A Argentina vai às urnas neste domingo, 22 de outubro, em um contexto de grave crise econômica: a inflação interanual bateu 138% em setembro; mais de 40% da população vive abaixo da linha da pobreza; uma enorme dívida externa pressiona as finanças e políticas públicas; e, no setor agrícola, a seca prolongada causou perdas de mais de US$ 14 bilhões apenas na safra de 2022/23.
O peso disso recai em uma população cada vez mais cansada do establishment político, desiludida com o governo atual de Alberto Fernández e convivendo com os problemas deixados por seu antecessor, Mauricio Macri (2015-2019). Mesmo assim, os resultados das primárias obrigatórias de agosto — que, na Argentina, permitem escolher o candidato presidencial de cada partido ou coalizão — foram uma surpresa para muitos: o candidato de extrema-direita Javier Milei obteve cerca de 30% dos votos, liderando a corrida nesse grande ensaio geral para o primeiro turno.
Economista ultraliberal e deputado no Congresso argentino desde 2021, Milei ficou em primeiro lugar nas primárias, prometendo “explodir” o Banco Central do país e dolarizar a economia. Ele é líder do partido A Liberdade Avança, que representa uma coalizão de mesmo nome composta por 14 partidos.
As posições conservadoras de Milei também geram preocupação — entre elas, sua rejeição ao aborto, a negação das mudanças climáticas e as propostas para legalizar o comércio de órgãos humanos. O candidato também entrou em um terreno bastante pantanoso ao questionar se realmente houve 30 mil pessoas mortas e desaparecidas durante a ditadura militar do país (1976-1983), dado oficial usado pelo governo argentino.
Em segundo lugar nas primárias, o Juntos pela Mudança representa a coalizão do ex-presidente Macri, que acumulou uma grande dívida externa com o Fundo Monetário Internacional (FMI) durante seu mandato. Sua candidata presidencial, Patricia Bullrich foi ministra da Segurança de Macri e prometeu políticas firmes de combate à criminalidade e redução da inflação, embora não especifique como isso seria alcançado.
Em terceiro lugar nas primárias está a coalizão governista União pela Pátria. Como o presidente Fernández não se candidatou à reeleição e sua vice, Cristina Kirchner, teve sua elegibilidade suspensa pela Justiça, a missão ficou com o ministro da Economia, Sergio Massa, ex-prefeito da cidade de Tigre, na região metropolitana de Buenos Aires. O ministro tem assumido a tarefa ingrata de tentar conter a grave crise econômica enquanto tenta se eleger presidente.
Às vésperas das eleições, o Diálogo Chino analisa a posição dos três principais candidatos à presidência em temas-chave ligados às mudanças climáticas e ao meio ambiente. Usamos como referência seus planos de governo e as propostas feitas em campanha. Também ouvimos as opiniões de organizações socioambientais sobre essas propostas. Nenhuma das equipes dos candidatos respondeu aos pedidos de entrevista.
Clima: o negacionismo de Milei
Enquanto Sergio Massa e Patricia Bullrich reconhecem as causas e a gravidade das mudanças climáticas e mencionam a necessidade de ações concretas para combatê-las, o negacionismo climático de Javier Milei soa o alarme dos ativistas ambientais.
Assim como Donald Trump nos Estados Unidos ou Jair Bolsonaro no Brasil — figuras pelas quais Milei expressa grande admiração —, o candidato argentino já havia marcado sua posição negacionista antes mesmo de virar candidato presidencial: em suas entrevistas e aparições públicas nos últimos anos, ele tem chamado o fenômeno climático de “farsa socialista”.
No segundo debate presidencial, em 8 de outubro, Milei disse não negar as mudanças climáticas em si, mas suas causas, atribuindo o aumento da temperatura às flutuações naturais do clima — embora o consenso científico considere que as atividades humanas têm um papel central na crise climática.
Dessa forma, o partido de Milei não faz qualquer menção à ação climática em seus documentos de campanha. Pelo contrário: sua proposta é dissolver o Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável — medida descrita como inadmissível pela Fundação do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Farn), uma das principais organizações socioambientais da Argentina.
Em um documento recente em que comenta propostas eleitorais — sem mencionar diretamente nenhum candidato —, a Farn descreve o ministério como um instrumento “fundamental para a definição de políticas que afetam o meio ambiente e a qualidade de vida da população, independentemente dos resultados de sua gestão”.
Ramon Cruz, presidente da organização ambiental Sierra Club, sediada nos EUA, dá uma ideia dos impactos negativos que uma presidência negacionista como a de Donald Trump gerou: “O dano foi muito pior do que eu pensava. Em nível global, [Trump] tirou a força e a legitimidade do processo do Acordo de Paris. Internamente, ele desmontou uma estrutura regulatória que levou cerca de quatro décadas para ser construída”.
A ativista brasileira Paloma Costa, do grupo de jovens conselheiros climáticos do secretário-geral da ONU, descreve efeitos semelhantes causados por Jair Bolsonaro durante seu mandato no Brasil. Ela explica que o ex-presidente contribuiu para a desinformação e a polarização do país em relação às mudanças climáticas, além de promover o descrédito da ciência e dos ativistas ambientais, bem como dos próprios funcionários de órgãos ambientais.
Energia: todos querem Vaca Muerta
Com 88% da energia gerada a partir de combustíveis fósseis, o setor energético é o que gera mais gases de efeito estufa na Argentina, contribuindo com mais de 50% das emissões do país. Apesar de suas diferenças, os três candidatos consideram o setor fundamental para o desenvolvimento do país e para superar a atual crise econômica.
A Liberdade Avança, de Milei, diz que vai manter os investimentos em petróleo e gás — principalmente nos campos de Vaca Muerta, na província de Neuquén — para “gerar renda em moeda estrangeira”. Ele defende privatizações no setor de gás, incluindo a da estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales.
A União Pela Pátria, de Massa, também apoia a expansão das operações em Vaca Muerta, tanto em sua campanha quanto durante seu mandato como ministro de Macri. No segundo debate presidencial, Massa classificou o gás natural como uma “energia renovável” que o país deveria explorar “para se tornar um dos grandes players mundiais” — apesar de alguns reivindicarem o gás como um combustível central para a transição energética, suas fontes são fósseis e poluentes.
A campanha de Patricia Bullrich detalhou planos para aumentar a regulamentação dos mercados de gás e eletricidade e “estabelecer regras claras e sólidas” que ofereçam segurança ao setor. Também se comprometeu a expandir oleodutos, gasodutos e redes de eletricidade por meio de parcerias público-privadas.
Especialistas entendem que o apoio dos três candidatos ao setor de combustíveis fósseis tem motivos concretos. “Gostaria que a exploração de hidrocarbonetos acabasse, mas temos que considerar o contexto econômico atual e trabalhar em uma estratégia mais ampla de diversificação da matriz energética”, diz Lara Bernstein, consultora de economia e energia de Buenos Aires.
A ameaça da crise climática não foi totalmente compreendidaSol Aliano, consultoras de energia e mudanças climáticas
Já Sol Aliano, consultora em energia e mudanças climáticas, diz que as razões para o foco em Vaca Muerta em plena crise climática são complexas: “O lobby do petróleo e do gás não pode ser subestimado, e o país tem uma história e infraestrutura voltadas aos hidrocarbonetos. Além disso, a ameaça da crise climática não foi totalmente compreendida”.
A promoção das energias renováveis parece secundária nas propostas dos três candidatos, sem nenhuma meta específica mencionada até o momento. “A resposta, sem dúvida, não é a expansão da infraestrutura ou dos campos petrolíferos. O gás continua sendo um combustível fóssil e, por mais que seja visto como uma ‘ponte’ e promovido como uma solução, ele é parte do problema”, critica a Farn.
Equilibrar uma economia debilitada que hoje depende do setor petrolífero com a redução das emissões levanta questões sobre as propostas dos candidatos. A dolarização proposta por Milei, por exemplo, seria benéfica para essas atividades?. “Não vejo oportunidades, vejo mais desafios”, diz Aliano. “Como você pode tomar decisões se não consegue decidir sobre sua moeda? Alguns dizem que isso estabilizaria a inflação. Acho que é uma perda de soberania”.
Lítio: desafio ou salvação?
Embora a extração de combustíveis fósseis seja essencial para todos os candidatos, a transição energética aparece em suas campanhas de uma forma particular: através da exploração das reservas de lítio, mineral central para a mobilidade elétrica. Mas sua mineração também traz impactos socioambientais — como o intenso uso de recursos hídricos em regiões áridas — e enfrenta a resistência de comunidades e povos indígenas.
A exploração do lítio é destaque nas propostas de todos os candidatos à presidência. Milei incentiva o investimento em lítio para aumentar as reservas de moeda estrangeira, enquanto Massa vê o lítio como um propulsor da economia e indústria. O programa do atual ministro da Economia fala em “acompanhar o desenvolvimento da mineração sustentável como um pilar do desenvolvimento regional e nacional, preservando o meio ambiente”. Bullrich, por sua vez, descreve a mineração como atividade “sustentável”, que deve ser promovida com “altos padrões ambientais e benefícios sociais”.
Organizações ambientais, porém, seguem cautelosas. “A América Latina tem enormes reservas de lítio, mas não a capacidade de transformar esse mineral em baterias; isso é feito por fábricas em outros países”, explica Pía Marchegiani, diretora de política ambiental da Farn em entrevista ao Diálogo Chino. “Mais uma vez, os países da região estão presos à necessidade de extrair minerais para a exportação”.
A especialista acrescenta outros problemas em relação ao lítio: a falta de informações sobre os impactos ambientais da atividade nas salinas da América do Sul; o escasso conhecimento sobre o funcionamento do sistema hídrico envolvido nessas operações; e o atropelamento dos direitos das comunidades locais de participar do processo de tomada de decisão.
“Estamos preocupados com os planos do Estado que violam os direitos das comunidades. Vimos como o governo apoia a chegada de empresas estrangeiras, em vez de fortalecer as comunidades que trabalham em defesa de suas terras e da água”, diz Clemente Flores, moradora da comunidade El Moreno, na província de Jujuy, durante o Fórum Regional sobre Empresas e Direitos Humanos, realizado em Santiago do Chile, na semana passada. “As empresas estão sacrificando as comunidades para vender a energia que supostamente salvará o planeta”.
As relações com as comunidades, as consultas públicas e os benefícios em torno das reservas de lítio não são mencionadas nas propostas de nenhum dos candidatos.
Agricultura: seca e desmatamento
Agricultura, pecuária, silvicultura e afins constituem a segunda maior fonte de emissões de gases de efeito estufa na Argentina, representando quase 40% do total.
Sem dar detalhes, A Liberdade Avança propõe “boas práticas” na agricultura, que considerem a “sustentabilidade do solo e a preservação do meio ambiente” — ações que parecem em desacordo com a promessa de Milei de eliminar o Ministério do Meio Ambiente.
A União pela Pátria, de Massa, prometeu desenvolver “novas políticas agrícolas para consolidar a liderança global do setor” e incorporar avanços tecnológicos, mas também sem muito detalhamento.
Já a agenda apresentada por Bullrich inclui um capítulo inteiro sobre o tema: há propostas de incentivos fiscais para o agronegócio, abertura de novos mercados e melhorias no sistema de transporte.
Com a exceção de Massa, que se compromete a cumprir o Plano Nacional de Adaptação e Mitigação das Mudanças Climáticas, os candidatos não mencionam políticas específicas para adaptar o setor aos impactos da crise climática — como secas ou inundações — e modificar seus processos para reduzir suas emissões.
A Farn diz que essas omissões são problemáticas, dada a escala dos desafios climáticos: “É necessário transformar o sistema agrícola industrializado — hoje orientado para a produção de commodities e não de alimentos, e volátil aos preços do mercado internacional”.
Além disso, a organização defende a necessidade de “promover práticas agroecológicas para restaurar os solos, aumentar a resiliência dos sistemas diante das mudanças climáticas e reduzir as emissões”.
A agenda ambiental de Massa inclui o combate ao desmatamento ilegal de florestas nativas e o aumento progressivo do financiamento da Lei Florestal — legislação que, desde sua promulgação em 2007, independentemente do partido no poder, não recebeu as verbas necessárias para sua implementação. Durante o segundo debate presidencial, Massa cobrou a inclusão de crimes ambientais ao código penal do país, para que qualquer pessoa que “polua um rio, derrube uma árvore ou destrua uma área úmida” possa ser condenado a uma pena de três a oito anos de prisão. Essas mudanças no código penal também foram defendidas pela Farn.
Acordos internacionais serão cumpridos?
A Argentina aderiu à Agenda 2030 da ONU para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que incluem desde a erradicação da pobreza até a garantia de igualdade de gênero. Porém, no segundo debate presidencial, Milei disse que romperia com esse compromisso internacional: “Não vamos aderir à Agenda 2030. Não vamos aderir ao marxismo cultural. Não aderimos à decadência”, bradou o candidato de extrema-direita.
Ele não respondeu se seguiria o mesmo caminho de Trump e retiraria a Argentina do Acordo de Paris, assinado em 2015 para combater as mudanças climáticas.
A falta de uma política climática sólida pode representar obstáculos para a Argentina no acesso ao financiamento internacional. Nesse sentido, a agenda ambiental de Massa propõe não apenas cumprir as metas climáticas do país, mas também exigir que as nações desenvolvidas façam sua parte em mobilizar US$ 100 bilhões em financiamento climático para os países em desenvolvimento.
A agenda do atual ministro da Economia inclui propostas de swaps de dívida por natureza que “reduziriam o ônus da dívida sobre o orçamento nacional e permitiram alocar recursos para a conservação ambiental, incluindo a criação de novos parques nacionais e a melhoria dos parques existentes”. Essas propostas também dependem das discussões em andamento sobre as reformas do sistema financeiro global.
Por sua vez, Bullrich considera fundamental o cumprimento do Acordo de Paris e planeja promover o desenvolvimento sustentável por meio das relações internacionais, firmando e dando sequência aos “tratados de garantia de investimentos setoriais, como energia e mineração”, conforme seu programa de governo.
A Farn explica que a agenda ambiental faz parte de um debate político altamente relevante sobre políticas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, mas enfatiza que isso depende de “órgãos que planejem, implementem e avaliem políticas públicas com respaldo científico”.
As eleições presidenciais serão realizadas neste domingo, 22 de outubro. Se nenhum candidato obtiver maioria suficiente, haverá segundo turno em 19 de novembro. O novo governo tomará posse em 10 de dezembro, dois dias antes do final da COP28, a próxima conferência da ONU sobre mudanças climáticas.