As negociações da ONU que buscam estabelecer as metas de proteção à biodiversidade e um novo marco global para a restauração e conservação ambiental ganharam o apelido de “a outra COP”, em referência às negociações anuais sobre mudanças climáticas. Mas o perfil político de cada uma das conferências é bem distinto.
Nos últimos dez meses, a perda da biodiversidade ganhou bastante destaque, desde a publicação de um relatório histórico por cientistas da Plataforma Intergovernamental de Ciência e Políticas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. O documento divulgou que um milhão de espécies estão ameaçadas de extinção.
Também foi revelado que as empresas são mais dependentes da natureza do que imaginávamos: cerca de 44 trilhões de dólares de todo o valor econômico gerado no mundo – o equivalente a metade do PIB mundial – é moderada ou altamente dependente da natureza, segundo um relatório do Fórum Econômico Mundial e da consultoria PwC.
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) recentemente publicou as propostas iniciais para um novo marco e essa primeira versão, ou “esboço zero”, será discutida em uma série de encontros preparatórios para a Conferência das Partes (COP), que será sediada pela China na cidade de Kunming, entre os dias 15 e 28 de outubro. O primeiro desses encontros estava inicialmente programado para acontecer em Kunming, mas foi transferido como medidas de combate ao coronavírus – e agora será realizado entre os dias 24 e 29 de fevereiro em Roma, na Itália.
O China Dialogue conversou com especialistas sobre cinco questões que serviram de base para as propostas.
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Necessidade de expandir as áreas destinadas à proteção da natureza
Os parques nacionais e outras áreas protegidas cobrem 15% da terra e 10% do mar territorial. Esses números são amplamente reconhecidos como insuficientes. O “esboço zero” da proposta afirma que pelo menos 60% das áreas consideradas importantes devem ser protegidas até 2030, cobrindo pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas. Pelo menos 10% dessas áreas deve estar sob proteção estrita.
Os novos números foram bem recebidos pelos cientistas e pelos defensores ambientais, que já exigiam essa mudança. “Para nós, este é um bom começo. Mas não somos ingênuos, ainda esperamos muitas discussões políticas acaloradas sobre o tema”, disse Li Shuo, consultor sênior de clima e políticas energéticas para o Greenpeace China.
Os gastos com a proteção da biodiversidade precisam ser muito mais pesados nas próximas décadas se quisermos chegar perto de alcançar as ambições do primeiro esboço da proposta
O professor Callum Roberts, biólogo especializado em conservação marinha da Universidade de York, acredita que estabelecer políticas para áreas protegidas será uma empreitada complexa. “Essas questões exigem um equilíbrio delicado. Se o texto sobre as áreas protegidas for prescritivo demais, vai assustar alguns países. Pode ser que eles não queiram aderir e então não conseguiremos o acordo necessário. Por outro lado, não quero que as metas sejam extintas – é importante sermos ambiciosos nesse esboço”.
Para Brian O’Donnell, diretor da Campaign for Nature, as metas são boas, porém muito vagas. “Há preocupações sobre a terminologia – a proteção estrita abarca apenas 10% das áreas. E o restante? Como será feita a gestão para assegurar a conservação?”, perguntou ele.
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Necessidade de melhorar a implementação de forma significativa
Matt Walpole, diretor sênior dos programas de conservação na Fauna and Flora International, reforçou que a ausência de um foco específico nas questões de implementação é a principal causa do fracasso das tentativas anteriores de conter a perda da biodiversidade.
Ao contrário do Acordo de Paris, onde os governos trouxeram os seus planos de ação para serem debatidos durante as negociações, a CDB simplesmente acerta a terminologia do marco, depois incumbe aos governos colocar ações detalhadas em andamento.
A dinâmica é parecida com a das discussões climáticas: os países em desenvolvimento buscam o apoio financeiro dos países mais desenvolvidos
“Quando chegam a um acordo sobre o mecanismo, ainda não há nenhum compromisso com ações”, afirma ele. “Ficamos sem saber como fazer as mudanças, que não são explicitadas em nível de detalhe, e isso é algo que enfraquece a convenção de forma significativa”.
Linda Krueger, consultora sênior de políticas na The Nature Conservancy, disse que a implementação depende do envolvimento de toda a sociedade. “Não temos o engajamento dos stakeholders certos. Precisamos do envolvimento de todos os ministros de Energia, Transportes e Indústria na implementação do acordo, mas é muito provável que eles não estejam nem sabendo que isso tudo esteja acontecendo”.
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Necessidade crítica de um reforço financeiro
Essa questão é outra batata quente política para a CDB, disse Li. “A dinâmica é parecida com a das discussões climáticas: os países em desenvolvimento buscam o apoio financeiro dos países mais desenvolvidos. Na CDB, vemos que os países africanos são maioria nisso”, disse ele.
Roberts afirmou que mais dinheiro precisa ser injetado na biodiversidade. “Os gastos com a proteção da biodiversidade precisam ser muito mais pesados nas próximas décadas se quisermos chegar perto de alcançar as ambições do primeiro esboço da proposta”, declarou ele.
O’Donnell mencionou que o financiamento precisa vir de todos os setores, como governos, empresas e filantropia. No entanto, as discussões acerca dessa questão ainda estão tímidas, relatou ele. “O foco está mais forte nas discussões relacionadas às políticas, ciência e necessidades e prioridades locais. Mas a parte financeira é decisiva – se não houver um aumento dos financiamentos para as metas, elas não vão alcançar os objetivos.”
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Contabilização de efeitos do padrão de consumo
30%
Soluções baseadas na natureza somam 30% do esforço necessário para atingir as metas do Acordo de Paris
O “esboço zero” da proposta reconhece que o consumo insustentável tem ligação com a perda da biodiversidade e afirma que “pessoas do mundo inteiro” devem buscar moderar o estilo de vida e o consumo para alcançar níveis sustentáveis até 2030. Mas ainda é preciso debater muito até onde o novo marco vai lidar com questões do tipo, incluindo temas como população, comércio e setores extrativos, prevê Li.
“Algumas dessas questões não estão refletidas no ‘esboço zero’, mas posso lhe assegurar que elas estão sendo bastante discutidas nas negociações. Esses impulsionadores indiretos estão um pouco além da alçada da CDB, mas contribuem muito para a perda da biodiversidade”, relata Li.
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Necessidade de enfrentar as questões de clima e de biodiversidade ao mesmo tempo
O “esboço zero” reconhece que a natureza desempenha um papel importante na mitigação das mudanças climáticas. O documento afirma que as soluções baseadas na natureza – como o sequestro de carbono nos solos, árvores e oceanos – somam cerca de 30% do esforço necessário para atingir as metas do Acordo de Paris. O’Donnell concorda, acrescentando que a coordenação dos dois objetivos é algo que faltou no passado.
Roberts também concorda, reconhecendo que ambos os desafios precisam ser enfrentados juntos para que tenham êxito individualmente. “A não ser que aumentemos muito o nível da nossa ambição climática, não conseguiremos deter a perda da biodiversidade. Além disso, se não expandirmos muito as áreas de preservação ambiental, não conseguiremos implementar soluções baseadas na natureza para mitigar as mudanças climáticas em uma escala grande o suficiente para fazer uma diferença real”.
Essas questões estão em processo de desenvolvimento até outubro. Muito comentaristas acreditam que a China é o local ideal para sediar a COP da biodiversidade, uma vez que o país já está implementando um conceito de “civilização ecológica”, usando para isso uma estratégia em que delimita linhas intransponíveis de proteção ecológica para equilibrar o crescimento econômico com a proteção ecológica e ambiental.
“Os chineses estão em uma posição única de ajudar a CDB a ampliar o seu foco, que historicamente tem sido muito estreito. São eles que podem introduzir alguns dos conceitos absolutamente necessários para alcançarmos a transformação de que precisamos”, disse Krueger.
Este artigo foi originalmente publicado no China Dialogue