Do alto da cordilheira dos Andes, três mil quilômetros quadrados de uma paisagem fantasmagórica se estendem pelo deserto mais árido do mundo. Um mar esbranquiçado de sal esconde um dos metais mais preciosos do momento: o lítio.
O Salar do Atacama, ao norte do Chile, abriga uma das reservas mais importantes do mineral no mundo. E ela acaba de se tornar foco de uma disputa.
Há alguns meses a Tianqi, a companhia chinesa que controla as maiores reservas de lítio do planeta, tenta materializar o acordo que tem com a companhia chilena SQM, a mineradora não metálica detentora dos maiores depósitos de lítio do país.
O lítio é um dos metais mais estratégicos para a economia mundial hoje. Essencial para o crescimento da indústria tecnológica, o metal é usado na produção de baterias de celulares, computadores, câmeras e todo tipo de equipamento portátil.
O embate entre chineses e chilenos direcionou os holofotes para a complexidade de investimentos estrangeiros na extração de minerais estratégicos como o lítio. E cuja exploração acarreta impactos ainda pouco conhecidos no meio ambiente.
A disputa
Em maio deste ano, a Tianqi adquiriu 24% da SQM por 4 bilhões de dólares. A negociação esteve sob suspeita porque sua concretização, programada para abril de 2019, significa que a empresa chinesa controlará 70% da produção mundial de lítio.
O principal obstáculo veio dos controladores da SQM, liderados por Julio Ponce. Eles querem ao menos limitar a participação dos executivos da Tianqi na direção da empresa chilena para, assim, resguardar sua informação comercial estratégica.
As oscilações desta negociação foram assunto na Chile Week China, roda de negócios que aconteceu em Pequim no início do mês de novembro passado. Lá, foi assinado um acordo para solidificar a cooperação comercial entre os dois países.
Na ocasião, Xia Nong, diretor geral do Departamento de Indústria chinês, manifestou às autoridades chilenas presentes, entre elas o chanceler Roberto Ampuero, sua preocupação com a demora do processo.
A disputa foi encaminhada à justiça local e passou por vários órgÃo, como o Ministério Público Federal Econômico, o Tribunal de Livre Concorrência e o Tribunal Constitucional.
Os chineses não entendem o motivo de um atraso tão grande do processo, disse Fernando Reyes, diretor do Centro de Estudos da China da Universidade Andrés Bello.
“Especificamente, o que eles se perguntam é a razão pela qual o caso não foi diretamente para a mais alta instância judicial chilena em vez de seguir vários passos prévios”, ele disse.
O contexto chileno
Em 1979, o lítio foi declarado um recurso estratégico pelo governo do Chile. Por isso, sua exploração não é simples.
Duas empresas particulares operam atualmente no Salar de Atacama, a SQM e a Albemarle. Seus contratos foram firmados em 1993 e 1980, respectivamente, com a Corfo, a agência do governo do Chile encarregada de apoiar o desenvolvimento do lítio.
“Vivenciamos o mesmo com o salitre e os ingleses, e depois com o cobre e os americanos”, explicou Reyes.
A economia chilena já dependeu, e depende muito ainda, de ambos os metais – por mais que as atividades econômicas ligadas aos dois seja apenas de exportação da matéria prima, e não de geração de valor a partir de sua extração.
Atualmente existe uma preocupação em não cometer o mesmo erro com outros recursos naturais. A comissão de mineração da Câmara de Deputados do Chile acaba de aprovar um projeto de lei que declara a exploração, industrialização e comercialização do lítio atividades de interesse nacional.
Ao mesmo tempo, no Senado, tramita outro projeto, para instituir, constitucionalmente, o Estado como único habilitado a explorar esta matéria prima – banindo a atuação de empresas privadas.
Mas a pressão é grande. Segundo diversos estudos, a demanda mundial de lítio pode aumentar de 37 mil toneladas/ano em 2017 para aproximadamente 91 mil em 2025. As baterias para veículos elétricos são as principais responsáveis por esse incremento. Enquanto em 2017 foram necessárias 18 mil toneladas de lítio anuais para fabricá-las, em 2025 serão 64 mil toneladas.
O fator ambiental
Para além das disputas comerciais em torno do lítio, outra preocupação ganha cada vez mais preponderância: o meio ambiente e sua resiliência frente à exploração de recursos naturais.
Mesmo que a SQM e a Albemarle tenham licenças ambientais para operar no Salar do Atacama, o aumento da produção poderia ser um problema. Cada novo investimento deve ser aprovado por uma agência ambiental nacional, porém para os especialistas consultados, a longo prazo, uma atenção maior é imprescindível.
“O governo deveria definir um esquema de extração para explorar o mineral”, afirmou Reyes. “Além disso, a exploração do lítio tem que ser feita rigorosamente dentro das leis ambientais, porque desobedecê-las pode ter um preço alto”.
Para obter o lítio, é preciso extrair a salmoura que contém, entre outros sais de lítio, sulfato duplo de lítio e potássio. A técnica exige grandes quantidades de água com metais dissolvidos.
São milhões de metros cúbicos submetidos a um processo de enriquecimento em enormes piscinas abertas, onde o líquido é deixado para evaporar com o calor do deserto. Assim a concentração de lítio sobe de 1% para 6%.
Como não há chuva e o ambiente é seco, elas não constituem um risco para o meio ambiente
O processo termina em uma planta de produção fechada, com químicos. No final, obtém-se o lítio processado, mas também toneladas sólidas de sais menos solúveis, como magnésio e cálcio, que voltam a ser depositadas no mesmo salar.
“Como não há chuva e o ambiente é seco, elas não constituem um risco para o meio ambiente”, assegurou Álvaro Videla, professor de engenharia de minas da Universidade Católica do Chile.
O maior impacto está na própria extração da salmoura, acrescentou o especialista. “Esse procedimento implica bombear uma grande quantidade de água para fora do salar, razão pela qual é fundamental um bom controle do modelo hídrico da zona”, acrescentou.
Apesar de ser o deserto mais árido do mundo, áreas com água superficial e aquíferos são parte do sistema do salar, além de vitais para a existência das comunidades e da biodiversidade da região.
“A extração deve ser limitada e, por fim, [deve-se] atualizar os contratos, enquanto avança o conhecimento para chegar a um equilíbrio hídrico”, informou Videla.
Um dos grandes problemas é a falta de informação.
“As opiniões científicas falam de um problema complexo, pois os glaciares que alimentam o sistema do salar são diferentes e se comportam de maneiras diferentes”, relatou César Padilla, coordenador do Observatório de Conflitos Mineiros da América Latina (OCMAL).
A princípio, seria possível pensar que dobrar a extração do metal duplicaria também seus impactos, mas não é necessariamente assim, aponta o especialista. Os trabalhos da SQM e da Albemarle implicam uma extração diária de aproximadamente 200 milhões de litros de água (doce e salgada).
Ambas as empresas foram consultadas pelo Diálogo Chino sobre as medidas que tomam para diminuir o impacto de seus trabalhos no meio ambiente, e nenhuma se dispôs a responder.
A sustentabilidade da extração do lítio sofre hoje de uma grande dificuldade: o custo das tecnologias que têm menos impacto no meio ambiente. Mas talvez o próprio meio ambiente force uma mudança.
“O método de extração atual depende da disponibilidade de água do salar, e com as mudanças climáticas, ela será cada vez mais escassa”, lembra Videla.
Atualmente, só as mudanças de estações podem fazer variar a produção entre 30% e 40%. Esta diferença deve crescer ostensivamente.
“A exploração do recurso hoje aproveita a alta demanda mundial, porém deixando de lado as consequências para os ecossistemas”, reafirmou Padilla.
Fernando Reyes concorda.
“Com o lítio, não devem ser tomadas decisões pontuais”, disse. “Devemos adotar uma estratégia de desenvolvimento que atenda o máximo aos interesses do Chile, tanto no presente como no futuro”.