Natureza

América Latina lidera perda de vida selvagem global, diz relatório

Análise do WWF registra queda de 95% nas populações de espécies monitoradas na região em 50 anos — cenário impulsionado pela crise climática e a destruição de habitats
<p>Bugio-ruivo (Alouatta guariba) ‘grita’ no topo de árvore no Rio Grande do Sul. Nativo da Mata Atlântica, ele é considerado um dos primatas mais ameaçados do mundo (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2puCmk1">Marcelo Machado Madeira</a> / <a href="https://www.flickr.com/people/ibamagov/">Ibama</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/">CC BY SA</a>)</p>

Bugio-ruivo (Alouatta guariba) ‘grita’ no topo de árvore no Rio Grande do Sul. Nativo da Mata Atlântica, ele é considerado um dos primatas mais ameaçados do mundo (Imagem: Marcelo Machado Madeira / Ibama, CC BY SA)

A América Latina e o Caribe enfrentam uma grave crise de biodiversidade: as populações de mais de mil espécies monitoradas sofreram uma queda de 95% em 50 anos, de acordo com um novo relatório do Fundo Mundial para a Natureza (WWF). Reconhecida por sua enorme biodiversidade, a região registrou a perda de vida selvagem mais rápida do mundo nesse período, segundo a organização. A queda na média global foi de 73%.

O Relatório Planeta Vivo 2024 indica as oscilações para as populações de determinadas espécies entre 1970 e 2020. O levantamento abrange quase 35 mil populações de 5.495 espécies no mundo, incluindo 3.936 populações e 1.362 espécies na América Latina e no Caribe. 

O índice sugere que os maiores declínios globais ocorreram em populações de água doce (-85%), seguidas por terrestres (-69%) e marinhas (-56%). 

Os autores do relatório destacaram que, em todo o mundo, a degradação e a perda de habitat são as principais ameaças à vida selvagem, impulsionadas pela demanda agrícola, a superexploração da natureza, a proliferação de espécies invasoras e doenças, entre outros fatores. Também se destacam como ameaças a poluição e as mudanças climáticas — sentidas de forma particularmente intensa na América Latina, onde, por exemplo, algumas aves amazônicas sofreram uma queda populacional significativa.

Segundo a organização Global Forest Watch, o desmatamento tropical diminuiu 9% em 2023 em comparação com 2022, mas continua preocupante: uma área quase do tamanho da Suíça foi perdida globalmente no último ano. Embora o Brasil tenha reduzido o desmatamento em 36% no ano passado — graças às políticas de conservação do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva —, o país ainda lidera, junto à República Democrática do Congo e à Bolívia, o ranking de perda de florestas primárias.

Tuiuiú (Jabiru mycteria), ave-símbolo do Pantanal, mergulha as patas e um açude pantanoso de águas rasas
Tuiuiú (Jabiru mycteria), ave-símbolo do Pantanal, maior área úmida da Terra. As espécies de água doce foram as mais afetadas em todo o mundo nos últimos 50 anos, de acordo com um relatório recente do WWF (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)
Capivara no meio de dois jacarés em Poconé, no Pantanal do Mato Grosso
Capivaras e jacarés vivem lado a lado em Poconé, no Pantanal do Mato Grosso. Junto à Colômbia e ao México, o Brasil tem uma das maiores biodiversidades de mamíferos e répteis na América Latina (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

“Monitoramos todos os fatores, mas o desmatamento é particularmente agressivo na América Latina, muitas vezes ligado à expansão da fronteira agrícola”, disse Roberto Troya, diretor regional do WWF na América Latina, ao Dialogue Earth. “A exploração dos recursos naturais também continua a todo vapor, e o garimpo ilegal acaba com rios e populações”.

Entre as espécies com destaque no relatório, estão os botos da Amazônia (Inia geoffrensis), que tiveram uma queda populacional de 65% entre 1994 e 2016, e seus parentes menores, os tucuxis (Sotalia fluviatilis), que sofreram redução de 75% na reserva Mamirauá, no Amazonas. Em 2023, mais de 330 botos morreram diante da seca histórica e dos baixos níveis d’água na região.

“A natureza está pedindo socorro”, disse Kirsten Schuijt, diretora-geral do WWF International, em uma coletiva de imprensa para o lançamento do relatório. “As crises ligadas à perda da natureza e às mudanças climáticas estão levando a vida selvagem e os ecossistemas para além de seus limites. Eles estão se aproximando de pontos de virada perigosos, ameaçando os sistemas de suporte à vida na Terra e o equilíbrio das sociedades”.

Superpotência da biodiversidade

A América Latina abriga três dos cinco países com a maior diversidade global de aves, anfíbios, mamíferos, répteis, peixes e plantas: são eles o Brasil, a Colômbia e o México. A floresta amazônica, por si só, abriga cerca de 10% das espécies conhecidas do planeta. Desde o Pampa uruguaio aos recifes de corais da Mesoamérica, a região desempenha um papel fundamental para a preservação da biodiversidade mundial.

Onça-pintada se esconde no meio da vegetação no Parque Nacional Yasuní, Equador
Onça-pintada no Parque Nacional Yasuní, Equador. A floresta amazônica abriga cerca de 10% das espécies conhecidas do mundo — e muitas delas vivem no Yasuní (Imagem © Karine Aigner / WWF)

Porém, há uma grande preocupação sobre o rápido declínio nas populações de muitas das espécies latino-americanas. Alguns casos mais emblemáticos incluem a vaquita (Phocoena sinus), menor e mais ameaçada toninha do mundo, que conta com poucos indivíduos restantes nas águas do norte do Golfo da Califórnia, e a onça-pintada (Panthera onca) na América do Sul, maior felino selvagem do hemisfério ocidental, ameaçado pelo desmatamento. 

Rebecca Shaw, autora principal do relatório, disse que o declínio de uma única espécie pode desencadear uma reação em cadeia: “Na Mata Atlântica brasileira, a perda de animais frugívoros, como os veados-mateiros, que dispersam sementes de grandes árvores tropicais, pode levar ao declínio do armazenamento de carbono. Esses animais são caçados, e as árvores são substituídas por outras menores que capturam menos carbono”.

O declínio das populações de animais selvagens também pode servir como um alerta precoce para o risco de extinção e a possível perda de ecossistemas, segundo os pesquisadores. Quando os biomas são degradados, torna-se mais difícil fornecer os serviços ecossistêmicos dos quais os humanos dependem. Isso deixa os ecossistemas ainda mais vulneráveis aos pontos de virada — limites que, se ultrapassados, podem causar danos irreversíveis aos habitats naturais. 

Pontos de virada globais, como a extinção da floresta amazônica, teriam impactos negativos que ultrapassariam a região, afetando a segurança alimentar e os meios de subsistência de populações ao redor do mundo. Em setembro, os focos de incêndio na Amazônia brasileira atingiram os níveis mais altos em 14 anos, em meio a uma seca severa e baixos níveis d’água em alguns dos principais afluentes do rio Amazonas, como o rio Negro. Tais eventos contribuem para o ressecamento da floresta tropical e para o aumento das emissões de carbono.

“O planeta é um sistema integrado e, se uma parte está doente, impacta as demais. Se a Amazônia liberar muitas emissões de carbono, isso pode alterar os padrões climáticos em todo o mundo”, disse Sandra Valenzuela, diretora-executiva do WWF Colômbia, ao Dialogue Earth. “Não é apenas uma crise ambiental, é também uma crise humana que afeta nossos meios de subsistência”.

Caminho a seguir

Em seu relatório, o WWF sugeriu uma série de estratégias para proteger a biodiversidade, com destaque para a criação e o fortalecimento de áreas protegidas. Os pesquisadores destacaram que atualmente há cerca de 300 mil áreas protegidas em todo o mundo, cobrindo 16% da área terrestre e 8% dos oceanos. Porém, sua distribuição ainda é bastante desigual e insuficiente para dar suporte aos serviços ecossistêmicos que a natureza oferece à humanidade.

Baleias nadam ao redor de Nuquí, nas águas do Pacífico colombiano
Baleias nadam ao redor de Nuquí, no Pacífico colombiano. Na próxima COP16, na Colômbia, os países apresentarão seus planos para preservar a biodiversidade do planeta (Imagem: Juan Diego Cano / Presidência da Colômbia, PDM)
Lhamas em Cachi, província de Salta, Argentina
Lhamas em Cachi, província de Salta, Argentina. Conforme o WFF, 69% das espécies terrestres sofreram queda populacional nos últimos 50 anos (Imagem: Soledad Amarilla / Secretaria de Cultura da Argentina, CC BY SA)

Uma das metas do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, assinado por 196 países em 2022, exige que 30% das áreas terrestres, marinhas e de água doce sejam protegidas até 2030. O texto cobra que essas áreas sejam “ecologicamente representativas, bem conectadas e governadas de forma equitativa”. Espera-se que os governos apresentem seus novos planos de biodiversidade na cúpula COP16, marcada para o fim de outubro na cidade de Cali, na Colômbia.

Os autores do relatório cobraram mudanças nos sistemas alimentares, buscando otimizar a produtividade dos cultivos e da pecuária de forma sustentável, evitando a contínua expansão da fronteira agrícola. Eles acrescentaram que a adoção de práticas como a agroecologia e a agricultura regenerativa podem trazer benefícios não apenas para a conservação da biodiversidade, mas também para o cumprimento das metas climáticas e a melhoria da saúde humana.

Em meio às iniciativas globais para se afastar dos combustíveis fósseis, os autores também fizeram um apelo para que a transição energética seja cuidadosamente planejada, a fim de evitar impactos negativos sobre os ecossistemas e as comunidades locais — como demonstram as tensões locais em torno de novos projetos renováveis na América Latina. A mudança para as energias renováveis, dizem eles, deve ser alinhada com outros objetivos de desenvolvimento sustentável e conservação da natureza. 

“Embora a situação seja desesperadora, ainda não passamos do ponto de virada”, disse Schuijt. “Temos acordos e soluções globais para colocar a natureza no caminho da recuperação até 2030, mas até agora houve pouco avanço e pouca urgência. As decisões e medidas adotadas nos próximos cinco anos serão cruciais para o futuro da vida na Terra”.