Com o anúncio de um novo estudo de viabilidade, Uruguai e China deram o primeiro passo rumo a um potencial tratado bilateral de livre comércio (TLC), apesar de atualmente isso não ser permitido pelas regras do Mercosul — o bloco comercial sul-americano do qual o Uruguai é membro, ao lado de Brasil, Argentina e Paraguai.
O presidente uruguaio Luis Lacalle Pou anunciou em uma entrevista coletiva em 7 de setembro que a China concordou formalmente em avançar na negociação de um TLC com o Uruguai. O próximo passo será um estudo sobre as implicações do acordo, cujas conclusões deverão estar prontas antes do final do ano.
“Esse governo expressou sua intenção de avançar em direção ao mundo com todos os parceiros do Mercosul, mas, ao mesmo tempo — e isto foi dito explicitamente — se não for possível avançar juntos, o Uruguai tentará fazer isso [de forma independente]”, disse Lacalle Pou. “Primeiro será feito um estudo de viabilidade”.
O Uruguai está dando esse passo porque tem o apoio do Brasil e porque a China percebe que não pode mais esperar para encontrar um consenso com o resto do Mercosul
Em março, o Mercosul comemorou 30 anos de existência com um encontro entre os presidentes dos países-membros, em um evento que destacou suas diferenças: Lacalle Pou disse que o Mercosul não deveria ser “um fardo” para o comércio regional e pediu o relaxamento das regras do bloco — proposta rejeitada pela Argentina.
Os acordos comerciais individuais dos membros do Mercosul atualmente não são permitidos, e mudar isso significaria transformar o bloco, de uma união aduaneira em uma zona de livre comércio. Uruguai e Brasil têm pressionado para tal mudança nos últimos anos, mas sem chegar a um consenso com os demais membros.
“O Uruguai está dando esse passo porque tem o apoio do Brasil e porque a China percebe que não pode mais esperar para encontrar um consenso com o resto do Mercosul”, disse Ignacio Bartesaghi, especialista em comércio exterior do Uruguai. “Lacalle Pou tentou fazer o acordo via Mercosul, mas o protecionismo argentino o impediu”.
Relação China-Uruguai mais próxima
O desejo do Uruguai de assinar um TLC com a China surge em meio às boas relações entre os dois países, que têm um acordo de parceria estratégica desde 2016. Além disso, o Uruguai foi o primeiro país do Mercosul a assinar o BRI (projeto chinês do Cinturão e Rota), ao qual Argentina e Brasil ainda não aderiram.
A China é o principal parceiro comercial do Uruguai, representando 30% do seu comércio externo total, de acordo com dados oficiais. A maior parte do comércio é de matérias-primas, embora o governo uruguaio pretenda avançar no comércio de serviços, tecnologia, turismo e eletrônica no âmbito das negociações do TLC.
Você sabia?
A carne é o principal produto do Uruguai exportado para a China, representando 56% das exportações e um total de US$ 351,4 milhões no segundo trimestre de 2021
A carne é o principal produto do Uruguai exportado para a China, representando 56% das exportações e um total de US$ 351,4 milhões no segundo trimestre de 2021, seguido por oleaginosas (principalmente a soja), segundo dados oficiais coletados pela Universidade Católica do Uruguai. Enquanto isso, veículos, produtos químicos e industriais são as principais importações uruguaias da China.
“O Uruguai está implementando uma estratégia internacional para se posicionar como um fornecedor de alimentos de qualidade”, disse Marcelo Elizondo, especialista em comércio exterior da Argentina. “O problema é que o Mercosul não tem um consenso sobre sua estratégia internacional, com diferentes visões dentro do bloco”.
Um dos primeiros impactos que a assinatura de um TLC teria é a redução de tarifas, que atualmente chegam a 35% para as exportações do Mercosul. Isto implica uma redução no preço dos produtos exportados do Uruguai, o que poderia torná-los mais competitivos no mercado chinês.
O Instituto Nacional de Carnes do Uruguai (Inac) estima que o país pagará US$ 150 milhões em tarifas à China este ano pelas exportações do setor de carne bovina. Além de economizar em tais custos, um TLC permitiria um aumento na produção de carne bovina, avícola e suína, argumentou o Inac em relatório recente.
A China sabe que o Uruguai é um produtor confiável de alimentos
Em uma pesquisa sobre os impactos do TLC, Bartesaghi argumentou que a assinatura do acordo também geraria novos fluxos de exportação para o Uruguai, como foi o caso de Peru, Chile e Costa Rica — todos eles já assinaram acordos com a China e incorporaram novos produtos ao rol de exportações.
“Uruguai e China são economias complementares, portanto um TLC poderia ser negociado em menos de um ano. Todos os estudos mostram que nos beneficiaríamos com o acordo. Economizamos em tarifas e podemos exportar outros produtos”, disse Bartesaghi. “A China sabe que o Uruguai é um produtor confiável de alimentos”.
No entanto, nem todos estão convencidos. Marcelo Abdala, secretário-geral da Pit-Cnt, principal sindicato do Uruguai, pediu uma revisão da ideia, pois os TLCs tendem a ser “benéficos para a exportação de matérias-primas, mas letais para setores com maior valor agregado, como a manufatura”.
Futuro do Mercosul
O ministro das Relações Exteriores do Paraguai, Euclides Acevedo, disse que seu governo está “preocupado com a decisão” e garantiu que o país continuará defendendo o Mercosul. Enquanto isso, o ministro argentino de Desenvolvimento Produtivo, Matías Kulfas, disse que os países do Mercosul “negociam como um bloco e não individualmente”.
Por outro lado, o ministro da economia, Paulo Guedes, apoiou a decisão do Uruguai, dizendo que ela está de acordo com a necessidade de “modernizar o Mercosul”, com “maior flexibilidade” para os países-membros. E acrescentou que este é um exemplo da realidade imposta, dada a perda de dinamismo do bloco.
O Uruguai parece ter pressa em concluir o acordo comercial, pois reconhece que a janela de oportunidade só permanecerá aberta enquanto o Brasil de Jair Bolsonaro ocupar a presidência do Mercosul. A expectativa é que o acordo ocorra, portanto, antes das eleições presidenciais de 2022.
Internacional
Os principais destinos de exportação do Mercosul são China, Estados Unidos e União Europeia
Na entrevista coletiva em que anunciou o potencial acordo, o presidente Lacalle Pou disse que o Brasil está na mesma página do Uruguai, mas não sabia se isso mudaria. “Sei que a posição do Brasil atende aos interesses uruguaios, no caso de avançar bilateralmente com a China. Se ela nos serve agora, vamos aproveitá-la”, acrescentou.
Julieta Zelicovich, doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Rosário, acredita que o anúncio do Uruguai possa levar a vários cenários: 1) o Uruguai poderia deixar formalmente o Mercosul como resultado de suas negociações com a China; 2) o acordo poderia levar os demais países a aceitar uma flexibilização das regras do bloco, 3) ou mesmo a uma reestruturação mais ampla do Mercosul. “Os membros do bloco não têm uma convergência de opiniões sobre o papel do Mercosul para suas economias e sociedades, nem sobre o lugar do bloco no mundo e nas estratégias de integração internacional”, disse Zelicovich.
Especialistas em comércio têm descrito o Mercosul como uma das entidades menos eficazes do mundo, tanto no comércio entre seus membros como com parceiros externos. Segundo Elizondo, de todos os blocos comerciais, o Mercosul é o que menos exporta no mundo em relação ao seu produto interno bruto (PIB).
O Mercosul está em negociações sobre TCLs com Coreia do Sul, Singapura, Canadá, Líbano e a Associação Europeia de Comércio Livre (AECL). E também está finalizando um acordo comercial com a União Europeia (UE). Seus principais destinos de exportação são China, Estados Unidos e UE.
Dada a complexidade e o lento processo de negociação comercial, resta saber se um TLC Uruguai-China poderia ser finalizado nesta janela de oportunidade identificada pelo governo Lacalle Pou. De qualquer forma, com implicações significativas para toda a região, seu progresso será acompanhado de perto.