O financiamento público tem demorado para chegar à mesa de negociações do novo acordo da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU para a proteção da vida silvestre.
A questão é crucial nas discussões da COP15, em andamento em Montreal, no Canadá, que teve pouco avanço até agora nas diversas rodadas de debates.
A falta de financiamento é enorme – e uma grande questão em discussão. O parecer mais recente do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) estima que os investimentos para proteger e melhorar a gestão da natureza precisam mais do que dobrar em relação aos níveis atuais – o que representaria um montante de US$ 384 bilhões por ano até 2025.
As promessas feitas até agora incluem um fundo chinês de 1,5 bilhão de yuans (US$ 1,1 bilhão) para a proteção da biodiversidade nos países em desenvolvimento. Os valores foram anunciados em outubro de 2021 pelo presidente da China, Xi Jinping, durante a primeira fase da COP15 – realizada em Kunming, na China, em uma versão presencial e outra online.
Na segunda fase da COP15, em Montreal, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau abriu a conferência com o compromisso de conceder 800 milhões de dólares canadenses (R$ 3,1 bilhões) para a conservação da natureza no Canadá, contando com a colaboração de povos indígenas. O projeto terá duração de sete anos.
A questão financeira vem travando o avanço do novo acordo nas reuniões da cúpula em Montreal. Vários países em desenvolvimento se recusam a concordar com qualquer meta em discussão até que isso seja resolvido.
A União Europeia, que se diz a maior financiadora global da biodiversidade, comprometeu-se a dobrar sua contribuição anual para 7 bilhões de euros (R$ 39 bilhões) entre 2021 e 2027. Mas essa ajuda internacional não basta para tapar o buraco financeiro, segundo Florika Fink-Hooijer, diretora-geral para o Meio Ambiente na Comissão Europeia.
Todas as fontes de financiamento – não só as públicas – são necessárias, disse Fink-Hooijer em uma coletiva de imprensa na COP15. “O setor privado tem muito potencial para pagar pela biodiversidade – metade do PIB global depende da natureza”.
Mas o capital privado representa apenas 17% do total dos investimentos na natureza, conforme avaliações do Pnuma. A instituição convocou o setor privado a aumentar sua participação em “várias escalas de grandeza” nos próximos anos, para atingir tanto as metas de proteção da biodiversidade quanto as climáticas.
‘Representação sem precedentes’
O interesse do setor privado pela biodiversidade cresce rapidamente, embora ainda não esteja nem perto das atenções voltadas às mudanças climáticas. Na COP15, das mais de 21 mil pessoas credenciadas, há cerca de mil representantes corporativos, segundo a CDB. É um número muito superior ao que se viu em qualquer outra COP da biodiversidade e inclui membros de setores de finanças, turismo e construção civil, entre outros.
“É uma representação sem precedentes do mundo dos negócios”, diz Eva Zabey, diretora-executiva da coalizão Business for Nature. “Cerca de 90% das empresas aqui nunca estiveram em uma COP de biodiversidade antes”.
Várias iniciativas foram lançadas na COP15 ou em torno dela. Uma delas foi o “acelerador da transparência”, da Global Commons Alliance, cujo objetivo é encontrar potenciais lacunas nos compromissos corporativos para proteger e restaurar a natureza.
A aliança quer estar “um passo à frente” das empresas que buscam usar o conceito de “natureza positiva” como o equivalente em biodiversidade à “zero líquido” no jargão das mudanças climáticas. O objetivo é assegurar que os compromissos corporativos sejam baseados na ciência e apoiados pelos recursos ambientalmente corretos. Ela também quer trazer informações às organizações que pressionam por mudanças em empresas.
Além disso, a World Benchmarking Alliance lançou uma “avaliação da natureza”, destacando as 400 empresas mais influentes do mundo com progresso na proteção e restauração da natureza. Pesquisas realizadas pela aliança constataram que apenas 5% das empresas fizeram uma avaliação científica sobre os impactos de suas operações e modelos de negócios na natureza e biodiversidade, muito abaixo dos 50% que fizeram o mesmo em relação às mudanças climáticas.
Essa avaliação também descobriu que as empresas são pouco transparentes quando suas operações comerciais estão baseadas em áreas de alta prioridade para a biodiversidade ou próximas a elas e poucas tinham compromissos para respeitar os direitos dos povos indígenas. A empresa com a pontuação mais alta alcançou apenas 55 de 100 em governança, biodiversidade e impacto social.
A aliança diz que algumas das empresas com maior pontuação em seus rankings são aquelas que passaram por grande escrutínio público em escândalos anteriores. Por exemplo, a mineradora Vale ficou em quarto lugar no ranking. A Vale detém duas barragens de rejeitos que desmoronaram em diferentes incidentes no Brasil, matando centenas de pessoas e poluindo rios com resíduos da mineração.
O segundo e mais grave desses desastres, em Brumadinho, foi “um ponto de virada” para a empresa em 2019, segundo Malu Paiva, vice-presidente-executiva de sustentabilidade da Vale. Falando em um evento paralelo da COP15, ela diz que hesitou em se juntar à empresa há 18 meses: “Sentar aqui não é fácil, conhecemos o passado, mas é um novo momento para a empresa”.
Enquanto isso, a organização Global Reporting Initiative, cuja plataforma serve para empresas divulgarem e se informarem sobre as mudanças climáticas, quer trazer mais transparência sobre toda a cadeia de produção de empresas que pressionam a biodiversidade.
Divulgação obrigatória
De fato, muitas empresas que participam do COP15 pedem pela obrigatoriedade da comunicação de riscos e impactos para o setor privado. Essa obrigação é proposta na meta 15 do marco global da biodiversidade, negociado em Montreal.
Antes da COP15, mais de 330 instituições comerciais e financeiras, incluindo Aviva Investors, BNP Paribas, Danone, Nestlé, Rabobank, Roche, Tata Steel e Unilever, enviaram uma carta aos governos membros da convenção, solicitando a adoção de requisitos obrigatórios para a natureza até 2030. De acordo com uma pesquisa realizada em outubro por consultores da KPMG, apenas cerca de 40% de 5,8 mil empresas globais fornecem informações sobre a biodiversidade.
Grandes grupos de conservação, como o WWF e The Nature Conservancy, apoiam o setor privado e trabalham junto às empresas nas negociações, assim como colaboram em projetos de restauração da natureza. No entanto, tem havido reações contrárias de outras entidades, como a Friends of the Earth International (FoEI) e representantes de povos indígenas.
Em um relatório bastante crítico, a FoEI acusou as empresas de um “sequestro corporativo” das negociações da CDB. Isso porque abordar os verdadeiros motores da perda da biodiversidade prejudicaria os interesses econômicos da maioria das empresas, argumenta a organização. “Eles fazem questão de estar presentes para demonstrar sua boa vontade em cooperar – mas em seus próprios termos. Desta forma, evitam a imposição de medidas inconvenientes ou que afetariam seus interesses econômicos”, afirma o relatório.
A FoEI cita a compensação ambiental, o autolicenciamento, a autorregulamentação e as soluções baseadas na natureza como exemplos de medidas “alternativas”, que dão a impressão de ação efetiva das empresas enquanto lhes asseguram a manutenção de seus negócios e lucros. Um conceito que reverberou na COP15 foi o greenwashing – quando as empresas passam um verniz ambientalista em suas operações e tentam compensar danos à biodiversidade com iniciativas em outros lugares, observa a entidade.
O objetivo da convenção é salvar a biodiversidade, não os negócios
Em uma entrevista coletiva, Samuel Gilbert, coordenador na FoEI, questionou a campanha empresarial para tornar obrigatória a apresentação de relatórios. “Ela se concentra em um processo – a divulgação. É muito pouco. Quando as empresas lideram o processo sobre o que querem divulgar, precisamos ser muito céticos”, diz.
Nele Marien, também da FoEI, acrescenta: “Para a maioria das empresas, seu principal objetivo é obter lucro. Sua missão não é salvar a biodiversidade”.
Embora reconheça que algumas empresas tiveram desempenho melhor do que outras, Marien diz que a elaboração de relatórios não reduziria a destruição do meio ambiente ou os abusos contra os direitos humanos. “O principal tipo de relatório que eles querem tornar obrigatório é o de risco para as empresas. Mas o objetivo da convenção [sobre diversidade biológica] é salvar a biodiversidade, não os negócios”, diz.
A meta 15 do esboço do marco global de biodiversidade continha uma proposta para que as empresas assumissem a responsabilidade legal por infrações, inclusive com penalidades e indenizações. No entanto, negociadores removeram o item por voto unânime.
Um relatório publicado por organizações ambientais fez recomendações aos governos com alguns mecanismos e medidas que vão contra essa obrigatoriedade. No entanto, a fiscalização não é mencionada na carta enviada pelas empresas que pedem requisitos obrigatórios para a natureza.
Da mesma forma, Simon Counsell, conselheiro da Survival International, entidade defensora dos direitos dos povos indígenas, escreveu em um blog que a “natureza positiva” não é um objetivo baseado em ciência — ao contrário da meta sobre mudanças climáticas para manter a temperatura média global abaixo de 1,5 ºC em relação aos níveis pré-industriais.
“Ele deixa o marco global da biodiversidade no campo da subjetividade, da incerteza e do potencial abuso… Levanta muitas questões sobre qual é a natureza em questão e o que ela significa em termos de diversidade genética, espécies ameaçadas, populações ameaçadas e ecossistemas”, escreveu Counsell.
Soluções baseadas na natureza
O ceticismo sobre o envolvimento empresarial na COP15 também aparece nas negociações. O conceito de “soluções baseadas na natureza” destaca a conexão entre projetos para restaurar a natureza, mitigar e se adaptar às mudanças climáticas e apoiar a subsistência das populações locais. Nos últimos anos, o termo ganhou força nas negociações climáticas e em outros fóruns internacionais. Porém, algumas partes da CDB são contrárias a ele, porque entendem que se trata de um endosso à compensação ambiental das empresas.
O que são as soluções baseadas na natureza?
Ações para proteger e administrar de forma sustentável os ecossistemas naturais, elemento crucial para enfrentar muitos desafios socioambientais, especialmente a crise climática.
Manuel Pulgar-Vidal, diretor mundial em clima e energia na WWF e ex-ministro do Meio Ambiente peruano, expressou sua frustração sobre o tema em uma coletiva de imprensa da COP15. “Ainda há oposição de sete ou oito países sobre incluir soluções baseadas na natureza no acordo em Montreal”.
“Não é verdade que as soluções baseadas na natureza sejam baseadas no mercado ou em um mecanismo de compensação, nunca foi assim. Não é verdade que não inclua os direitos humanos”, disse Pulgar-Vidal.
Ele observou que todos os países em negociação na COP 15 já haviam concordado com soluções baseadas na natureza em três outras COPs da ONU realizadas no início deste ano (sobre clima, desertificação e áreas úmidas), bem como na Assembleia do Meio Ambiente da ONU.
“A CDB é a única convenção que ainda não reconheceu soluções baseadas na natureza. Se não o fizer, será uma grande perda para a CDB – é a CDB e o marco global da biodiversidade que podem definir o que isso significa. Se não o fizerem, alguma outra organização o fará”, disse ele.
Natureza positiva
Eva Zabey, da Business for Nature, também defende o termo “natureza positiva”, dizendo que isso significa primeiro reduzir os impactos negativos antes de aumentar os impactos positivos até 2030. Ela reconhece que as empresas encontrariam dificuldade em se vender como “positivas para a natureza” agora, pois isso exigiria “mudanças transformadoras em suas cadeias de valor”.
Ela defende ainda a campanha por relatórios obrigatórios. “Os dados da [organização ambiental] CDP mostram que as empresas transparentes tomam mais providências. Mas precisamos de mais informações; neste momento, estamos voando às cegas”, diz.
Não é verdade que as soluções baseadas na natureza sejam baseadas no mercado, nunca foi assim
Magali Anderson, diretora de sustentabilidade e inovação da Holcim, empresa produtora de cimento, diz que, há vários anos, a companhia vem levantando informações sobre seus impactos ambientais. “[A empresa] realmente mostra onde está o impacto dela e para onde as prioridades devem ir”.
O maior impacto de Holcim está em suas 900 pedreiras, diz Anderson. A empresa trabalhou com especialistas para buscar formas de recuperar suas pedreiras ainda em atividade, em vez de esperar pela conclusão das operações. Na Espanha, isso trouxe de volta uma orquídea que não aparecia na área há 20 anos. “Os relatórios realmente nos incentivaram, em vez de apenas plantar árvores e dizer que fizemos a restauração”, disse ela.
Zabey relata que muitos negociadores ficaram satisfeitos em ver o apoio do setor privado à COP15. Ela reconhece que as empresas precisam construir a confiança das partes interessadas, acrescentando: “Precisamos ser pressionados e responsabilizados”.