Natureza

Chile quer ser país ‘verde’ com nova Constituição

Crise climática e direitos da natureza são alguns conceitos que aparecem na proposta da Constituição chilena, que enfrenta um plebiscito para sua implementação em setembro
<p><span style="font-weight: 400;">Arte de rua na Plaza Italia, no centro de Santiago do Chile, reflete o interesse dos cidadãos por uma nova Constituição. A proposta busca substituir o texto constitucional de 1973, um legado da ditadura de Augusto Pinochet (Imagem:<strong> </strong><a class="cursor-pointer copyrightlink dark-navy" href="https://www.alamy.com/search/imageresults.aspx?pseudoid=%7bB42189C9-BE80-4B96-8B0D-260FA22A0A60%7d&amp;name=Jose%2bGiribas%252fS%25c3%25bcddeutsche%2bZeitung%2bPhoto&amp;st=11&amp;mode=0&amp;comp=1"><span id="automationNormalName">Jose Giribas</span></a> / Alamy)</span></p>

Arte de rua na Plaza Italia, no centro de Santiago do Chile, reflete o interesse dos cidadãos por uma nova Constituição. A proposta busca substituir o texto constitucional de 1973, um legado da ditadura de Augusto Pinochet (Imagem: Jose Giribas / Alamy)

“O Chile é um Estado social e democrático de direito. É plurinacional, intercultural e ecológico. É constituído como uma república solidária. Sua democracia é paritária e reconhece como valores intrínsecos e irrenunciáveis a dignidade, liberdade e igualdade substantiva dos seres humanos e sua relação indissolúvel com a natureza”.

Assim começa o primeiro artigo da nova Constituição do Chile, que, desde seu início, aponta para as mudanças fundamentais que o país pode sofrer a partir de 4 de setembro deste ano se ela for aprovada em referendo nacional.

Após quase um ano de trabalho, os 155 membros eleitos da Assembleia Constitucional redigiram um novo documento para substituir a Constituição escrita à época da ditadura de Augusto Pinochet. O processo é uma resposta política e institucional aos protestos ocorridos em 2019.

Há 17 referências ao termo “ecológico” no texto, desde o “direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado” à obrigação de o Estado “adotar uma administração ecologicamente responsável”, proteger a “função ecológica da terra” e até determinar a “função social e ecológica” da propriedade.

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Há 17 referências ao termo "ecológico" no texto da nova Constituição do Chile. Além disso, há 50 normas ambientais na nova proposta, mostrando o quão vanguardista ela pode ser para o meio ambiente.

A proteção ambiental é um dos pilares fundamentais da nova Constituição. O Observatório Ambiental Constitucional, da Universidade do Chile, identificou 50 normas ambientais na nova proposta. Várias delas estão dispostas no capítulo Meio Ambiente e Natureza.

“A nova Constituição admite a crise climática e ecológica de uma forma que nenhuma outra no mundo fez até agora. Sua aprovação faria do Chile um país de vanguarda, pelo menos em termos legislativos, na luta contra a crise [ambiental] global”, diz o advogado Ezio Costa, diretor da organização Fima. “Nesse sentido, é um passo notável”.

A Convenção Constitucional, como é conhecida a assembleia que redigiu a nova Constituição, já aprovou o texto preliminar e o submeteu formalmente ao presidente Gabriel Boric, eleito em dezembro de 2021 e conhecido por querer tornar o Chile um país mais ambientalmente sustentável.

No entanto, Boric enfrenta enormes desafios para reformar a legislação do Chile. Pesquisas recentes sugerem que a nova proposta da Constituição será rejeitada no plebiscito de setembro. Para analistas, o provável “não” está mais relacionado à baixa popularidade de Boric e sua ligação pessoal com o processo, visto que o presidente se firmou como uma das grandes lideranças dos protestos estudantis de 2011.

Pilares da nova Constituição do Chile

A Constituição de 1980 já trazia uma inovação ambiental para sua época, já que o Artigo 19 garante “o direito de viver em um ambiente livre da poluição”.

O projeto da Constituição de 2022, entretanto, é muito mais abrangente e observa quase todos os principais pré-requisitos para um mundo mais sustentável e igualitário.

Dentre os artigos de destaque, podemos citar o direito à água, a justiça intergeracional, a qualidade de vida (o conceito latino-americano de Buen Vivir), os direitos da natureza e a ação climática justa.

“Definimos que a natureza tem o direito de ter sua existência respeitada e protegida, à regeneração, manutenção e restauração dos ciclos naturais, ecossistemas e biodiversidade”, disse Gloria Alvarado, membro da Assembleia Constitucional. “Essa não é apenas uma Constituição ecológica, é socioecológica, porque somos parte da natureza e é a partir dessa perspectiva que propusemos e aprovamos as normas”.

Para Ezio Costa, a Constituição estabelece uma série de normas que a qualificam como ecológica: o reconhecimento do clima e das crises ecológicas; o valor inerente da natureza (expresso nos direitos da natureza e dos bens comuns naturais); os direitos humanos ambientais (à água, a um ambiente saudável e à participação e acesso à justiça); e na distribuição do poder na tomada de decisões ambientais.

A nova Constituição estabelece uma ideia de justiça ambiental que deve eliminar as zonas de sacrifício

“Os indivíduos e os povos são interdependentes com a natureza e formam com ela um todo inseparável. O Estado reconhece e promove ‘o bem viver’ como uma relação de equilíbrio harmonioso entre as pessoas, a natureza e a organização da sociedade”, segundo um dos artigos.

Os bens comuns naturais — que reflete o valor da natureza além dos termos monetários quantificáveis — também são reconhecidos como elementos com os quais o Estado “tem um dever especial de custódia, a fim de assegurar (…) o interesse das gerações presentes e futuras”.

A Constituição também estabelece o Chile como um estado “regional”, organizado em comunas autônomas, regiões e territórios indígenas. Todos têm funções especiais para a proteção ambiental, tais como planejamento de uso do solo e gestão integrada de bacias hidrográficas.

Transição para novo modelo

Em meados de junho, centenas de moradores das cidades de Quintero e Puchuncaví, ambas na região central de Valparaíso, foram envenenados, apresentando sintomas como vômito, tontura e dores de cabeça. A região é conhecida como uma “zona de sacrifício” — uma área onde a saúde e o bem-estar humano foram relegados a um papel secundário diante de indústrias poluentes e da geração de energia por combustíveis fósseis.

Durante meio século, a população coexistiu com um parque industrial com termelétricas a carvão e gás, uma refinaria de petróleo e uma unidade para a fundição de cobre, entre outras.

Já em 2019, a Suprema Corte do Chile decidiu que a área representava uma grave violação do direito de viver em um ambiente livre de poluição, conforme reconhecido pela Constituição de 1980. Assim, culpabilizou as empresas e o Estado por envenenamento em massa. Três anos depois, a história se repete, embora ninguém tenha sido responsabilizado pelo último episódio.

De acordo com Costa, a nova Constituição estabelece uma ideia de justiça ambiental que deve eliminar as zonas de sacrifício. “Ela também estabelece um princípio de ação climática justa que deve levar ao processo de descarbonização e transição energética que favoreça lugares como Quintero”, disse.

A nova Constituição também cria a figura da Defensoria da Natureza, que supervisionará as obrigações do Estado e das empresas privadas em relação à natureza.

Esse é um desenvolvimento importante porque o órgão autônomo seria capaz de agir em instâncias como as zonas de sacrifício e reconheceria os princípios de precaução e prevenção, justiça ambiental, solidariedade intergeracional, responsabilidade e ação climática justa, que servem como mecanismos legais.

Água na nova Constituição do Chile

Discussões acerca da privatização da água, uma questão antiga do Chile, foram uma das mais debatidas na elaboração da nova Constituição, mas Carolina Vilches está otimista. “É o fim da propriedade da água (…) As desigualdades de poder na gestão da água acabarão. Não haverá mais pessoas tirando água de caminhões pipa enquanto outros irrigam suas fazendas”.

Há mais de uma década, o Chile enfrenta uma mega seca em seu território. A capital, Santiago, se prepara atualmente para o racionamento de água. O legado da ditadura pesa na gestão desse recurso, visto que a Constituição de 1980 a estabeleceu como um bem privado à mercê de movimentos de especulação.

O novo texto estabelece que o Estado deve proteger a água e que prevalece o direito humano à água e ao saneamento. A nova Constituição pretende criar uma Agência Nacional de Águas, juntamente com os Conselhos de Bacias Hidrográficas responsáveis pela administração, com base em uma gestão integrada.

“Isso nos permitirá enfrentar a seca de uma perspectiva socioecológica, integral e da bacia hidrográfica, como nunca antes no Chile, onde passamos décadas lidando com o recurso hídrico por meio de decretos de escassez de água, concedendo milhões em fundos de emergência para caminhões pipa”, diz Alvarado.

A Convenção também definiu uma série de regras “de transição”, que incluem um prazo de seis meses para um diagnóstico das bacias hidrográficas do país, especialmente as que estão em um estado crítico e onde houve muitas concessões. Além disso, também inclui um prazo de 12 meses para o governo fazer um projeto de lei para criar a Agência Nacional de Águas. O órgão será capaz de priorizar e redistribuir os fluxos de água.

Também foi estabelecido um prazo de um ano para o presidente convocar uma “comissão de transição ecológica”, encarregada de elaborar leis, decretos e políticas públicas para implementar as novas normas ambientais. Se o texto constitucional for aprovado em 4 de setembro, o presidente Boric o assinará, e a nova Constituição entrará imediatamente em vigor.

Entretanto, sua implementação acontecerá durante um período de transição no qual duas vias paralelas funcionarão. As instituições existentes precisarão se adaptar ao texto e haverá mudanças legais necessárias para implementá-lo plenamente, o que pode levar anos.

Desinformação é empecilho

Apesar da promessa de um novo marco legal para a gestão da água e proteção ambiental, as recentes pesquisas de opinião pública sugerem a rejeição à nova Constituição em um plebiscito. A dimensão da oposição parece espelhar a do governo de Gabriel Boric, presidente de 36 anos que tomou posse em março e se comprometeu a fazer um governo verde.

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Para a socióloga Pamela Poo, a crescente consciência ambiental da população, especialmente dos jovens, desempenhará um papel importante na campanha. “As pessoas se preocupam e estão cientes da falta de água, da seca e dos efeitos das mudanças climáticas, por isso também há um crescente voto ambiental”, afirma.

Entretanto, a campanha para a nova Constituição foi prejudicada pela desinformação. Há alguns dias, um conhecido acadêmico divulgou fake news de que a nova Constituição proposta levou a empresa britânica BP a rejeitar um projeto de hidrogênio verde de US$ 60 bilhões — sem citar nenhuma fonte verificável.

Essa e outras situações levaram o próprio presidente Boric, quando recebeu o texto em 4 de julho, a conclamar os cidadãos a “debater intensamente o texto e evitar notícias falsas ou interpretações catastróficas que sem embasamento real”.