Uma delegação diplomática dos Estados Unidos chefiada por Daleep Singh, vice-conselheiro de Segurança Nacional, visitou Colômbia, Panamá e Equador como parte de uma “turnê de escuta global” em setembro de 2021. O objetivo foi compreender como a iniciativa “Reconstruir um mundo melhor” (Build Back Better World, ou B3W na sigla em inglês) pode apoiar as demandas por infraestrutura na região.
Lançada no ano passado na cúpula do G7, realizada no Reino Unido em junho de 2021, a B3W se autointitula “uma parceria de infraestrutura de cunho transparente, de alto nível e orientada por valores”, com foco em investimentos em energias renováveis, tecnologia digital, saúde e negócios liderados por mulheres.
Na América Latina — uma das regiões mais impactadas pela Covid tanto na área de saúde quanto econômica — a iniciativa B3W pode oferecer uma ajuda muito bem-vinda. Porém, com sua estrutura financeira ainda pendente e com chances de impor condições rígidas para empréstimos e investimentos, ainda é difícil saber como a B3W pode, de fato, garantir sua desejada “concorrência estratégica com a China”.
“É evidente que a B3W é uma iniciativa para combater a influência que a China construiu por meio da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, em inglês)”, diz Katherin Galindo Ortiz, analista na Colombia Risk Analysis, uma consultoria sediada em Bogotá. “Mas a B3W continua em discussão, não sabemos se e quando se tornará realidade”.
Os empréstimos estatais chineses à América Latina e ao Caribe totalizaram US$ 137 bilhões (R$ 693 bilhões) desde 2005, de acordo com a base de dados financeiros China-América Latina, elaborada pelo think tank The Dialogue e pela Universidade de Boston. Além disso, bancos chineses têm apoiado diversos projetos de infraestrutura na região por meio de empréstimos privados e fundos conjuntos.
Vinho velho, garrafa nova?
Ainda não foi anunciado nenhum financiamento para a B3W, mas a ideia é usar as instituições financeiras e de desenvolvimento americanas DFC, USAID e EXIM Bank para estimular investimentos privados ainda maiores dos países do G7. Nesse sentido, a B3W parece com a iniciativa América Crece, lançada pelos EUA em dezembro de 2019 — e agora aparentemente deixada de lado — embora a novata tenha um foco maior em questões de sustentabilidade e equidade social.
“A América Crece não importa mais”, diz Eric Farnsworth, vice-presidente do Conselho das Américas, associação empresarial sediada nos EUA. “Faltou tempo para que ela fosse implementada, e a administração Biden jamais iria assumir algo criado pelo governo de Donald Trump. Mas a B3W quer usar as mesmas ferramentas, como o DFC, para mobilizar investimentos privados”.
As visitas diplomáticas de setembro resultaram em alguns acordos modestos. Na Colômbia, o DFC anunciou um pacote de assistência de US$ 26 milhões (R$ 131 milhões) destinado a agricultores e migrantes venezuelanos e discutiu aumentar a cobertura vacinal na região.
Em dezembro, as farmacêuticas Providence Therapeutics, do Canadá, e VaxThera, da Colômbia, assinaram um memorando de entendimento para erguer fábricas de vacinas em Medellín, com as primeiras doses previstas para junho de 2022. No Equador, o DFC concordou em oferecer um empréstimo de US$150 milhões (R$ 758 milhões) para empresas de pequeno porte afetadas pela pandemia da Covid-19.
Entretanto, a B3W parece ainda não ter soluções para alguns problemas antigos: a relutância de alguns governos latino-americanos em aceitar as condições de empréstimo e investimento e a incapacidade do capital privado de competir com as estatais chinesas. Para investidores dos EUA e do G7 que preferem fazer aportes de baixo risco, “a pergunta é o que a B3W traria para melhorar a análise custo-benefício”, diz Galindo Ortiz.
Transparência em foco com a B3W
A B3W foca no desenvolvimento transparente, sustentável e responsável de infraestrutura, com base no programa de certificação da Rede Blue Dot, lançado em novembro de 2019 por EUA, Japão e Austrália e com apoio da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Dessa forma, a B3W parece ser inerentemente restrita em relação aos países onde pode operar, uma vez que governos como o da Venezuela e Nicarágua — ambos signatários da BRI — têm poucas chances de aceitar tais termos.
Dos três países visitados pela delegação americana em setembro, dois — Colômbia e Panamá — são aliados históricos dos EUA, mas ambos têm recebido altos investimentos chineses nos últimos anos. Na Colômbia, empresas chinesas compraram a maior mina de ouro do país e receberam propostas para a construção do metrô de Bogotá.
“A Colômbia não precisa decidir agora se está mais alinhada aos EUA ou à China”, diz Galindo Ortiz. “Os EUA continuarão sendo o principal parceiro comercial do país, mas também é evidente que a Colômbia precisa diversificar seus parceiros para reconstruir sua economia. A China fornece o capital necessário para isso”.
É evidente que a B3W é uma iniciativa para combater a influência que a China construiu por meio da BRI
E será que o DFC vai conseguir levar investidores privados a superar suas apreensões sobre o risco político na região? A presidência pró-mercado de Guillermo Lasso, no Equador, faz hoje do país um candidato ao investimento estrangeiro. Mas um possível retorno do partido Alianza PAIS (rebatizado de MOVER), que governou o país de 2007 a 2021 e acolheu o financiamento chinês para a infraestrutura, provavelmente mudaria sua estratégia diplomática.
Em janeiro, o atual líder nas pesquisas de intenção de voto para as eleições brasileiras de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva, repetiu suas antigas críticas à influência dos EUA na região. Na sequência, Biden descreveu como seria a relação do país com o continente: “[A América Latina] não é o quintal da América. Tudo ao sul da fronteira mexicana é o jardim da frente da América. Somos pessoas iguais”.
Além disso, os investimentos em infraestrutura voltada para os setores de educação e meio ambiente podem intensificar o soft power (influência indireta) dos EUA, mas é pouco provável que atraiam fundos privados para projetos maiores.
“O setor privado não pagará por ativos estratégicos acima do preço de mercado, mas a China pagará o que for preciso”, diz Farnsworth. “Os EUA podem tentar competir em valores — transparência, direitos trabalhistas, meio ambiente — mas não é uma agenda que seja fácil de vender”.
Concorrência para o desenvolvimento
Em última análise, para alguns comentaristas, a competição estratégica pode ter importância secundária para nações que enfrentam gigantescas lacunas de infraestrutura.
Para que países da América Latina e do Caribe cumpram suas metas climáticas da ONU, a estimativa é de US$ 2,2 trilhões (R$ 11 trilhões) em aportes necessários em infraestrutura até 2030. Por isso, a B3W pode ser um complemento importante à BRI.
“A fim de construir um mundo melhor após a pandemia da Covid-19, a B3W e a BRI precisam trabalhar juntos”, escreveu o acadêmico americano Keren Zhu no site de notícias The Diplomat.
Na China, as autoridades parecem ter acolhido a B3W. “A China acredita que há espaço suficiente para a cooperação na infraestrutura global, em vez de várias iniciativas competindo entre si ou se sobrepondo”, disse Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do país, em uma coletiva de imprensa em novembro.
11
países da América Latina não possuem embaixador dos Estados Unidos
O vice-ministro das Relações Exteriores, Le Yucheng, também saudou o anúncio da B3W, dizendo que a nação “não se fecharia para bons planos de cooperação de outros países”.
“Espera-se que os EUA e países ocidentais possam realmente implementar seus planos de infraestrutura, construir mais estradas e pontes para os países em desenvolvimento e criar mais empregos e bem-estar para eles”, disse Le Yucheng, “em vez de quererem interferir em assuntos internos de outros países e exportarem valores ocidentais à força”.
Tal saudação de boas vindas sugere que qualquer cooperação direta entre a BRI e B3W seria improvável, e uma competição saudável, com projetos bem administrados, poderia inclusive beneficiar as nações latino-americanas. Para ser eficaz, a B3W precisaria, antes de tudo, aumentar drasticamente seus recursos e peso diplomático em um momento em que o orçamento de ajuda internacional vem diminuindo, e os EUA não têm embaixador em 11 países da região.
“Precisamos colocar mais dinheiro, e o DFC precisa ter pessoal e fazer investimentos estratégicos. Precisamos abastecer outras instituições, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento”, diz Farnsworth, do Conselho das Américas. “Precisamos criar parcerias com assuntos estratégicos para a região, como alívio de dívida, saúde e educação, e precisamos reestruturar a agenda comercial com países como o Brasil e Equador. Caso contrário, toda essa conversa de competir com a BRI é apenas fantasia”.