A cúpula mundial da vida silvestre, concluída na última sexta-feira (25) na Cidade do Panamá, trouxe mudanças significativas para a proteção da fauna na América Latina: o comércio internacional de nadadeiras de tubarão terá regulamentação inédita e haverá novas restrições também para o comércio de tartarugas, pererecas e raias – vendidas como animais de estimação na Europa, Estados Unidos e Ásia.
Para a 19ª Conferência das Partes (CoP19) da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Flora e Fauna Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites), realizada na capital panamenha entre os dias 14 e 25 de novembro, os governos signatários, entre eles o Brasil, voltaram a se reunir na América Latina depois de 20 anos. O Chile sediou a última CoP da Cites na região, em 2002.
O que é a Cites?
É um acordo global para garantir que o comércio internacional não leve animais e plantas silvestres à extinção, por meio de regulações e proibições incluídas nos apêndices do documento.
“Ter realizado esta CoP na América Latina permitiu mais participação dos governos e organizações latino-americanas, e acho que isso deu mais visibilidade às questões da região”, observou German Forero, diretor científico da Wildlife Conservation Society (WCS) na Colômbia, durante a reunião no Panamá.
“Geralmente, o foco [das reuniões da Cites] são nos animais mais populares da África e da Ásia, mas agora as pessoas estão prestando atenção para os problemas que vão além dessas espécies. O comércio de animais silvestres e, infelizmente, o tráfico, são comuns na América Latina, mas aqui a questão é que se tratam de espécies pequenas e mais fáceis de contrabandear: pererecas, tartarugas, raias, peixes. Essa mudança de foco é importante para solucionar os problemas da América Latina, que tem uma grande biodiversidade”, acrescentou Forero.
A Cites é um acordo global assinado em 1975 e hoje conta com 183 países signatários, incluindo a União Europeia (UE). A Cites visa garantir que o comércio internacional não leve animais e plantas silvestres à extinção.
As regulações e proibições para o comércio de espécies estão incluídas nos apêndices do documento. O Apêndice I é destinado aos animais e plantas silvestres mais ameaçados, cujo comércio internacional geralmente é proibido. O Apêndice II é reservado às espécies que podem ser ameaçadas pelo comércio se este não for regulamentado.. Neste último caso, o comércio só é permitido se o país exportador emitir uma licença para confirmar que a captura ou colheita foi feita de forma legal e sustentável.
Uma vez que a superexploração e o comércio ilegal figuram entre as principais causas da crise global da biodiversidade, a Cites pode desempenhar um papel crucial em reduzir esses danos. Aqui, analisamos cinco decisões-chave tomadas na CoP19 que podem ter um grande impacto sobre animais e plantas silvestres na América Latina.
Nadadeiras de tubarão
Entre os resultados mais notáveis da CoP19 da Cites, está o acréscimo de três famílias de tubarões e raias ao Apêndice II – o que significa que o comércio internacional destas espécies será finalmente regulamentado.
Ao lado de Colômbia, República Dominicana, Equador, El Salvador e 36 outros países, o Panamá liderou uma proposta para incluir no Apêndice II todas as 56 espécies de tubarões da família Carcharhinidae (como o tubarão-tigre e o tubarão cabeça-de-cesto). O texto destacou que 68% destas espécies estão ameaçadas de extinção, sendo que as barbatanas desses animais representam até 86% do comércio global de nadadeiras de tubarão. Boa parte das nadadeiras segue para a China, onde elas são comercializadas como afrodisíacos. Já o Brasil é um grande importador da carne de tubarão.
A proposta se concentrou em 19 espécies particularmente ameaçadas, sob o argumento de que as nadadeiras e a carne de tubarão são muito difíceis de identificar, o que dificulta a proteção efetiva destas espécies.
Mesmo com apoio de vários países à proposta japonesa para restringir a lista apenas às espécies mais ameaçadas, bem como a sugestão do Peru para excluir o tubarão-azul no documento, as partes reunidas no Panamá votaram pela regulamentação do comércio de todos os tubarões da família Carcharhinidae.
Também foram adotadas propostas para incluir no Apêndice II a família dos tubarões-martelo (Sphyrnidae) – cujas nadadeiras também são comercializadas – e as raias-viola. A maioria das espécies das duas famílias está ameaçada, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza.
“Estamos extremamente felizes, porque o mundo despertou para a conservação dos tubarões, os principais predadores que mantêm o equilíbrio dos ecossistemas necessários para nossas comunidades costeiras”, disse Shirley Binder, conselheira sênior do Ministério do Meio Ambiente do Panamá e presidente da plenária da CoP19, que apresentou a proposta na reunião.
Stan Shea, da Bloom Association Hong Kong, organização dedicada à proteção dos oceanos, conversou com o Diálogo Chino a respeito do tema: “Esta CoP ajudou a conservação marinha a dar um passo adiante, não apenas com listagens [de espécies que requerem proteção], mas com novas ferramentas de implementação. Agora, com mais espécies sendo incluídas na Cites, podemos obter dados específicos sobre o que é comercializado.”
Pererecas-de-vidro
Na CoP19 da Cites, os governos signatários adotaram a proposta apresentada pela Costa Rica, juntamente com outros 13 países, para acrescentar toda a família de pererecas-de-vidro (Centrolenidae) ao Apêndice II. Isso significa que o comércio internacional dessas espécies dependerá de licenças específicas. Assim chamada devido à sua barriga translúcida, a família das pererecas-de-vidro compreende pelo menos 158 espécies nativas das Américas do Sul e Central. Muitas delas são vendidas como animais de estimação na Europa, no Leste Asiático e nos Estados Unidos. Das espécies cuja conservação foi avaliada, quase 60% foram consideradas em perigo de extinção, segundo o documento.
“Temos visto um enorme aumento no comércio de pererecas-de-vidro”, disse Alejandra Goyenechea, conselheira da organização Defenders of Wildlife, sediada nos EUA. “Elas estão sendo comercializadas ilegalmente, porque o país de origem não deu permissão para a exportação. Esses animais foram retirados da natureza e estão disponíveis em feiras e na internet”.
Esta CoP ajudou a conservação marinha a dar um passo adiante, não apenas com listagens [de espécies ameaçadas], mas com novas ferramentas de implementação.
A CoP19 adotou a proposta apesar da oposição inicial da UE e do Canadá, que questionaram se seria necessário incluir toda a família de anfíbios na lista da Cites. Anteriormente, em 2019, uma proposta para colocar quatro gêneros de pererecas-de-vidro havia sido rejeitada por uma estreita margem na CoP18.
“Os países não recuaram – voltaram mais fortes, com mais proponentes, com mais energia, e apresentaram a família completa”, disse Goyenechea. “Ter uma família completa de anfíbios listada no Apêndice II é histórico”.
Enquanto famílias inteiras de animais como ursos e falcões já figuravam nos apêndices da Cites, as únicas listas de anfíbios disponíveis se referiam a algumas espécies ou gêneros específicos.
Comércio de madeira
Duas propostas lideradas por Colômbia, Panamá e UE para acrescentar espécies de árvores latino-americanas ao Apêndice II da Cites também foram adotadas na CoP19 – o que deve resultar na regulamentação do comércio internacional dessas madeiras. Todo o gênero Dipteryx foi adicionado ao Apêndice II depois que os autores argumentaram que o alto valor de sua madeira e o crescente comércio internacional ameaçam quatro espécies do gênero. Disseram ainda que o comércio de outras espécies também precisa ser regulamentado, pois são difíceis de distinguir. A Bolívia, o Brasil e a Guiana se opuseram à lista, mas foram voto vencido.
Três gêneros de ipê também foram acrescentados ao Apêndice II. Os proponentes argumentaram que, em razão do crescimento demorado dessas árvores e da alta demanda internacional, o comércio de ipê requer regulamentação para garantir a sobrevivência das espécies. A proposta foi adotada à revelia de Bolívia, Brasil e Peru, que se posicionaram contrários à medida por considerar que muitas espécies de ipê não estão ameaçadas.
Em ambos os casos, as partes concordaram em um atraso de 24 meses antes da entrada em vigor da listagem, depois que alguns países pediram mais tempo para se preparar para a implementar as mudanças. No plenário, o Reino Unido se opôs ao adiamento.
Leigh-Anne Bullough, diretora científica da Cites para a delegação britânica, explicou o voto ao Diálogo Chino: “O Reino Unido apoia totalmente a listagem da Dipteryx, mas teme que esse atraso de 24 meses crie um incentivo para o corte de grandes quantidades dela para criar estoques.
Tartarugas de água doce
Ao todo, 12 propostas para aumentar a regulamentação do comércio de tartarugas de água doce foram adotadas na Cites da CoP19. As espécies latino-americanas acrescentadas ao Apêndice II incluíram as tartarugas do gênero Rhinoclemmys; as tartarugas de lama do gênero Kinosternon e as peculiares tartarugas matamatás das bacias dos rios Amazonas e Orinoco. Todas são capturadas e comercializadas internacionalmente como animais de estimação.
Como as tartarugas latino-americanas discutidas na CoP19 da Cites foram adicionadas ao Apêndice II, as vendas para o comércio de animais de estimação não são proibidas, mas devem ser regulamentadas para garantir a sobrevivência da espécie a longo prazo.
Raias da Amazônia
Outro grupo de espécies latino-americanas que ganhou mais proteção foram as raias de água doce. Sete espécies do gênero Potamotrygon, encontradas apenas no Brasil, foram adicionadas ao Apêndice II da Cites. As espécies são populares na Ásia e na Europa devido à pele chamativa, e o Brasil argumentou que a regulamentação deste comércio é necessária para garantir sua sobrevivência a longo prazo.
“Estas raias são vendidas na Ásia. No entanto, o Brasil não autoriza exportações de animais silvestres retirados diretamente da natureza. Ou seja, esses espécimes estão sendo comercializados ilegalmente”, diz Goyenechea, da Defenders of Wildlife.
O importante agora é que os países concentrem ações e esforços na implementação e no cumprimento [desse acordo]
Além das raias, Goyenechea falou da preocupação com o comércio de animais de estimação e da necessidade de aumentar os esforços para monitorá-lo e regulamentá-lo: “Nesta CoP, os países sinalizaram que entendem a necessidade de regular o comércio internacional de animais de estimação, que vem aumentando. Gostaria que a Cites olhasse mais de perto para isso, pois ele tem um grande impacto sobre os países ricos em biodiversidade e é fácil reduzir sua demanda – animais de estimação exóticos não são algo de que as pessoas precisem”.
Yovana Murillo, da WCS, acolheu as novas listagens na CoP, mas apontou para novos desafios: “É bom que estas propostas tenham vingado, mas agora o desafio é a implementação. O comércio ilegal também envolve espécies incluídas na Cites, e temos que combater o tráfico de vida silvestre em nossa região – o importante agora é que os países concentrem ações e esforços na implementação e no cumprimento [desse acordo]”.