Natureza

A dramática luta para salvar as últimas 300 onças-pintadas na Argentina

Trabalho de reintrodução ajudou a aumentar a população do felino, mas caça ilegal e desmatamento podem comprometer sua recuperação
<p>Mariua, onça-pintada fêmea (à esquerda) e seus dois filhotes (à direita), no Parque Nacional Iberá, no estado de Corrientes, Argentina. A reintrodução de onças-pintadas na área começou em 2015 e agora há entre 16 e 21 animais livres (Imagem: Magali Longo)</p>

Mariua, onça-pintada fêmea (à esquerda) e seus dois filhotes (à direita), no Parque Nacional Iberá, no estado de Corrientes, Argentina. A reintrodução de onças-pintadas na área começou em 2015 e agora há entre 16 e 21 animais livres (Imagem: Magali Longo)

“Um dia saí a cavalo com os técnicos encarregados de monitorar os animais e, de repente, vimos Mariua, uma onça-pintada fêmea voltando da caça com seus dois filhotes”, lembra Pascual Pérez, guarda-florestal do Parque Nacional Iberá, na região nordeste da Argentina. “Ela ficou nos encarando, esperando os filhotes correrem para o abrigo. É impossível não se empolgar ao vê-las andando pelo Iberá”.

Pérez se emociona ao reviver aquele encontro. Nascido em Mburucuyá, pequena cidade na província de Corrientes, ele controla o portal de Carambola, um dos pontos de acesso ao parque nacional — que, junto ao Parque Provincial Iberá, forma a maior área úmida do país. Há setenta anos, a onça-pintada (Panthera onca) foi declarada extinta nessa região, mas agora a espécie começa a voltar ao seu habitat. 

A reintrodução iniciou em 2015, quando a primeira fêmea chegou aos abrigos do parque coordenados pela Fundação Rewilding Argentina. Após um processo de adaptação em espaços cercados ao ar livre e com ajuda de monitoramento remoto, os animais foram liberados progressivamente nos anos seguintes. A partir daí, a população de onças seguiu crescendo com novas reintroduções e a procriação dos animais nas planícies alagadas — embora esse trabalho tenha sido afetado pela seca dos últimos anos.

Onça-pintada Mariua em meio à vegetação do Parque Nacional Iberá. O parque tem mais de 750 mil hectares de extensão, com vasta oferta de alimento e poucos riscos para os predadores (Imagem: Sebastián Navajas / Fundação Rewilding Argentina)

“No momento, há 16 animais livres. Algumas fêmeas estão em idade reprodutiva, mas não conseguimos confirmar se tiveram filhotes”, diz Sebastián Di Martino, diretor de conservação da Fundação Rewilding Argentina. 

“A densidade de onças-pintadas na ilha [de San Alonso] deve ser a maior do mundo. Não vai demorar para que comecem a se espalhar pelo resto do parque nacional”, avalia Agustín Paviolo, coordenador do Projeto Yaguareté, que estuda o impacto do retorno dos yaguaretés (“onças” em guarani) no bioma.

Onças na Argentina

O norte da Argentina é o ponto mais austral de ocorrência do maior felino das Américas. Originalmente, sua presença chegava ao norte da Patagônia. “Os registros históricos indicam que havia onças-pintadas nas províncias de Buenos Aires, La Pampa, San Luis e em toda Córdoba”, observa Verónica Quiroga, bióloga da Universidade de Córdoba. Hoje, a situação é bem diferente.

Além do parque Iberá, a espécie só é encontrada em três áreas no norte do país, em ecossistemas muito distintos: na Mata Atlântica, em parques naturais que vão da província de Misiones ao sul do Brasil; no Chaco, na fronteira com o Paraguai; e na porção sul da floresta de Yungas, vegetação montanhosa compartilhada com a Bolívia. O Departamento para a Conservação da Fauna Silvestre e Biodiversidade acredita que a população de onças-pintadas na Argentina não passe de 300 animais. Os felinos enfrentam ameaças diferentes em cada local, demandando esforços de conservação bastante abrangentes.

“Para nós, a onça-pintada é como um parque nacional ambulante. Nossa responsabilidade é protegê-la mesmo fora das áreas protegidas”, diz Federico Granato, presidente da Direção de Parques Nacionais, agência subordinada ao Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Argentina. 

Uma pesquisa publicada em junho sobre o chamado Corredor Verde, zona que inclui a província argentina de Misiones e os parques brasileiros de Iguaçu e Turvo, sugere que a população de onças-pintadas na área permaneceu com cerca de 90 indivíduos nos últimos seis anos. 

“Não estou desapontado”, diz Paviolo, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo. “É verdade que esse número poderia dobrar, mas chegamos a um ponto de equilíbrio entre as pressões humanas, as áreas de conservação e a reprodução do animal”, conclui.

Também houve boas notícias em outras regiões. “Nas Yungas, armadilhas fotográficas mostram que a espécie está se espalhando para lugares onde não havia seus registros”, diz Granato, do ministério. No Chaco, onde só há 20 onças, foi confirmada a presença de três machos pela primeira vez em muitos anos. Mas Verónica Quiroga, da Universidade de Córdoba, é cética quanto ao que acontece no Chaco: “Recebemos relatos de rastros ou avistamentos, mas isso não significa que a população de onças esteja se recuperando”.

Onça-pintada macho no Chaco, onde a população de apenas 20 indivíduos seria ecologicamente equivalente à extinção, dizem especialistas (Imagem: Fundação Rewilding Argentina)

Antigamente, as onças também ocupavam áreas da floresta de Yungas nas províncias argentinas de Jujuy, Salta, Tucumán e Catamarca. Agora, estão distribuídas em apenas 22% do território, entre Salta e Jujuy. Ainda assim é a maior população da espécie na Argentina — em torno de 150 a 200 indivíduos, de acordo com uma estimativa da década passada. 

Porém, à espera de dados atualizados, especialistas não são muito otimistas. “O número real pode ser menor. Os últimos estudos com armadilhas fotográficas, um em 2013 e outro em 2021, apresentaram densidades preocupantemente baixas”, pontua Soledad de Bustos, diretora de El Pantanoso, área protegida sob administração da Fundação Biodiversidade, em uma zona próxima ao Parque Nacional Calilegua.

Luta pela sobrevivência da onça-pintada

Em dezembro passado, a morte de uma onça macho em Clorinda, perto da fronteira com o Paraguai, virou manchete em todo o país. A Fundação Rede Yaguareté conseguiu localizar o caçador por meio de postagens dele no Facebook, mas não houve qualquer penalidade até o momento.

A caça continua sendo uma das principais ameaças às espécies com risco de extinção na Argentina. “Nos povoados e pequenas cidades de Misiones, é uma atividade recreativa de fim de semana profundamente enraizada”, diz o pesquisador Paviolo. A situação é semelhante nas províncias de Formosa e Chaco. 

“Nas Yungas, a onça-pintada se alimenta de gado, que ocupa praticamente todo o espaço”, explica de Bustos. “Por isso, os pecuaristas saem para matá-la assim que detectam rastros em sua propriedade — mesmo como medida de precaução”. 

Natural de Iberá, Omar Rojas vive em uma fazenda próxima à Ilha de San Alonso, onde as onças-pintadas andam livremente. “Se você perguntasse aos fazendeiros vizinhos o que eles achavam do retorno da onça-pintada, eles diriam que a matariam”, diz Rojas. 

Ele acrescenta que agora os pecuaristas sabem que devem informar à administração do parque se virem indícios de uma onça em suas propriedades, mas também alerta que “se uma onça atacar uma vaca, pode haver problemas com os fazendeiros”.

A jaguar footprint in the Chaco region, Argentina
Pegada de onça-pintada na região do Chaco. Esses felinos podem percorrer áreas de 500 a 50 mil hectares sem outros predadores à vista, mas seu habitat está diminuindo na Argentina (Imagem: Miranda Volpe / Fundação Rewilding Argentina)

A necessidade de conter esses conflitos impulsionou uma série de iniciativas de conservação da onça-pintada. Foram promovidas campanhas de educação ambiental, além de instaladas luzes para espantar os felinos dos currais e gravadores para detectar tiros em pontos tradicionais de caça. Uma pesquisa publicada no ano passado detectou tiros em 43 de 90 desses pontos ao longo de sete meses. O estudo abrange mais de 950 mil hectares do Corredor Verde entre Argentina e Brasil.

O ecoturismo também foi incentivado como alternativa. “A chegada de turistas desencoraja a atividade dos caçadores”, explica Sebastián Di Martino, da Fundação Rewilding Argentina: “Percebemos isso no Parque Nacional El Impenetrable. No primeiro ano de abertura do camping, o número de visitantes passou de zero a três mil, e o movimento de pessoas ao longo do rio Bermejo reduziu o número de tiros detectados”.

“Em Baritú [parque nacional na província de Salta], a Direção de Parques Nacionais construiu um curral comunitário para impedir a entrada das onças. Ali os vizinhos podem reunir seus bovinos sem risco”, diz Federico Granato. “Já começamos a construir um segundo curral, e a ideia é inaugurar outros”.

Mas a caça ilegal não é a única ameaça. Os acidentes de carro são frequentes, principalmente em estradas que cruzam o habitat das onças em Misiones. Lá, além das placas de trânsito e os radares de controle de velocidade, um sistema de monitoramento geoespacial é usado para facilitar a coleta, avaliação e alerta de dados de tráfego.

Apesar dessas boas iniciativas, o desmatamento e a fragmentação do habitat ainda são os principais problemas enfrentados pelas onças. “A mudança na percepção das pessoas sobre a caça será inútil se as onças ficarem sem florestas para viver”, destaca Verónica Quiroga. As onças-pintadas são animais solitários que podem viajar até 40 quilômetros por dia e percorrer áreas de 500 a 50 mil hectares sem encontrar predadores rivais.

Apenas no Chaco, a extensão da fronteira agrícola em direção ao norte do país devastou mais de seis milhões de hectares de floresta nativa desde a década de 1990 e, embora o ritmo tenha diminuído, o desmatamento continua. A extração indiscriminada de madeira cortou a conexão entre as Yungas e o Chaco. A atividade ameaça ainda desconectar as Yungas bolivianas da Argentina, bem como isolar as duas áreas onde a espécie ainda habita na província de Salta.

A corral to prevent the entrance of the jaguars and allows the neighbours to group their cows in El Impenetrable National Park, Argentina
Área cercada no Parque Nacional El Impenetrable, no Chaco, criada para ajudar as onças a acasalar e aumentar sua população (Imagem: Fundação Rewilding Argentina)

“Trabalhamos em um relatório sobre a conexão Pantanal-Chaco com gente da Bolívia e do Paraguai e percebemos que estamos ficando sem corredores biológicos”, alerta Quiroga. “Os grupos populacionais de onças-pintadas no Paraguai estão cada vez mais isolados, desconectados do Chaco argentino e do sul da Bolívia. Este é um momento crucial: no atual ritmo de desmatamento, a onça-pintada não terá chance de se recuperar”, conclui.

Federico Granato, presidente da Direção de Parques Nacionais, aponta a fragmentação do habitat como o principal problema também em Misiones: “A criação de ilhas onde apenas espécimes da mesma linhagem se reproduzem pode gerar distúrbios genéticos de longo prazo, que acabem expondo a população a várias doenças”, explica. Em 2021, sua agência recebeu US$ 60 milhões, por meio de um acordo com o Banco Mundial, para fortalecer as áreas protegidas do país. Metade da verba foi destinada à proteção dos corredores biológicos.

Apesar dos enormes desafios, ainda há espaço para o otimismo nas áreas onde a onça-pintada sobrevive. 

Pascual Pérez explica as razões de sua esperança no projeto de Iberá: “Aqui a onça-pintada não sofre as ameaças que existem em outras partes do país. São mais de 750 mil hectares, com muitas presas disponíveis e quase nenhum risco, porque estamos longe de centros urbanos importantes. É um lugar mágico para que a espécie continue crescendo”. 

Já Agustín Paviolo confia na conscientização da população: “É inevitável que haja mudanças culturais com relação à caça”.

Considerada um Patrimônio Natural da Argentina, a onça-pintada vive em estado crítico, mas a situação não está perdida. A próxima década determinará o sucesso ou o fracasso dos esforços para protegê-la.