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Falta transparência ao plano de rastreamento de gigante da soja chinesa

O compromisso da Cofco de proteger as vastas bacias hidrográficas do Cerrado do Brasil contra o desmatamento é bem-vindo, mas pareceu menos ousado quando o Diálogo Chino investigou
<p>A promessa da Cofco, a gigante chinesa do agronegócio, de monitorar todos seus fornecedores diretos é bem-vinda, mas críticos dizem que a empresa poderia fazer mais (imagem: Alamy)</p>

A promessa da Cofco, a gigante chinesa do agronegócio, de monitorar todos seus fornecedores diretos é bem-vinda, mas críticos dizem que a empresa poderia fazer mais (imagem: Alamy)

A gigante chinesa do agronegócio Cofco International lançou um plano em julho para monitorar todos os seus fornecedores diretos de soja no Brasil até 2023, um esforço que poderia ajudar a conter a devastação do Cerrado brasileiro. Mas falta transparência ao plano, dizem ambientalistas.

“A produção de soja pode caminhar lado a lado com a conservação das florestas e da vegetação nativa”, disse Wei Peng, chefe de sustentabilidade da empresa, ao anunciar o compromisso. “Tornamos público nosso compromisso com a rastreabilidade porque estamos preparados e queremos ser responsabilizados por ele”.

Nas últimas semanas, o plano, que foi uma resposta a um empréstimo de US$ 2,3 bilhões vinculado à sustentabilidade, ganhou elogios no setor financeiro. Mas, questionada pelo Diálogo Chino, a Cofco não disse o quanto precisaria expandir a área atualmente monitorada para atingir seu objetivo, e divulgou poucas informações sobre como planeja fazê-lo.

“Ainda é preciso entender quais são esses instrumentos que eles adotam para fazer a verificação”, disse Lisandro Souza, coordenador do programa de Clima e Cadeias Agropecuárias do Imaflora. “E depois, qual é o grau de transparência dessa política”.

Em uma nota ao Diálogo Chino, a Cofco disse que divulgaria regularmente os resultados da política em seus relatórios anuais de sustentabilidade e por meio de outros “indicadores concretos”.

70%


da soja que a Cofco compra do Mato Grosso e do Matopiba vêm de fornecedores diretos

A omissão mais visível no plano diz respeito aos fornecedores indiretos da empresa. A Cofco não revelou a quantidade de soja brasileira que ela obtém deles. A empresa diz que 70% da soja que compra do estado de Mato Grosso e da chamada região de Matopiba que abrange os estados de Maranhāo, Tocantins, Piauí e Bahia, vêm de fornecedores diretos, sugerindo que seu compromisso de 2023 tem uma margem significativa para melhorias.

Em uma resposta escrita às perguntas do Diálogo Chino, a Cofco disse que está fazendo um esforço para avançar no “engajamento com seus fornecedores indiretos”.

Todo Matopiba e quase a metade do Mato Grosso se enquadram no bioma Cerrado, de onde a Cofco obtém quase um terço de toda a sua soja brasileira. Menos conhecida que a floresta tropical amazônica ao norte, a savana do Cerrado cobre mais de um quinto da área terrestre brasileira, mas desfruta de muito menos proteção ambiental. Com dois milhões de quilômetros quadrados, o Cerrado é equivalente em tamanho a França, Alemanha, Espanha, Itália e Inglaterra juntas.

A preservação do Cerrado é essencial para a estabilidade da água no Brasil. Conhecido como o “berço das águas “, o bioma alimenta as cabeceiras de rios tão importantes como o Araguaia e São Francisco e abastece oito das bacias hidrográficas brasileiras. Apenas 8% dos vastos campos parcialmente cobertos de árvores são atualmente terras protegidas.

Como a proteção da região amazônica subiu na agenda nos últimos 20 anos, o agronegócio se mudou para o bioma vizinho, o Cerrado. A produção de soja triplicou no bioma entre 2001 e 2019, e 51% da área de terra dedicada à soja no Brasil é encontrada lá.

O preço da proteção da Amazônia

Ao contrário do Cerrado, a Amazônia está atualmente protegida do avanço das plantações de soja pela Moratória da Soja 2006, um acordo voluntário de desmatamento zero feito por grandes empresas alimentícias para proteger a floresta tropical.

“O sucesso da Moratória da Soja dependeu, em parte, do simples fato de que existia o Cerrado ao lado da Amazônia”, lembra Toby Gardner, pesquisador da Trase, organização que monitora o desmatamento ligado às commodities.

Os produtores do Cerrado se opõem ao compromisso de conservação da Cofco, embora os detalhes do que a empresa vai de fato fazer permaneçam nebulosos.

“De imediato, especialmente na região do Cerrado do Matopiba, onde ainda é possível abrir novas áreas legalmente, podemos ter um impacto caso ela comece a restringir a compra desses produtores”, disse Fabrício da Rosa, diretor executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Soja, ao Canal Rural logo após o anúncio da chinesa.

O Cerrrado abrange 13 estados, mas os quatro estados da subregião do Matopiba representam a principal fronteira para a expansão da produção de soja. Atualmente, a soja cobre 8% do bioma.

Recém-chegados e ambiciosos

A Cofco International é uma subsidiária da gigantesca empresa estatal da China Cofco Corporation. A empresa matriz tem um faturamento anual de US$ 70 bilhões. A Cofco International foi criada em 2014 para se tornar líder mundial no fornecimento de grãos. Com sede em Genebra, ela está em rápida expansão e pretende competir com líderes globais do agronegócio como Bunge e Cargill.

Em menos de uma década, a Cofco International estabeleceu operações em 35 países, entre eles o Brasil, onde se tornou uma grande exportadora de soja. Em 2018, enviou a maior parte das 4,5 milhões de toneladas que movimentou para a China, onde o grão é consumido em forma de ração por suínos.

A Cofco International diz que já monitora todos os seus fornecedores diretos dentro de 25 municípios prioritários no Cerrado. Entretanto, eles representam apenas 25% da soja que a empresa obtém do bioma e 7,2% do total proveniente de todo o país, segundo cálculos de Diálogo Chino baseados em dados da empresa.

O cálculo sugere que, para alcançar a rastreabilidade total dos fornecedores diretos até 2023, a empresa precisaria aumentar a área monitorada em quase 14 vezes.

Em uma resposta escrita às perguntas sobre seu compromisso, o Cofco disse que os cálculos de Diálogo Chino estavam incorretos, porque a empresa atualmente monitora mais do que os 25 municípios que menciona em seus relatórios de sustentabilidade — embora não tenha respondido o quanto mais.

Ela ficou quieta e avaliou com muito mais detalhes a situação para dimensionar o nível do desafio

A Cofco também prometeu rastrear 85% de seus fornecedores diretos em Matopiba, o coração da soja que o Greenpeace diz ser responsável por 62% da devastação no bioma Cerrado, anteriormente, até 2021.

Paulo Adario, fundador da Campanha Amazônia do Greenpeace, acredita que a empresa “perdeu a oportunidade” de se comprometer com um período mais curto, que terminasse em 2020.

Perguntas sobre fornecedores indiretos

A Cofco não revelou quanto da soja que compra do Brasil seria rastreada por seu plano, prometendo apenas a rastreabilidade total dos fornecedores diretos. A empresa também se absteve de explicitar que proporção de sua produção total e compras da região do Cerrado (ou no Brasil) suas metas para Matopiba representam.

A empresa disse que utilizaria mapas de fazendas e imagens de satélite, bem como dados oficiais como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de propriedades privadas para monitorar os fornecedores, e contratar auditores externos para monitorar o processo.

Mas as explicações de como funcionará o cumprimento da meta permaneceram vagas. As informações estão dispersas em seu anúncio oficial, relatório ambiental e em sua prestação de contas, a última em junho de 2020, ao Soft Commodities Forum – uma iniciativa do setor privado para frear a devastação do Cerrado.  A empresa também não revelou detalhes da auditoria externa que realizou nos 25 municípios prioritários por ela citados.

Pressão dos bancos

O plano é, pelo menos em parte, uma resposta a um empréstimo de US$ 2,3 bilhões que a Cofco International obteve de 21 bancos em 2019, diz a empresa. O empréstimo a juros baixos está ligado ao cumprimento de metas ambientais que priorizam o rastreamento do produto.

Em resposta ao crescente desmatamento no Brasil nos últimos dois anos, instituições financeiras como o banco HSBC e o Nordea, o braço de investimento do maior grupo de serviços financeiros da Europa, estão colocando pressão no mercado de commodities.

“A Cofco diz que está preocupada com a questão ambiental”, diz Adario, do Greenpeace, “é uma preocupação que existe, e está ligada à defesa do mercado”.

A Cofco prometeu ainda que as fazendas fornecedoras estarão livres de trabalho forçado, fora de áreas de preservação ou embargadas e em conformidade com a Moratória da Soja, adotada pelo setor em 2006 com vias de frear a destruição da Amazônia.

Transparência essencial

A Moratória da Soja tem sido uma das principais ferramentas para reduzir o desmatamento na Amazônia (como mostraram estudos em PlosOne e Pnas) e foi eficaz até 2018, embora tenha sido recentemente criticada pela Ministra da Agricultura Tereza Cristina.

1,8%


da safra de soja da Amazônia do ano passado violou a Moratória da Soja

Mesmo quando os índices de desmatamento na Amazônia começaram a aumentar novamente em 2019, a soja não foi a culpada. Um relatório do Grupo de Trabalho da Soja (composto por produtores, organizações ambientais e o governo brasileiro) constatou que apenas 1,8% da safra de soja amazônica de 2018/2019 violava a moratória.

O grupo da soja não detalha, no entanto, o desempenho de cada empresa. Essa informação é mais transparente, por exemplo, no TAC da Carne, iniciativa semelhante coordenada pelo Ministério Público Federal do Pará para frear o desmatamento impulsionado pela pecuária.

Souza, do Imaflora, diz que a transparência é essencial para permitir a participação de grupos da sociedade civil que exigem sistemas de verificação eficazes.

Custo humano

Embora o crescimento do agronegócio tenha impulsionado o PIB nos municípios da região de Matopiba, ele não avançou no desenvolvimento social da região.

Apenas 45 das 337 cidades da região possuem índices de bem-estar que excedem as médias de seus estados, de acordo com um estudo conduzido pela Universidade Federal de ABC, com sede em São Paulo. Na maioria dos casos, os indicadores de bem-estar nas regiões de cultivo de soja são piores do que em qualquer outro lugar.

Quando é cinco da tarde, fica a nuvem parecendo névoa, mas é só veneno.

O cultivo da soja na região de Matopiba é responsável pela degradação de nascentes e leitos de rios, e o uso generalizado de produtos químicos agrícolas tem tido impactos adversos à saúde, segundo revelou um relatório de 2018 produzido por organizações sociais.

Altamiran Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra, mora numa comunidade de agricultores próxima ao município de Bom Jesus, no sul do Piauí. Eles se estabeleceram, como a maioria dos que dependem daquela terra para a subsistência, nas áreas baixas do Cerrado, por onde correm os rios. Enquanto isto, a agricultura vai tomando os platôs, onde o terreno é plano.

O problema é que o avanço da monocultura da soja impacta os cursos d’água que suprem povos como o de Ribeiro: “O desmatamento traz primeiro é o secamento das águas”.

Depois, continua o líder local, vem o efeito dos agrotóxicos nas lavouras. “Muitas comunidades ficam na linha do vento, e aí vem o vento e traz eles”, descreve Ribeiro. “Quando é cinco da tarde, fica a nuvem parecendo névoa, mas é só veneno”.

Ribeiro reclama também que a monocultura avança sem dialogar com as comunidades. “A gente às vezes sabe quem são os projeteiros [fazendeiros]. Agora, os compradores, de quem é a soja, para onde ela vai, onde ela percorre, isso a gente não sabe”, acrescenta.

Sobre os impactos socioambientais da soja, a Cofco International disse que investe na educação e no desenvolvimento das comunidades próximas às suas operações.

Política solitária

Enquanto a Moratória da Soja cobriu todo o setor, a Cofco International definiu uma política isolada, sem articulação clara com outros traders para o Cerrado.

“A postura da Cofco é interessante porque é diferente dos outros traders, que saíram se comprometendo com coisas ambiciosas”, comenta Toby Gardner, da Trase. “Ela ficou quieta e avaliou com muito mais detalhes a situação para dimensionar o nível do desafio. Em cima disso, eles estão fazendo seus compromissos mais concretos”.

Ainda que a Cofco International só responda por parte do problema, sua política pesa contra o desmatamento, segundo Paula Bernasconi, coordenadora do Instituto Centro de Vida.

Além de promover a competitividade e pressionar o setor a subir a régua, diz Bernasconi, a iniciativa mostra ser possível “fazer uma política restritiva contra o desmatamento”. Ela pondera, entretanto, que acordos com todo o setor são fundamentais para se evitar que produtores com pendências ambientais vendam soja a compradores menos exigentes.

Já a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais é contrária a um acordo setorial – a exemplo da Moratória da Soja – para o Cerrado.

No passado, grandes empresas ficaram marcadas por se esquivarem de suas promessas. Várias, incluindo a Cargill, adotaram promessas de deter o desmatamento e promover a rastreabilidade dos produtos, assinando a Declaração sobre Florestas de Nova York de 2014, apoiada pelo PNUD. Embora o Brasil não fosse signatário, a Cargill assinou o documento. Mas a empresa logo se esquivou de seu compromisso de 2015 de monitorar todas as compras de soja brasileira até 2020, e adiou a meta para 2030.

A Trase classifica a Cofco International em sétimo lugar entre as 30 empresas mais expostas ao risco de obter soja de áreas ilegalmente limpas.

Além da soja, a empresa também comercializa café, açúcar e algodão no Brasil. Para manter este mercado, 70% de seus 11 mil funcionários estão no Brasil.

O foco estratégico da Cofco International no Brasil traz riscos e benefícios. Sua crescente presença aumenta o risco de impactos ambientais se seus avanços não forem controlados, ao mesmo tempo em que a torna mais suscetível a pressões dos que advogam por mudanças.