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Biodiesel na Bolívia: oportunidade ou nova ameaça à Amazônia?

Alto investimento do governo boliviano em combustível abre debate sobre impactos em florestas e comunidades tradicionais
<p>Agricultor entrega cana-de-açúcar a uma usina de etanol e biodiesel em Montero, na província de Santa Cruz, na Bolívia. O governo boliviano agora quer produzir biodiesel a partir do óleo de palma (Imagem: Florian Kopp / Alamy)</p>

Agricultor entrega cana-de-açúcar a uma usina de etanol e biodiesel em Montero, na província de Santa Cruz, na Bolívia. O governo boliviano agora quer produzir biodiesel a partir do óleo de palma (Imagem: Florian Kopp / Alamy)

Em setembro de 2020, durante a campanha de Luis Arce à presidência da Bolívia, ele prometeu construir duas usinas de produção de biodiesel. 

Embora a proposta tenha focado na criação de empregos e na introdução de uma economia circular na Bolívia, Arce também garantiu ao eleitorado boliviano que o investimento reduziria as importações de combustíveis.

Nos últimos anos, a Bolívia vem gastando cada vez mais com essas importações, atingindo um recorde de US$ 2,1 bilhões em 2021, acima dos US$ 864 milhões em 2020. Ainda não há números oficiais para 2022, mas especialistas entrevistados apontam que o valor se mantém estável

Em setembro de 2022, o presidente ordenou a construção da primeira usina de biodiesel da Bolívia – a Biodiesel-1 – em Santa Cruz.

Alguns meses antes, o governo lançou um programa para promover o cultivo de espécies vegetais ricas em óleo – como palma de óleo (Elaeis guineensis), pinhão-manso (Jatropha curcas) e mamona (Ricinus comunis) – para abastecer os projetos Biodiesel-1, Biodiesel-2 e uma terceira usina para produzir biodiesel a partir de óleo vegetal e óleo de cozinha usado.

O presidente boliviano diz que o programa de cinco anos visa “implementar condições tecnológicas para a produção de espécies oleíferas, fortalecendo a produção local”.

Presidente boliviano Luis Arce Catacora
Presidente boliviano Luis Arce Catacora em evento do 86º aniversário da estatal YPFB (Imagem: Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia / Flickr CC BY)

Aos produtores, o governo vai fornecer sementes, aconselhamento técnico e tudo o que for necessário – com exceção de terra – para eles começarem a cultivar. Na sequência, a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) comprará a produção. “Com este programa, o governo nacional não só quer garantir a produção, mas também a compra”, diz Javier Mamani Quispe, coordenador do programa.

A palma de óleo, também conhecida como palma africana, é nativa da África Ocidental. Ela produz frutos vermelhos que podem ser transformados em biodiesel. Enquanto isso, o pinhão-manso é nativo da América Central, e de suas sementes pode ser extraído um óleo semelhante ao da palma de óleo. A mamona serve para a mesma finalidade. Sementes das três espécies foram importadas da Colômbia, Venezuela e Costa Rica para a Bolívia.

Com a introdução dessas espécies, parece ter ficado no passado a posição do governo de Evo Morales em 2007 – do mesmo partido de Arce, o Movimento para o Socialismo (MAS) – de que a produção deveria, antes de tudo, alimentar a população, e não os automóveis.

De acordo com Mamani Quispe, a primeira usina de biodiesel entrará em operação no fim de 2023. Ainda não haverá óleo de palma, porque a planta leva de quatro a cinco anos para crescer. O óleo de pinhão-manso e mamona, diz ele, serão usados para gerar 1,5 mil barris de biocombustível por dia. Em paralelo, serão construídas duas usinas: a Biodiesel-2 e outra fábrica de produção de diesel renovável (HVO), combustível obtido através do processamento de óleo vegetal ou óleo de cozinha usado.

As três usinas permitirão ao país substituir “entre 43% e 45% das importações de diesel e gasolina”, garante Marcelo Montenegro, ministro de Economia e Finanças Públicas, ao canal televisivo France24 em julho.

Na região, Colômbia, Brasil e Argentina lideram a produção de biocombustíveis, enquanto o Paraguai se prepara para surfar nessa onda. Se atingir seus objetivos, a Bolívia se juntará ao grupo. O país andino planeja investir US$ 387,5 milhões na construção das três usinas e US$ 58,6 milhões no plantio da matéria-prima.

Dilema de custo-benefício

Comunidades indígenas, agricultores e cientistas estão receosos em relação à produção de biocombustível na Bolívia.

“Nomear este produto como ‘biodiesel’ é uma tremenda deturpação”, disse Vincent Vos, biólogo holandês especializado na Amazônia, ao jornal boliviano Los Tiempos. “Na realidade, estamos falando de ‘agrocombustíveis’”, acrescenta.

Cultivo ao longo do Rio Grande, na bacia amazônica
Cultivo ao longo do Rio Grande, na bacia amazônica, a cerca de 43 km ao leste da cidade de Santa Cruz de la Sierra (Imagem: Alamy)

Ele acredita que o prefixo ‘bio’ mascara a realidade e dá uma ideia errada de sustentabilidade, já que o combustível virá de culturas de escala industrial. “A lei proíbe a Bolívia de produzir combustível a partir de produtos agrícolas: seja de soja, milho ou palma de óleo”, explica.

A legislação citada por ele é o artigo 24 da lei nº 3.000 de 2012, a Lei da Mãe-Terra, que no parágrafo 11 proíbe “a produção de agrocombustíveis e a comercialização de produtos agrícolas para sua produção”. É uma questão que ainda não foi bem resolvida pelo governo.

Outra preocupação é o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola, acrescentando três novas monoculturas às cinco existentes: soja, cana-de-açúcar, girassol, gergelim e milho.

“A implementação de uma nova espécie em um ecossistema sempre traz riscos”, diz Freddy Zenteno, pesquisador do Herbário Nacional Boliviano. “Na Bolívia, temos cerca de uma centena de espécies de palmeiras, e [a palma africana] não cresceu neste ambiente, por isso tem que lutar contra as pragas e para isso precisará de agrotóxicos”.

Segundo Vincent Vos, há alternativas no país: “Em Pando [uma província amazônica], existe uma palmeira chamada palla. Deve haver pelo menos cem mil hectares dela, e é possível produzir dois mil litros de óleo por hectare. Não há necessidade de cortar nada, não há necessidade de maquinaria, e o óleo é de melhor qualidade do que a palma africana”.

Entretanto, Mamani Quispe acredita não haver riscos com as espécies escolhidas. As plantações serão feitas “em solos desmatados e degradados”, localizados principalmente na Amazônia e no Chaco.

Mapa mostrando a localização da futura usina de biodiesel na Bolívia, e na Amazônia e no Gran Chaco.

O possível desmatamento causado pela introdução da palma de óleo na Bolívia também preocupa as comunidades indígenas. Em agosto passado, representantes dos povos originários entregaram uma carta aberta à recém-eleita vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez, na visita dela ao país.

Na carta, eles pediam que ela não acreditasse na propaganda do biodiesel e alertaram que os planos do governo boliviano para o combustível “representam uma ameaça de mais desmatamento para a Amazônia e outras regiões do país”.

Para Miguel Vargas Delgado, diretor-executivo do Centro de Estudos Jurídicos e Pesquisas Sociais da Bolívia (Cejis), dar prioridade às monoculturas para garantir a segurança alimentar ou energética do país não contribui com a sustentabilidade da vida dos povos indígenas. “Na verdade”, diz ele, “significa quebrar o tecido sociocultural, seus sistemas econômicos e, portanto, expô-los a uma maior vulnerabilidade”.

Precedentes com o etanol

A Bolívia começou a produzir biocombustível em 2018, na forma de etanol. Também conhecido como álcool anidro, é um aditivo da gasolina produzido a partir da cana-de-açúcar. Em março de 2017, o então presidente Evo Morales lançou um programa de produção, ainda em vigor em Santa Cruz.

Ele previa a produção de 80 milhões de litros até 2018 e 380 milhões de litros até 2025. Em 2021, o governo boliviano comprou 110 milhões de litros, e em 2022, comprometeu-se a comprar 160 milhões de litros. Até agora, “tem funcionado muito bem”, diz Álvaro Ríos, ex-ministro de Hidrocarbonetos, ao Diálogo Chino.

Segundo Ríos, a estatal YPFB compra biocombustível do setor sucroalcooleiro, que por sua vez “se encarrega dos investimentos necessários para a instalação de usinas, entre outros recursos”.

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No caso do biodiesel, será diferente. O próprio Estado ficará encarregado de produzir a matéria-prima. Segundo Mamani Quispe, da YPFB, três pastas vão assumir o megaprojeto: o Ministério do Desenvolvimento Rural e Terras administrará a entrada de plantas oleaginosas; o Ministério da Economia será responsável pela construção das usinas de biodiesel; e o Ministério de Hidrocarbonetos, através da YPFB, comprará a matéria-prima dos produtores e trabalhará no refino.

Com isso, o ex-ministro Ríos diz que será possível à  YPFB entrar no setor agrícola. “Do meu ponto de vista, eles poderiam ter seguido o que fizeram com o etanol”, diz. Ou seja, deixando a produção de palma e biodiesel para o setor privado, para que a empresa petrolífera estatal pudesse comprá-lo.

Mamani Quispe diz que o governo Arce visa garantir o sucesso de suas plantações de palma e a compra da matéria-prima. “As expectativas para a produção são muito altas. Já inauguramos o primeiro viveiro de palma de óleo na Bolívia e estamos implementando 18 viveiros para mudas que serão plantadas em seis mil hectares. O programa é válido por cinco anos e, nesse período, terá que cobrir uma área de 60 mil hectares”.

Os 60 mil hectares, no entanto, cobrirão apenas 40% da demanda da YPFB, razão pela qual, segundo Ríos, é preciso investir em outras estratégias: “Como vamos cobrir os 60% restantes? É aí que entra a iniciativa privada, e ela tem que fazer parte disso”.

Por enquanto, as dúvidas sobre essa nova era na Bolívia só aumentam. O ex-ministro Ríos pede eficiência, já que “o país importa 70% do diesel e 50% da gasolina que consome, e a demanda cresce a cada ano”. Já as comunidades indígenas e os cientistas pedem que suas florestas sejam protegidas, porque o desmatamento também aumenta.