Escárcega, uma cidade de cerca de 60 mil habitantes no estado de Campeche, no sudeste do México, fica na rota do Trem Maia, megaprojeto promovido pelo presidente Andrés Manuel López Obrador, mais conhecido como AMLO. O trem passará pela avenida principal da cidade, uma via barulhenta, de intenso tráfego e comércio, a poucos metros do palácio municipal.
A cidade acena para seus laços históricos com as ferrovias: seu nome vem de Francisco Escárcega, que conduziu obras ferroviárias no sudeste do México, e ela abriga uma pequena estação de trem da década de 1930. Agora, mais de 90 anos depois, moradores de Escárcega esperam que o projeto encabeçado por AMLO e pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento do Turismo (Fonatur) traga benefícios locais.
O Trem Maia
Lançado em 2018 pelo presidente mexicano Manuel López Obrador, o Trem Maia consiste em um projeto ferroviário de 1.500 km de extensão com o objetivo de conectar destinos turísticos no sudeste do país, além de um potencial uso para redução de custos de transportes de commodities específicas. A sua conclusão está prevista para o final de 2023.
“Esperamos que ele traga empregos e turistas e que as pessoas venham nos visitar”, disse Betsy Rodríguez, funcionária de uma loja da cidade, ao Diálogo Chino.
Mas o objetivo do Trem Maia de impulsionar a indústria de turismo sustentável enfrenta um paradoxo. Em algumas regiões por onde passará o trem, ele ameaça atrações únicas, como cenotes (lagos subterrâneos), cavernas e a flora e fauna do bioma circundante, que atraem milhares de visitantes.
Segundo fontes oficiais, o Trem Maia terá 21 estações e 14 paradas menores (de embarque e desembarque) ao longo de cerca de 1.500 quilômetros de trilhos. Ele passará por 78 municípios dos estados de Campeche, Chiapas, Quintana Roo, Yucatán e Tabasco, no sul e sudeste do país. Os três primeiros estão na Península de Yucatán, importante área turística, que recebe 11 milhões de visitantes anualmente.
Ela também é lar de ecossistemas frágeis, que devem ficar mais vulneráveis, segundo críticos ao projeto, com a construção de uma linha que também transportará soja, óleo de palma e carne de porco — principais produtos agrícolas da região.
Projeto de interesse global
Grande parte do esqueleto da antiga linha de trem já foi removida, e seus dormentes estão em uma cidade próxima a Escárcega, como constatou o Diálogo Chino em uma recente visita ao longo da rota. Uma pequena cerca de arame separa a linha de trem da rua vizinha, onde as casas estão desabitadas.
Em 2020, a Fonatur concedeu a construção do primeiro trecho do Trem Maia a um consórcio formado pela portuguesa Mota-Engil e a China Communications Construction Company (CCCC, que detém 30% de participação na empresa portuguesa de infraestrutura) e as mexicanas Grupo Cosh, Eyasa e Gavil Ingeniería.
A Seção 1, trecho em questão, exigirá investimentos de mais de US$ 630 milhões. Primeira das sete que compõem o projeto, essa seção se estende por 227 quilômetros desde o município de Palenque, no estado de Chiapas, passando por Boca del Cerro e El Triunfo, no estado de Tabasco, e por fim chegando a Escárcega, em Campeche.
A Steel Dynamics, dos Estados Unidos, fornecerá os trilhos para a Seção 1. Já as seções 2 e 4 estão a cargo da Angang Steel Company Ltd, subsidiária da estatal chinesa Ansteel Group Corporation; e as 3 e 5, da japonesa Sumitomo. Ainda não há informações sobre quem fornecerá os materiais para as seções 6 e 7.
Sergio Prieto é pesquisador no El Colegio de la Frontera Sur (Ecosur), um centro de pesquisa focado no desenvolvimento sustentável do sul do México. Para ele, a ferrovia busca reconfigurar o território e sua economia, tendo o turismo e a geração de empregos como principais motores de desenvolvimento.
“Promove-se a ideia de que ele é uma alternativa ao extrativismo [de recursos naturais] e que não agride o meio ambiente. Mas não é nem um trem, muito menos maia. É um enorme projeto regional que incorpora outras iniciativas”, disse Prieto.
De fato, o Trem Maia traz riscos significativos de impactos ambientais, culturais, econômicos, sociais e territoriais. A Seção 1 corta áreas de floresta e rios de Chiapas e Tabasco, o que provocou protestos de organizações ambientais no México, inclusive com o apoio de artistas mexicanos, gerando um confronto direto com AMLO.
Construção do Trem Maia corre contra o tempo
Apesar das mudanças nas rotas, e da pressa e determinação presidencial de levar o projeto adiante apesar da oposição, as obras do Trem Maia estão atrasadas, de acordo com o Auditor Superior da Federação (ASF), a controladoria nacional.
A construção da Seção 1 começou em 2020, sem estudos ou licenças de impacto ambiental. Apesar dos reveses do projeto e das críticas sobre os danos aos ecossistemas do entorno, AMLO garantiu que o trem entrará em operação antes de dezembro de 2023 — contrariando todas as probabilidades.
Elisa Cruz, pesquisadora da Universidade Autônoma Pública de Chiapas, disse ao Diálogo Chino que os estudos oficiais sobre o Trem Maia devem ser tornados públicos. “Sempre nos opusemos às más práticas. E agora nossa posição é mais contundente, porque queremos uma mudança”.
Construtoras já removeram os trilhos antigos, abriram caminhos para a nova linha, construíram pontes para veículos e ergueram estações da Seção 1. Operários têm trabalhado 24 horas por dia em turnos alternados, às vezes até aos domingos. Agora eles enfrentam tarefas mais complexas, como a instalação dos novos trilhos, a construção de unidades de apoio ao longo da rota e a operacionalização de sistemas eletrônicos.
Em uma avaliação do progresso do megaprojeto em 2020, o ASF já havia chamado a atenção para os atrasos. Apenas um quinto das obras previstas para 2019 e 2020 havia sido concluído devido ao redesenho da rota, ao atraso na obtenção de licenças e na remoção da via existente — contratempos que a Fonatur atribuiu à pandemia da Covid-19.
Além disso, o ASF sinalizou para o aumento do custo do trem, de US$ 7,3 bilhões, em 2019, para US$ 8,8 bilhões, no ano seguinte, com pelo menos US$ 13 milhões não contabilizados devidamente.
O Trem Maia favorecerá os já favorecidos, como as indústrias do turismo e imobiliária
Em Palenque — onde AMLO tem forte influência, já que é onde está La Chingada, sua chácara e casa de férias —, a construção avança de forma semelhante a Escárcega. No bairro Pakal-na, em Palenque, os trilhos ficam paralelos a uma rodovia, entre estradas secundárias e áreas de floresta, e próximos ao antigo aeroporto.
Cruz disse que a construção acabou sendo mais invasiva e destrutiva do que inicialmente prometido: “O governo disse que só haveria uma renovação [da via], mas não é o que está acontecendo. E há uma diferença enorme nisso, porque o impacto é muito maior, é preciso cavar a área novamente, remover a terra, a flora, e há os efeitos sobre a fauna”.
Um estudo de 2021 sobre a vida selvagem em áreas protegidas, realizado por pesquisadores do Ecosur, concluiu que o Trem Maia agravará a fragmentação e a deterioração da qualidade do habitat em um período de apenas dez anos.
O trabalho indica que a superfície que esse projeto afetará equivale a 15% dos 25 mil hectares perdidos na construção da rede rodoviária da região ao longo de dois séculos. Ele aponta ainda que o trem terá um impacto ambiental maior do que o causado pelas estradas, com efeitos “negativos”, “diretos” e “de alta magnitude”.
A perda de habitats causada pela operação da ferrovia também pode aumentar bastante na primeira década de funcionamento do Trem Maia, devido a uma possível expansão da agricultura e pecuária, impulsionadas pela redução dos custos de transporte.
O governo mexicano alega que o projeto não terá prejuízo ambiental e, pelo contrário, pode trazer mais sustentabilidade à região. Segundo a Fonatur, a ferrovia pode complementar o Sembrando Vida — programa de desenvolvimento rural que paga a seus beneficiários cerca de US$ 250 por mês para o plantio de árvores frutíferas e madeireiras e cobre 142.852 hectares ao longo da rota do Trem Maia. Atualmente, o Sembrando Vida cobre 19.707 hectares entre Palenque e La Libertad, município vizinho.
Alfredo Sandoval, taxista em Escárcega, confia que os benefícios da ferrovia serão bem distribuídos. “Se há dinheiro para ele, deve haver para todos. Mais turistas vão chegar e temos que estar preparados”, disse ao Diálogo Chino.
Para Prieto, do Ecosur, o trem pode ter enormes benefícios econômicos. “Mas ele favorecerá os já favorecidos, como as indústrias do turismo e imobiliária”, avalia. “Concessões de grandes extensões territoriais são dadas ao capital privado para que ele possa explorar os recursos. Isso vai ter um efeito cascata de beneficiar atores menores, mas é preciso ver além do curto prazo”.