A América Latina está enfrentando três crises perigosas. A região, que agora é o epicentro da pandemia de Covid-19, terá um dos piores desempenhos econômicos do mundo, segundo projeções recentes. Como se essas duas crises não bastassem, o impacto delas no meio ambiente é outra questão preocupante, uma vez que ameaçam intensificar a devastação ambiental, principalmente na bacia amazônica. A crise da dívida na América Latina precisa ser resolvida.
Embora a China seja uma parte relativamente pequena do problema, ela precisa fazer parte da solução.
A tríplice crise de 2020 e a urgente necessidade do alívio da dívida
Se a América Latina espirra quando os Estados Unidos pega uma gripe, o que acontece quando o mundo inteiro enfrenta uma pandemia global?
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dos 10 países mais afetados pela Covid-19 estão na América Latina e no Caribe
A região da América Latina e do Caribe (ALC) foi a mais afetada pela Covid-19. Até o fechamento desta reportagem, seis dos 10 países mais afetados – medido pela parcela da população infectada pelo vírus na última semana – encontravam-se na região ALC: Peru, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile e México. Outros quatro estão entre os 20 países que mais foram afetados no mundo: Guatemala, Argentina, Equador e a República Dominicana.
O impacto disso na economia é quase incalculável. Segundo as projeções do FMI, a região terá o pior desempenho econômico do mundo este ano, com um declínio econômico de 9%. No México, a queda pode chegar a 10%. Enquanto os governos da ALC estão tentando levar as suas economias adiante apesar do ano sofrido, eles também enfrentam um cenário em que o pagamento do serviço da dívida vem crescendo – mesmo sem a contração de novas dívidas.
O motivo da crise da dívida na América Latina é muito simples: a maioria dos países da região não pode tomar empréstimos na sua própria moeda. Suas dívidas estão atreladas ao valor do dólar. Quando os investidores percebem instabilidade, eles “buscam refúgio” vendendo os títulos em moeda da ALC, o que leva o dólar a ficar mais caro. Isso se aplica também às atuais dívidas denominadas em dólar, que podem abocanhar uma parcela cada vez maior da economia local dos países da ALC.
Essas duas crises exacerbaram os problemas ambientais que já existem, principalmente as queimadas na bacia amazônica. Espera-se um número recorde, ou quase recorde, de queimadas na maior floresta tropical do mundo este ano. No mês passado, foi registrado o maior número de queimadas desde 2007 para o mês de junho na Amazônia brasileira. Além disso, o clima seco que tem assolado o Peru e a Bolívia, países que ficam na região sul da bacia amazônica, está criando condições propícias para a propagação de queimadas por lá também.
Se a China agisse de forma bilateral, poderia exigir que as nações mutuárias gastassem os fundos de alívio no combate ao vírus, embarcando em uma recuperação que fosse socialmente inclusiva e de baixo carbono
Tudo isso está acontecendo em um ano de crise econômica, em que os governos enfrentam cortes fiscais bastante complicados para evitar uma crise da dívida. Nesse cenário, paira também o espectro dos cortes orçamentários nas entidades reguladoras, que não têm como combater os atuais níveis de devastação ambiental. Para piorar, é possível que a fumaça gerada pelos incêndios na Amazônia agrave o número de casos de Covid-19 na região, que já é alto. Aliviar a dívida é crucial para gerir bem não só a crise econômica, mas também a crise sanitária e a ambiental.
No longo prazo, tanto a pandemia quanto a crise econômica colocam em risco os planos da região para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas. O alívio da dívida – seja ele multilateral, bilateral ou com os obrigacionistas – é fundamental para garantir o sucesso da luta climática na região. Por exemplo, os projetos de energia verde tendem a custar mais na fase de instalação, mas, no longo prazo, geram economia. Uma crise econômica de curto prazo pode tornar esses investimentos difíceis de justificar, mesmo que eles sejam necessários no longo prazo.
O que a ALC precisa, mais do que qualquer outra coisa, é de folga fiscal (ou orçamentária) para gerir de forma eficaz o vírus e montar um plano abrangente de recuperação. Infelizmente, não é essa a situação que se apresenta. Um montante muito elevado da dívida desses países está denominado em dólar. Embora as iniciativas de alívio da dívida atuem em três frentes – multilateral, bilateral e com os obrigacionistas –, o progresso tem falhado e a ALC não tem conseguido o desafogo financeiro que precisa.
A China pode desempenhar um papel de liderança muito importante na região, trazendo a ajuda de que tanto necessitam.
Liquidez multilateral e alívio da dívida
Na esfera multilateral, uma nova emissão dos Direitos Especiais de Saque (DES, que são a unidade de conta do FMI utilizada em transações com outros Bancos Centrais e certas instituições internacionais) ajudaria bastante. Assim como ajudaria um alívio significativo da dívida por parte dos credores privados e bilaterais. Infelizmente, os EUA e os credores privados bloquearam os esforços de implementar os DES, bem como de obter um alívio mais amplo da dívida para países de baixa e média renda – categoria que inclui a maioria dos países latino-americanos – e para o setor privado.
O G20 deu um passo pequeno na direção certa quando estabeleceu a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (ISSD), que suspenderia o pagamento das dívidas dos 73 países mais pobres do mundo até o final do ano. Infelizmente, a maioria dos países da ALC são de renda média e não se qualificam para a ISSD.
Alívio bilateral da dívida
Há uma tendência de apontar a China como fonte do problema. O país é sim parte do problema, mas nos concentrarmos somente nele nos faz perder de vista a principal questão. Alguns países têm uma dívida com a China que de fato chama a atenção, mas se os credores privados não participarem do alívio da dívida também, qualquer ação da China serviria apenas para beneficiá-los, em vez de beneficiar os latino-americanos e suas economias.
Apenas seis países da ALC são elegíveis para participar da ISSD criada pelo G20. Entre eles, apenas dois – Guiana e São Vicente e Granadinas – devem o maior montante da sua dívida bilateral à China.
Fonte: Banco Mundial: https://www.worldbank.org/en/topic/debt/brief/covid-19-debt-service-suspension-initiative
O alívio da dívida bilateral – por parte da China ou de outros credores – é crucial, mas ele também tem um custo. As agências de classificação de risco soberano rebaixam os países que recebem o alívio da dívida, o que pode causar mais estresse econômico ao país. Não é de surpreender que, dos seis países mencionados, apenas um participou – a Guiana.
No entanto, mesmo participando da ISSD, é incerto se a Guiana vai receber o alívio da sua dívida com a China. Segundo o Financial Times, o Banco de Desenvolvimento da China não é oficialmente um credor bilateral, portanto, não poderia participar da ISSD. Até a conclusão desta reportagem, não havia informações públicas sobre a participação do Banco de Exportação e Importação da China (o credor chinês mais importante da Guiana). Esses bancos nacionais de desenvolvimento e de investimento deveriam participar do esforço, junto com o KfM (Alemanha) e com o JICA e JBIC (Japão).
A Guiana, o Equador, a Jamaica e a Venezuela têm uma exposição significativa à China. A China tem uma fatia maior da dívida externa desses países e é seu maior credor bilateral.
O maior problema que a região enfrenta – um que o G20 não conseguiu controlar até o momento – é o setor privado. A tabela abaixo mostra que a dívida bilateral da ALC é apenas 16% da sua dívida total (a China é o maior credor bilateral da categoria). A maior parte da dívida é com entidades privadas detentoras de títulos e bancos comerciais. Isso se deve, em grande parte, às emissões de obrigações por parte do setor corporativo na América Latina e por investidores estrangeiros no Ocidente, o que é impulsionado pelas baixas taxas de juros nos Estados Unidos e pela flexibilização quantitativa que ocorreu após as crises financeiras de 2008-2009.
A América Latina já está sentindo os impactos do enfraquecimento do G20: os credores têm rejeitado de forma sistemática as propostas de reestruturação da Argentina e do Equador. Isso levou a China e outros credores a pontuarem que seria injusto a China proporcionar o alívio da dívida apenas para países mutuários, que então usariam esses fundos para pagar as dívidas com credores privados no Ocidente. Os fundos deveriam ser usados para gerir a crise sanitária e para os planos sustentáveis de recuperação de cada um.
Como a China pode ajudar
A China pressionou o FMI e o G20 para expandir os Direitos Especiais de Saque do FMI em abril e também na semana passada. Isso é algo que teria trazido alívio imediato a muitos países da América Latina, não só aos mais pobres. Infelizmente, os Estados Unidos e a Índia bloquearam esses esforços.
A crise da dívida na América Latina significa que a região precisa do DES, do alívio da sua dívida com credores bilaterais e, acima de tudo, do alívio da dívida com o setor privado. Sem isso, nenhum ator externo terá incentivo para participar desses esforços. Isso exigirá multilateralismo, mas o tempo está acabando e a China tem pouca influência no G20 e no FMI.
Se a China agisse de forma bilateral, poderia exigir que as nações mutuárias gastassem os fundos de alívio no combate ao vírus, embarcando em uma recuperação que fosse socialmente inclusiva e de baixo carbono. A liderança da China poderia inspirar outros a seguirem seu exemplo.