de 7.500 km², em 2018, para 13.000 km², em 2021 — a maior área desmatada em um ano desde 2006.
Embora a legislação determine a manutenção da “reserva legal”, ou seja, que 80% da vegetação nativa de Amazônia brasileira seja preservada dentro de propriedades rurais, a determinação parece estar mais no papel do que no mapa.
No sobrevoo, Lira registrou o desmatamento de 1.125 hectares de uma propriedade dentro da Área de Proteção Ambiental do Tapajós. O corte de floresta, que desrespeitou a reserva legal, foi feito em apenas 34 dias, entre abril e maio deste ano (imagem e gráfico abaixo).
A fronteira agrícola segue a toda velocidade pelo Mato Grosso e Pará, estados amazônicos mais desmatados nos últimos anos e que se fortalecem como o eixo de produção e distribuição de commodities. Por eles cruza a BR-163, cuja obra começou nos anos 1970, mas cuja pavimentação só foi finalizada na gestão Bolsonaro. A rodovia integra o corredor viário de exportação de grãos pelos estados amazônicos a norte do país.
A partir do dia 15 de setembro, o Diálogo Chino lança a série de podcast Amazônia Ocupada, que percorreu a rodovia para contar como se deu a colonização da região desde a época da ditadura militar e como esse percurso traduz o modelo de desenvolvimento — e de exploração — predominante até hoje para a floresta tropical.
O Pará é também por onde o garimpo ilegal avança mais rapidamente na Amazônia — grande parte, dentro de territórios indígenas, como o dos Munduruku, onde o desmatamento ilegal triplicou em 2019, na comparação com o ano anterior; e desde então, só se expande.
“Os garimpos vêm crescendo muito rápido no território desde 2019, quando começaram as promessas de que ia poder garimpar nas terras indígenas”, disse Alessandra Munduruku, vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Pará, ao Diálogo Chino.
Dados coletados por Lira com base no Inpe confirmam a explosão da atividade ilegal durante a gestão Bolsonaro. Enquanto que, em 2018, foram abertos 470 hectares de mata nativa para o garimpo em terras indígenas do Pará, o número saltou para 2.404 em 2019 e segue aumentando desde então. Até agosto deste ano, já foram abertos 584 hectares para a atividade ilegal, mais do que todo o ano da pré-eleição de Bolsonaro.
Embora o projeto de lei 191/2020, proposto pelo presidente para liberar a exploração mineral dentro de territórios, continue tramitando no Congresso, na prática é como se ele já estivesse em vigor, diz a líder Munduruku: “O projeto não está nem aprovado, mas os invasores já estão lá dentro, com máquinas enormes, pistas e aviões clandestinos”.
“Isso traz muito sofrimento para a gente. Acabaram com rios, igarapés, ficou só lama. Não tem mais peixe, e quando tem, está contaminado pelo mercúrio. Tem família indígena comprando água, isso está acontecendo dentro da Amazônia”, acrescentou.
A escalada de violência se traduz não só com a destruição do ambiente natural quanto de quem vive e cobre a região. Em julho, os holofotes do mundo se voltaram para o assassinato do indigenista Bruno Araújo e o jornalista britânico Dom Phillips.
Mas o crime não é uma exceção no Brasil, que ocupa o quarto lugar no ranking de países que mais matam ativistas ambientais, segundo o levantamento da Global Witness. A organização contabiliza 317 mortes na última década, um número subestimado.
“A gente não pode se cansar de pedir justiça por quem lutou para defender as políticas ambientais do país “, disse Auricelia Arapiun, uma das líderes das comunidades ribeirinhas às margens dos rios Tapajós e Arapiuns. “Houve tantas mortes, não só deles [Bruno e Dom], mas eles são um símbolo da gravidade da situação que vivemos hoje na Amazônia”.
Em entrevistas e discursos, o presidente Bolsonaro insiste que o Brasil segue dando exemplo em proteção de florestas e seus povos. Em contraposição, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, líder nas pesquisas de intenção de votos, afirmou que quer acabar com o garimpo ilegal, lançar uma aliança de países com florestas tropicais e criar um ministério indígena.
As promessas do candidato, entretanto, ainda encontram ceticismo entre ambientalistas consultados pelo Diálogo Chino, incluindo a líder Arapiun:
“Tenho mais expectativa no novo Congresso do que no Executivo. Com mais lideranças indígenas e populações tradicionais ocupando aquele espaço, há mais esperanças. Essa é a grande sacada dessa eleição”.