Esteban Martín cuida de dezenas de colmeias em sua residência à beira do córrego El Laurel, em uma das mais de cem ilhas da província Entre Ríos, na Argentina. As ilhas fazem parte das áreas úmidas do delta do rio Paraná, um dos mais extensos, povoados e biodiversos do mundo.
“Sou nativo da ilha e apicultor”, diz Martín, aos 66 anos. “Morei aqui minha vida inteira e nunca tinha visto este lugar como agora, todo seco e queimado. A paisagem de antes desapareceu. Depois do incêndio, mudou para sempre. Isso aqui era uma zona úmida, mas está virando pastagem”.
As áreas úmidas correspondem a mais de 20% do território argentino. São diversos ecossistemas cobertos por água superficial ou com solos úmidos, como banhados, estuários e matas ciliares. Essas áreas prestam importantes serviços ecossistêmicos, desde a mitigação da seca até a captura de carbono.
Então, no fim de 2022, uma nova onda de incêndios destruiu toda sua produção de mel: “Foi muito difícil. Ainda estou tentando voltar a produzir, porque perdi todas as abelhas. O incêndio afetou minha saúde e meu trabalho”.
O Delta do Paraná, que abrange 1,7 milhão de hectares, enfrenta uma crise histórica de incêndios. Recentemente, o fogo chegou mais ao norte, na província de Corrientes e nas zonas úmidas da Reserva Provincial Iberá — que se estende por 1,3 milhão de hectares.
Mais da metade do Delta do Paraná foi afetada pelo fogo nos últimos três anos. Nas áreas úmidas de Iberá, as chamas se espalharam por mais de 100 mil hectares só nos dois primeiros meses de 2023.
Os incêndios impactaram diversos ecossistemas, bem como seus solos, habitats e espécies. A poluição do ar e a fumaça são um risco para a saúde pública de cidades próximas, como Rosário, com um milhão de habitantes. “A queima de áreas úmidas é um dos piores desastres ecológicos da região e afeta seriamente a saúde de nossa população”, diz um comunicado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Rosário.
Organizações ambientalistas, no entanto, alegam que os incêndios foram provocados por ação humana, apontando para mudanças no uso do solo promovidas por pecuaristas que expandem suas pastagens por meio da queima da vegetação natural. Para regular o uso do solo e proteger os ecossistemas, há anos essas entidades pedem a criação de uma Lei de Áreas Úmidas — mas o apoio político ainda é insuficiente.
Demanda por carne, busca por pasto
A pecuária em terras úmidas é uma atividade tradicional na Argentina, um país que abriga cerca de 53 milhões de cabeças de gado. Na província Entre Ríos, onde estão 80% das ilhas do Delta do Paraná, há 2,8 milhões de bois distribuídos por áreas continentais e insulares, segundo o Censo Agropecuário de 2018 da Argentina.
A pecuária argentina fechou 2022 com uma produção de mais de três milhões de toneladas de carne, com uma parcela significativa enviada ao exterior: as exportações somaram 625.700 toneladas no ano passado, um aumento de 9,5% em relação a 2021, de acordo com dados da Câmara de Indústria e Comércio de Carnes e Derivados da Argentina (Ciccra). A China é o maior comprador de carne bovina do país e destino de 485.700 toneladas em 2022, um aumento de 14,4% nas exportações em relação a 2021. Oito de cada dez quilos de carne argentina exportadas foram para o país asiático, trazendo receitas da ordem de US$ 2,3 bilhões.
À medida que a demanda cresce e a produção se expande, as áreas úmidas da Argentina viraram alvo para se tornarem pastagens, inclusive com o apoio de controversos programas do governo.
“A pecuária pode até ser a atividade econômica mais apropriada nas áreas úmidas do Delta do Paraná, mas somente se for feita de forma sustentável e não industrial”, diz Rubén Quintana, biólogo e presidente da Fundación Humedales.
A pecuária nas zonas úmidas da Argentina mudou muito nas últimas décadas: se antes havia uma paisagem com pequenas fazendas e culturas de subsistência, agora o que se vê são propriedades com operações de escala industrial.
No entanto, o agrônomo Ernesto Massa, do Instituto Nacional de Tecnologia Agrícola (Inta), destaca que houve um pico no número de cabeças de gado em 2007, quando havia 1,5 milhão de animais — algo que não repetiu desde então. “Desde 2010, o rebanho vem diminuindo, embora de fato tenha ocorrido um aumento devido à baixa do rio. Hoje estamos com 60% ou 70% do rebanho de 2007”, explica.
O pecuarista Leonardo Scarparo concorda. “Estamos com 10% do rebanho que tínhamos na melhor época. As ilhas estavam vazias antes dos incêndios”, diz o fazendeiro, que cuida de uma propriedade com 800 hectares e cerca de 200 animais. A maioria de sua produção é exportada.
Fogo, gado e acusações mútuas
Organizações ambientais afirmam que os incêndios nas áreas úmidas foram provocados por pecuaristas para “limpar” a vegetação seca no inverno e permitir que a grama crescesse para alimentar o gado na primavera.
“O avanço da fronteira pecuarista e o aumento do rebanho nas áreas úmidas explicam boa parte dos incêndios”, diz Ivo Peruggino, da rede de conservação Multisectorial Humedales. “Além disso, há outros atores envolvidos, como o setor imobiliário e os caçadores de animais silvestres”.
De sua ilha em Entre Ríos, Esteban Martín oferece outra interpretação: “Antes, a pessoa que fazia a queimada era o nativo. Mas não agora. Qualquer um vem, taca fogo e não se importa com nada, principalmente quem aluga a terra para a criação de gado”.
Ernesto Massa destaca que as queimadas são uma prática antiga na pecuária, mas alerta para seus riscos: “O fogo serve para renovar a vegetação, é uma prática cultural, barata e fácil de manejo de pastagens, mas é preciso usá-la corretamente”.
Já Scarparo argumenta que os incêndios foram causados propositalmente para “gerar intriga” com os fazendeiros.
Lei das Áreas Úmidas: a saga continua
Enquanto a crise dos incêndios se agrava, aumenta a pressão para a criação de uma Lei de Áreas Úmidas como ferramenta para regular os usos produtivos do solo. Porém, já foram quatro tentativas fracassadas na última década — a mais recente em 2022, quando o Congresso da Argentina barrou um novo projeto de lei sobre o tema.
Segundo ambientalistas, setores economicamente poderosos impedem qualquer avanço nessa legislação: “O agronegócio empurra sua fronteira permanentemente sem se preocupar com o que está desmatando”, diz uma carta aberta da Associação Argentina de Advogados Ambientalistas. “Essa conjunção de interesses contra a Lei de Áreas Úmidas provoca uma enorme resistência política e midiática. É o lobby do fogo”.
Organizações agrícolas, por sua vez, alegam que essa lei seria contrária aos interesses do setor produtivo e geraria mais pobreza. Em novembro de 2022, uma coalizão de grupos agropecuários influentes publicou uma carta aberta intitulada “Não precisamos de outra lei de política ambiental”, declarando que essa proposta vai contra sua atividade e “põe em risco as origens rurais e o desenvolvimento do país”.
Essa conjunção de interesses contra a Lei de Áreas Úmidas provoca uma enorme resistência política e midiática. É o lobby do fogo
Após quatro tentativas fracassadas, quem acompanhou o debate de perto considera improvável que a Lei das Áreas Úmidas seja novamente discutida no Congresso num futuro próximo. “É ano eleitoral e não acho que qualquer partido vá olhar para isso”, diz Quintana. “Esperava que o projeto avançasse no ano passado, mas não avançou”.
Desafios da produção sustentável
A Fundación Humedales trabalha com um grupo de pecuaristas nas áreas úmidas do país para introduzir métodos de produção mais sustentáveis. Isso envolve adotar práticas que melhorem o manejo ambiental das fazendas pecuaristas, além de um programa de monitoramento e avaliação de indicadores.
A organização trabalha com 12 fazendas em diferentes partes do Delta do Paraná em questões como manutenção de pastagens, melhoria da qualidade da proteção do solo, manejo d’água e da vegetação, controle da população de animais e convivência com a fauna silvestre.
“O modelo de pecuária extensiva implica uma transformação drástica das áreas úmidas”, diz Quintana. “Antes havia uma pecuária tradicional de zona úmida, mas provavelmente também não é a mais apropriada agora. Temos que procurar modelos intermediários que permitam a produção sem alterar profundamente a hidrologia dessas áreas”.