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Com eleição de Milei, como ficam as relações de Argentina e China?

Novo presidente argentino quer dar uma guinada na política externa do país, mas afastamento da China não deve ser uma mudança simples, dizem especialistas
<p>Presidente argentino Javier Milei (centro), sentado ao lado de sua irmã e secretária-geral, Karina Milei (esquerda), e o ministro do Interior, Guillermo Francos (direita), em cerimônia no Vaticano realizada em fevereiro. Durante as eleições, as posições radicais de Milei geraram atritos com líderes de várias nações, incluindo a China e o Vaticano (Imagem: Stefano Costantino / Alamy)</p>

Presidente argentino Javier Milei (centro), sentado ao lado de sua irmã e secretária-geral, Karina Milei (esquerda), e o ministro do Interior, Guillermo Francos (direita), em cerimônia no Vaticano realizada em fevereiro. Durante as eleições, as posições radicais de Milei geraram atritos com líderes de várias nações, incluindo a China e o Vaticano (Imagem: Stefano Costantino / Alamy)

Desde que assumiu em dezembro, o governo de extrema-direita de Javier Milei sinalizou mudanças abruptas na política externa da Argentina — incluindo uma possível reformulação das relações com a China.

Nas últimas duas décadas, os dois países vinham fortalecendo seus laços bilaterais, o que levou ao crescimento do comércio, à cooperação diplomática e ao aumento dos investimentos e da ajuda financeira da China. Milei e membros de seu gabinete, no entanto, querem se alinhar aos interesses dos Estados Unidos e enfraquecer as relações com os chineses.

Analistas veem essa guinada com ressalvas: atualmente, a China é o segundo maior parceiro comercial da Argentina, atrás do Brasil, e o destino de cerca de 10% de suas exportações. Além disso, a natureza dos laços comerciais e investimentos entre ambos os países — geralmente, pensados a longo prazo — sugerem uma manutenção das relações bilaterais.

O Diálogo Chino conversou com vários especialistas sobre a postura do novo governo argentino em relação à China e os impactos disso para o futuro.

Posturas hostis, diplomacia apaziguadora

O movimento mais concreto nas relações Argentina-China desde o início do governo Milei talvez seja a decisão de não ingressar no bloco de nações emergentes, os Brics. O grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul havia autorizado a entrada de outros países — entre eles, a Argentina, convidada em 2023 graças às articulações do Brasil e da China. Em uma carta enviada ao bloco no fim de dezembro, Milei reiterou que as prioridades da nova política externa argentina diferem daquelas do ex-presidente peronista Alberto Fernández (2019-2023). 

Em meados de janeiro, a nova chanceler Diana Mondino reuniu-se com o embaixador chinês em Buenos Aires, Wang Wei, e afirmou não haver dúvidas sobre a “importância do comércio entre os dois países”. Já Wang disse esperar que “a amizade e a cooperação” entre ambos continuem sob o comando de Milei.

Apenas dois dias após essa reunião, Milei voltou a polemizar no X, antigo Twitter: “A esquerda quer que você tenha o salário de Cuba, a liberdade da Coreia do Norte, a justiça da China e a abundância da Venezuela”.

Ao ser questionado, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, respondeu que seu país estava “pronto para trabalhar com a Argentina na consolidação da confiança mútua, no aprimoramento da cooperação em torno da Iniciativa Cinturão e Rota [BRI, na sigla em inglês] e no aproveitamento das vantagens de cada nação”.

Javier Milei acena em cerimônia de posse
Desde que assumiu em dezembro, o governo Milei tem enviado sinais trocados sobre as relações com a China: as posições pessoais geralmente hostis contrastam com as declarações mais equilibradas de ministros e diplomatas em reuniões bilaterais (Imagem: Sebastian Hipperdinger / Alamy)

Após essa série de oscilações, Diana Mondino e o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, reuniram-se em fevereiro, durante a Conferência de Segurança de Munique. Os dois aproveitaram a oportunidade para reforçar seu compromisso de manter as relações sólidas.

Relações comerciais Argentina-China

No ano passado, a China foi o terceiro maior destino de mercadorias argentinas, atrás de Brasil e Estados Unidos. No total, as exportações para a China somaram US$ 5,27 bilhões, representando quase 8% das vendas da Argentina em 2023. Por outro lado, a China também foi a origem de 19,7% das importações da Argentina, totalizando US$ 14,5 bilhões, atrás apenas do Brasil.

A Argentina envia aos mercados chineses produtos como soja, carne bovina, cevada, camarão e carbonato de lítio. No sentido contrário, importa smartphones, televisores e outros eletrodomésticos, carros e autopeças, fertilizantes e geradores elétricos.

Apesar dos solavancos desde a ascensão de Milei, as trocas comerciais entre os países — sobretudo no setor agrícola — não parecem ter sido afetadas. Isso poderia ser explicado pela enorme importância do comércio para ambos os lados, sugere Mario Quinteros, ex-diplomata argentino na China:

“As atitudes de Milei são pouco construtivas com relação à China. No entanto, é preciso ter em mente que a China opera com uma perspectiva de longo prazo e que, em termos de comércio, há benefícios mútuos: as exportações agrícolas da Argentina melhoram sua balança comercial, mas também são importantes para garantir o abastecimento de alimentos da China”.

Embora a China possa encontrar novos fornecedores de soja e carne, a Argentina não encontraria um comprador alternativo
Gonzalo Ghiggino, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina

Já Gonzalo Ghiggino, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (Conicet), argumenta que seu país não tem muita escolha senão manter boas relações com a China: “Provavelmente, Milei vai manter esse relacionamento no piloto automático. Na questão comercial, há certos riscos, porque enquanto a China pode encontrar novos fornecedores de soja e carne no Brasil, na Austrália e nos Estados Unidos, a Argentina não encontraria um comprador alternativo à China”.

O economista Julio Sevares, que escreveu sobre as consequências das tensões entre os EUA e a China para a Argentina, acrescenta que o país deve agir com cautela: “Há negociações para a entrada de produtos na China, como o trigo [argentino], recentemente aprovado após 25 anos de negociações. Uma deterioração nos laços políticos poderia ter possíveis impactos comerciais”.

O clima hostil está esfriando?

Maria Francesca Staiano, coordenadora de estudos sobre a China na Universidade Nacional de La Plata, lembra que o ex-presidente argentino Mauricio Macri (2015-2019) também quis priorizar alianças com os Estados Unidos e a Europa, e questionou os vínculos da Argentina com a China durante sua campanha eleitoral — embora não com a mesma agressividade de Milei, que chamou a China de “assassina”.

Milei é uma pessoa desequilibrada, mas a situação deve se estabilizar gradualmente após essa fase inicial
Maria Francesca Staiano, coordenadora de estudos sobre a China na Universidade Nacional de La Plata

Devido à profunda interdependência econômica dos países e aos atuais acordos de cooperação, Macri não conseguiu se distanciar como gostaria de Beijing. Em 2017, ele inclusive participou do Fórum da BRI — embora a Argentina só aderisse ao programa em 2022, sob o governo Fernández. 

“Mesmo que Milei seja uma pessoa muito mais desequilibrada, vai acontecer a mesma coisa: a situação se estabilizará gradualmente após essa fase inicial”, diz Staiano. 

Jorge Malena, diretor da pós-graduação em estudos sobre a China da Universidade Católica da Argentina, concorda: “A realidade mostra que, durante o início do governo, houve uma mudança de postura em relação a Beijing”.

No fim de dezembro, em meio ao comportamento hostil do novo governo argentino, a China suspendeu o swap cambial de US$ 6,5 bilhões anunciado em outubro — importante mecanismo usado pela Argentina para pagar sua dívida externa sem a necessidade de ter divisas em dólar. 

A Argentina mantém, no total, uma linha de swap cambial de US$ 18 bilhões com a China e, até agora, usou ao menos US$ 5 bilhões.

“Sem esse swap, teria sido impossível conter a queda do PIB em 1,1% e o desemprego em seu nível mais baixo desde 1991, dada a seca histórica”, explica o ex-vice-presidente do Banco Central da Argentina, Jorge Carrera, em referência à seca que afetou severamente a produção agrícola do país nos últimos anos. “Acho que seria um erro deste governo negligenciar o relacionamento com a China, porque isso pode afetar essa fonte de financiamento”.

Investimentos chineses

A China está investindo cada vez mais no setor argentino de mineração. Dos 12 projetos com capital chinês no país, sete são de lítio, e o restante abrange ouro, prata, cobre, chumbo e minério de ferro. Segundo Ghiggino, do Conicet, é “pouco provável que essas operações corram perigo, porque o lítio é de natureza estratégica”.

Os principais investimentos ligados ao lítio incluem os planos de a mineradora chinesa Ganfeng Lithium desenvolver o projeto Mariana e o acordo entre a mineradora argentina Lítica Resources e a Ganfeng para comprar o projeto Pozuelos, em Pastos Grandes, ambos localizados na província de Salta, no norte do país.

Os investimentos chineses em mineração incluem outra série de operações: a participação de 50% da Shandong Gold nas reservas de ouro de Veladero; o projeto de extração de lítio Tres Quebradas, da Zijin Mining, na província de Catamarca; e a parceria da siderúrgica Tsingshan com o grupo de mineração francês Eramet para desenvolver uma fábrica de lítio nas salinas de Centenario-Ratones.

Para o embaixador argentino na China entre 2015 e 2019, Diego Guelar, “a China não será tentada por declarações de curto prazo e, em vez disso, prevalecerá uma visão de longo prazo”. Mas ele alerta que “as oscilações políticas afetarão a dinâmica do investimento em infraestrutura”.

A incerteza em torno das obras financiadas pela China pode ser motivo de preocupação em meio ao corte abrupto no orçamento argentino para obras públicas. Anunciada pelo governo Milei, a medida faz parte de seu plano de ajuste fiscal. 

“O financiamento dos investimentos em infraestrutura pode cair, em um contexto em que ele é mais necessário do que nunca”, alerta Ghiggino. Já Guelar destaca a possibilidade de as províncias argentinas firmarem seus próprios acordos de cooperação com a China nessa área.

O maior projeto de investimento chinês em infraestrutura na Argentina é a construção de duas hidrelétricas no rio Santa Cruz, na província patagônica de mesmo nome. Embora as obras tenham começado em 2015, a instabilidade política e os problemas econômicos atrasaram o andamento do projeto, que ainda está pela metade.

Vista aérea da construção da hidrelétrica Jorge Cepernic na província de Santa Cruz
Vista aérea da construção da hidrelétrica Jorge Cepernic na província de Santa Cruz. Junto à barragem Néstor Kirchner, o projeto atrasado — que representa o maior investimento chinês em infraestrutura na Argentina — enfrenta críticas sobre sua viabilidade (Imagem: Alamy)

No setor de energia renovável, a China também é um parceiro importante para a Argentina. Entre os projetos mais notáveis financiados por empresas chinesas estão os parques eólicos Loma Blanca, na província de Chubut, e Miramar, na província de Buenos Aires, operados pela Goldwind, e o projeto Vientos del Secano, também em Buenos Aires, da Envision Energy. No setor de energia solar, o avanço mais significativo é o parque Cauchari, maior do país: a província de Jujuy, no norte argentino, firmou um acordo com a Shanghai Electric Power Construction para expandir o projeto ainda este ano.

Outro ponto notável do relacionamento bilateral é o setor de transportes da Argentina. Entre os projetos mais importantes, está a reabilitação da ferrovia de carga Belgrano Cargas, operada pela construtora chinesa China Machinery Engineering Corporation (Cmec), que desembolsou quase US$ 2,5 bilhões no projeto.

A Cmec também demonstrou interesse em financiar a reativação da ferrovia Tren Norpatagónico, que conectaria o vasto campo de petróleo e gás de Vaca Muerta ao porto de Bahía Blanca.

Durante sua viagem à China em outubro de 2023, o então presidente da Argentina, Alberto Fernández, reuniu-se com executivos da Cmec, construtora chinesa responsável pelo projeto da ferrovia Belgrano Cargas
Durante sua viagem à China em outubro de 2023, o então presidente da Argentina, Alberto Fernández, reuniu-se com executivos da Cmec, construtora chinesa responsável pelo projeto da ferrovia Belgrano Cargas (Imagem: Casa Rosada, CC BY 2.5 AR)

Esses projetos de investimento fazem parte de acordos políticos firmados com a China durante o governo anterior. Eles incluem US$ 14 bilhões sob o mecanismo do Diálogo Estratégico para Cooperação e Coordenação Econômica entre os países e um segundo pacote de US$ 9,7 bilhões financiados por companhias chinesas após a adesão da Argentina à BRI. 

“Com relação aos investimentos, aqueles criados por acordos entre estados ou órgãos públicos, que incluem uma contribuição do Estado argentino, têm tido dificuldades há anos e sofreram atrasos e cancelamentos devido à falta de recursos locais”, observa o economista Julio Sevares.

Assim, seus prognósticos não são muito otimistas: “A situação vai piorar no futuro próximo devido ao programa de ajuste fiscal promovido pelo atual governo”.