Em setembro de 2020, durante a campanha de Luis Arce à presidência da Bolívia, ele prometeu construir duas usinas de produção de biodiesel.
Embora a proposta tenha focado na criação de empregos e na introdução de uma economia circular na Bolívia, Arce também garantiu ao eleitorado boliviano que o investimento reduziria as importações de combustíveis.
Nos últimos anos, a Bolívia vem gastando cada vez mais com essas importações, atingindo um recorde de US$ 2,1 bilhões em 2021, acima dos US$ 864 milhões em 2020. Ainda não há números oficiais para 2022, mas especialistas entrevistados apontam que o valor se mantém estável
Em setembro de 2022, o presidente ordenou a construção da primeira usina de biodiesel da Bolívia – a Biodiesel-1 – em Santa Cruz.
Alguns meses antes, o governo lançou um programa para promover o cultivo de espécies vegetais ricas em óleo – como palma de óleo (Elaeis guineensis), pinhão-manso (Jatropha curcas) e mamona (Ricinus comunis) – para abastecer os projetos Biodiesel-1, Biodiesel-2 e uma terceira usina para produzir biodiesel a partir de óleo vegetal e óleo de cozinha usado.
O presidente boliviano diz que o programa de cinco anos visa “implementar condições tecnológicas para a produção de espécies oleíferas, fortalecendo a produção local”.
A palma de óleo, também conhecida como palma africana, é nativa da África Ocidental. Ela produz frutos vermelhos que podem ser transformados em biodiesel. Enquanto isso, o pinhão-manso é nativo da América Central, e de suas sementes pode ser extraído um óleo semelhante ao da palma de óleo. A mamona serve para a mesma finalidade. Sementes das três espécies foram importadas da Colômbia, Venezuela e Costa Rica para a Bolívia.
Com a introdução dessas espécies, parece ter ficado no passado a posição do governo de Evo Morales em 2007 – do mesmo partido de Arce, o Movimento para o Socialismo (MAS) – de que a produção deveria, antes de tudo, alimentar a população, e não os automóveis.
De acordo com Mamani Quispe, a primeira usina de biodiesel entrará em operação no fim de 2023. Ainda não haverá óleo de palma, porque a planta leva de quatro a cinco anos para crescer. O óleo de pinhão-manso e mamona, diz ele, serão usados para gerar 1,5 mil barris de biocombustível por dia. Em paralelo, serão construídas duas usinas: a Biodiesel-2 e outra fábrica de produção de diesel renovável (HVO), combustível obtido através do processamento de óleo vegetal ou óleo de cozinha usado.
As três usinas permitirão ao país substituir “entre 43% e 45% das importações de diesel e gasolina”, garante Marcelo Montenegro, ministro de Economia e Finanças Públicas, ao canal televisivo France24 em julho.
Na região, Colômbia, Brasil e Argentina lideram a produção de biocombustíveis, enquanto o Paraguai se prepara para surfar nessa onda. Se atingir seus objetivos, a Bolívia se juntará ao grupo. O país andino planeja investir US$ 387,5 milhões na construção das três usinas e US$ 58,6 milhões no plantio da matéria-prima.
Dilema de custo-benefício
Comunidades indígenas, agricultores e cientistas estão receosos em relação à produção de biocombustível na Bolívia.
“Nomear este produto como ‘biodiesel’ é uma tremenda deturpação”, disse Vincent Vos, biólogo holandês especializado na Amazônia, ao jornal boliviano Los Tiempos. “Na realidade, estamos falando de ‘agrocombustíveis’”, acrescenta.
A legislação citada por ele é o artigo 24 da lei nº 3.000 de 2012, a Lei da Mãe-Terra, que no parágrafo 11 proíbe “a produção de agrocombustíveis e a comercialização de produtos agrícolas para sua produção”. É uma questão que ainda não foi bem resolvida pelo governo.
Outra preocupação é o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola, acrescentando três novas monoculturas às cinco existentes: soja, cana-de-açúcar, girassol, gergelim e milho.
“A implementação de uma nova espécie em um ecossistema sempre traz riscos”, diz Freddy Zenteno, pesquisador do Herbário Nacional Boliviano. “Na Bolívia, temos cerca de uma centena de espécies de palmeiras, e [a palma africana] não cresceu neste ambiente, por isso tem que lutar contra as pragas e para isso precisará de agrotóxicos”.
Segundo Vincent Vos, há alternativas no país: “Em Pando [uma província amazônica], existe uma palmeira chamada palla. Deve haver pelo menos cem mil hectares dela, e é possível produzir dois mil litros de óleo por hectare. Não há necessidade de cortar nada, não há necessidade de maquinaria, e o óleo é de melhor qualidade do que a palma africana”.
Entretanto, Mamani Quispe acredita não haver riscos com as espécies escolhidas. As plantações serão feitas “em solos desmatados e degradados”, localizados principalmente na Amazônia e no Chaco.
Na carta, eles pediam que ela não acreditasse na propaganda do biodiesel e alertaram que os planos do governo boliviano para o combustível “representam uma ameaça de mais desmatamento para a Amazônia e outras regiões do país”.
Para Miguel Vargas Delgado, diretor-executivo do Centro de Estudos Jurídicos e Pesquisas Sociais da Bolívia (Cejis), dar prioridade às monoculturas para garantir a segurança alimentar ou energética do país não contribui com a sustentabilidade da vida dos povos indígenas. “Na verdade”, diz ele, “significa quebrar o tecido sociocultural, seus sistemas econômicos e, portanto, expô-los a uma maior vulnerabilidade”.
Precedentes com o etanol
A Bolívia começou a produzir biocombustível em 2018, na forma de etanol. Também conhecido como álcool anidro, é um aditivo da gasolina produzido a partir da cana-de-açúcar. Em março de 2017, o então presidente Evo Morales lançou um programa de produção, ainda em vigor em Santa Cruz.
Ele previa a produção de 80 milhões de litros até 2018 e 380 milhões de litros até 2025. Em 2021, o governo boliviano comprou 110 milhões de litros, e em 2022, comprometeu-se a comprar 160 milhões de litros. Até agora, “tem funcionado muito bem”, diz Álvaro Ríos, ex-ministro de Hidrocarbonetos, ao Diálogo Chino.
Segundo Ríos, a estatal YPFB compra biocombustível do setor sucroalcooleiro, que por sua vez “se encarrega dos investimentos necessários para a instalação de usinas, entre outros recursos”.
No caso do biodiesel, será diferente. O próprio Estado ficará encarregado de produzir a matéria-prima. Segundo Mamani Quispe, da YPFB, três pastas vão assumir o megaprojeto: o Ministério do Desenvolvimento Rural e Terras administrará a entrada de plantas oleaginosas; o Ministério da Economia será responsável pela construção das usinas de biodiesel; e o Ministério de Hidrocarbonetos, através da YPFB, comprará a matéria-prima dos produtores e trabalhará no refino.
Com isso, o ex-ministro Ríos diz que será possível à YPFB entrar no setor agrícola. “Do meu ponto de vista, eles poderiam ter seguido o que fizeram com o etanol”, diz. Ou seja, deixando a produção de palma e biodiesel para o setor privado, para que a empresa petrolífera estatal pudesse comprá-lo.
Mamani Quispe diz que o governo Arce visa garantir o sucesso de suas plantações de palma e a compra da matéria-prima. “As expectativas para a produção são muito altas. Já inauguramos o primeiro viveiro de palma de óleo na Bolívia e estamos implementando 18 viveiros para mudas que serão plantadas em seis mil hectares. O programa é válido por cinco anos e, nesse período, terá que cobrir uma área de 60 mil hectares”.
Os 60 mil hectares, no entanto, cobrirão apenas 40% da demanda da YPFB, razão pela qual, segundo Ríos, é preciso investir em outras estratégias: “Como vamos cobrir os 60% restantes? É aí que entra a iniciativa privada, e ela tem que fazer parte disso”.
Por enquanto, as dúvidas sobre essa nova era na Bolívia só aumentam. O ex-ministro Ríos pede eficiência, já que “o país importa 70% do diesel e 50% da gasolina que consome, e a demanda cresce a cada ano”. Já as comunidades indígenas e os cientistas pedem que suas florestas sejam protegidas, porque o desmatamento também aumenta.