Apesar de ser declarado um recurso estratégico, a exploração do lítio no Chile está rodeada de dificuldades. Há quase quatro anos, a atividade tem sido fonte de uma disputa legal entre as comunidades do deserto do Atacama e a SQM, uma das mais importantes empresas do país, que tem entre seus acionistas a chinesa Tianqi, desde 2019.
O Atacama, o deserto mais seco do mundo, fica cerca de 1,5 mil quilômetros ao norte de Santiago do Chile. Ali, o sol é indolente e acaba evaporando qualquer substância em estado líquido. Esta paisagem inóspita, que há milhares de anos continha enormes massas de água, esconde agora, sob a superfície, o que resta dela, misturado com minerais.
Historicamente, o deserto do Atacama tem sido um ponto-chave para a mineração chilena. Primeiro com salitre, no início do século passado; depois com cobre, que ainda é o principal produto de exportação do país; e agora com lítio. O Chile é o segundo maior produtor de lítio do mundo, depois da Austrália, e a atividade está se expandindo.
Com o desenvolvimento de carros elétricos no mundo inteiro, grandes quantidades de lítio são necessárias para suas baterias, elevando o valor deste mineral. Mesmo assim, estima-se que o custo da extração para o meio ambiente seja alto, embora a extensão total disto ainda esteja por ser determinada. É este possível dano que causa preocupação nas comunidades do Chile.
Infrações à legislação sobre mineração de lítio no Chile
Desde 1980, duas empresas estão extraindo lítio no Salar de Atacama, que possui um terço das reservas mundiais do mineral. A SQM e a Albemarle têm contratos de arrendamento lá com a Corporación de Fomento de la Producción (Corfo), agência chilena encarregada de apoiar o empreendedorismo, a inovação e a competitividade.
Suas operações são regidas por normas ambientais, como as Resoluções de Qualificação Ambiental (RCA, na sigla em espanhol), que, entre outras coisas, estabelecem cotas de extração.
Em 2016, a Superintendência do Meio Ambiente, uma entidade estatal que controla licenças ambientais, iniciou um processo de sanção contra a SQM, porque a empresa extraiu mais salmoura do que a cota estabelecida, prejudicando assim os ecossistemas.
O lítio é obtido pela extração da salmoura, ou água com metais dissolvidos nela (como lítio e potássio), a partir do salar. Milhões de metros cúbicos deste líquido podem evaporar com o calor do deserto, em piscinas enormes, para aumentar a concentração de lítio de 1% a 6%. O processo termina em uma planta fechada.
A SQM extraiu mais do que a quantidade limite de extração desta salmoura. Para não perder sua licença ambiental, a empresa teve que apresentar um plano para compensar os danos. Isto incluiu um investimento de 25 milhões de dólares. Em janeiro de 2019, o plano foi aprovado e o processo de sanção não continuou.
Mas as comunidades que vivem na área, lideradas pelo Conselho dos Povos do Atacama, não concordaram, pois, para elas, o plano não reparou os danos que haviam sido causados. Em dezembro de 2019, o Tribunal do Meio Ambiente decidiu a favor das comunidades, o que fez a SQM e o superintendente do Meio Ambiente pedirem à Suprema Corte que anulasse a decisão. No final, no entanto, eles retiraram o pedido.
A mineração no Salar de Atacama sempre foi complexa. “A construção histórica é que o deserto não tem mais atração do que a riqueza natural e mineral, deixando de lado a riqueza humana, cultural e biológica”, diz Cristina Dorador, especialista em ecologia microbiana e acadêmica da Universidade de Antofagasta.
Por isso, Dorador acredita que o nível de proteção das salinas e as regulamentações existentes não são suficientes. “São sistemas complexos e frágeis que requerem maior atenção científica independente e questões que não estão apenas ligadas à indústria”, diz ela.
As condições que existem neste ecossistema são únicas no mundo. Tem um alto nível de endemismo e muitas das espécies desenvolveram adaptações a condições extremas de temperatura e radiação, como é o caso dos extremófilos.
Uma nova etapa
Em 2018, a SQM e a Corfo atualizaram seu contrato de arrendamento no Atacama, e, por meio dele, quintuplicaram a extração de lítio. Consultada pelo Diálogo Chino, a Corfo esclareceu que isto não implica aumento na extração de salmoura dos salares.
“As quantidades permanecem as mesmas que foram aprovadas pela autoridade ambiental”, respondeu a empresa. Até então, parte do lítio não era processada porque excedia a cota, e, segundo a empresa estatal, seria esta a diferença.
Outro dos elementos atualizados no contrato é a informação exigida da SQM sobre o monitoramento do impacto de suas operações sobre o meio ambiente. Isto deveria ter sido entregue à entidade estatal em outubro, mas a empresa avançou um mês lançando uma plataforma de monitoramento online.
O objetivo da plataforma é mostrar os níveis de água e salmoura, assim como um plano de monitoramento ambiental e hidrogeológico, explica Javier Silva, gerente da SQM. Em uma segunda etapa, serão publicados dados de monitoramento da flora e fauna do setor, coletados desde 2000, que também incluirão informações sobre os extremófilos.
A plataforma da SQM será complementada por uma plataforma similar que a Corfo está desenvolvendo internamente e de forma independente. Esta plataforma verificará a consistência dos dados apresentados pela SQM e será utilizada por órgãos de auditoria e autoridades governamentais, monitorando as variáveis ambientais mais importantes.
São sistemas complexos e frágeis que requerem maior atenção científica independente e questões que não estão apenas ligadas à indústria
“A plataforma de monitoramento é a maneira de tornar transparente o que fazemos”, diz Javier Silva. “Em geral, há uma falta de conhecimento sobre o processo (de extração de lítio) e como ele afeta o meio ambiente e a comunidade. Nesse sentido, a melhor maneira é educar as pessoas para que elas possam tirar suas próprias conclusões”, acrescenta ele.
Para Lady Sandón, representante da Unidade de Meio Ambiente do Conselho dos Povos do Atacama, a plataforma de monitoramento online é insuficiente. “Com ela você não pode ter certeza de que não está afetando a fauna e a flora. Você não pode conhecer o estado desta última, por exemplo, apenas descrevendo o que está secando”, diz ela.
O monitoramento deve ter um critério mais relevante, onde o impacto é estudado de uma forma macro e ao longo do tempo, acrescentou ela.
Javier Silva diz que a SQM entrou em contato com as diferentes comunidades da área para apresentar a plataforma para que seus comentários possam ser levados em conta e melhorias sejam feitas. Lady Sandón confirma o convite, mas assegura que ele não está entre as prioridades da comunidade e, além disso, a assembleia do Conselho decidiu eliminar todo contato com a empresa.
O fim da comunicação aconteceu, entre outras coisas, devido às posições radicais que surgiram ao longo dos anos. “Nunca houve a vontade ou a intenção de trabalhar em conjunto, como houve com outras empresas. Eles tiveram quatro anos para se unirem e não o fizeram”, disse ela.
A isto se somam as diferenças que as abordagens da SQM geraram dentro das comunidades, que tiveram seu ponto alto em agosto passado, quando uma delas, a Camar, assinou um acordo extrajudicial com a empresa.
Além de pressionar para que o processo de sanção continue, o Conselho dos Povos do Atacama se prepara para apresentar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um processo que foi interrompido pela pandemia.
Na atualização do contrato da SQM com a Corfo, também é estabelecido um financiamento anual para projetos de investimento e desenvolvimento que promovam o desenvolvimento sustentável das comunidades da bacia do Salar de Atacama.
A Corfo afirma que isto está relacionado com “a necessidade de o Estado aumentar sua presença como garantidor e supervisor, e olhar para as salinas como um todo, não apenas a riqueza mineral, mas também seu ambiente ambiental e social, promovendo a sustentabilidade das salinas e o valor compartilhado com as comunidades do entorno”.
Esta seria uma forma de mitigar ou compensar as externalidades geradas pelas atividades de extração e comercialização de lítio.
Mas os atores envolvidos estão longe de encontrar um equilíbrio. Em dezembro do ano passado, quando o plano de conformidade da SQM foi rejeitado, isso foi feito porque se baseava em ciência questionável ou incertezas científicas. Por enquanto, as salinas não têm um modelo hidrológico para medir o impacto da atividade de mineração.
Junto com a SQM e Albemarle, existem duas empresas de mineração que extraem cobre da planície de sal: Zaldívar e Escondida. Esta última, a maior mina de cobre do mundo, também está sob sanção desde julho. A razão é a redução do nível das águas subterrâneas sob os termos de sua licença ambiental no setor de Tilopozo, ao sul das salinas. A empresa nega.