Negócios

Bolívia está terceirizando seu desenvolvimento?

Papel da China é importante no referendo do país andino

Com os bolivianos se preparando para votar, em 21 de fevereiro num referendo constitucional que permita ao presidente Evo Morales concorrer a um quarto mandato, um escândalo está abalando o país. Seu envolvimento com Gabriela Zapata não só gera dúvidas sobre o caráter do presidente, como também demonstra até que ponto as firmas chinesas vêm aumentando sua presença na Bolívia – muitas vezes entrando em licitações bem menos que transparentes. Os detalhes básicos por trás do escândalo foram confirmados pelo próprio presidente. Em 2007 ou pouco antes, o presidente teve um relacionamento com Zapata, gerando uma criança que morreu logo após o nascimento. Zapata então obteve um diploma de Direito, e em 2013 foi contratada pela companhia chinesa CAMC Engineering. A empresa já venceu licitações do governo boliviano no total de uns US$ 580 milhões, dos quais US$ 366 milhões depois que a advogada entrou na empresa. Provavelmente não é por coincidência que as revelações sobre Morales e Zapata vieram a público poucos dias antes do referendo. Mas o escândalo também ressalta a maneira como Morales colocou os projetos de infraestrutura com financiamento chinês, concedidos a empresas chinesas, bem no centro da sua estratégia de desenvolvimento nacional. Mesmo antes de assumir a presidência, Morales havia sinalizado seu interesse em cultivar uma relação especial com a China em uma viagem ao país em janeiro de 2006, onde declarou publicamente ser grande admirador do líder revolucionário chinês Mao Tsetung. Nos anos seguintes, devido à instabilidade política, à incerteza da proteção jurídica para as empresas e às dificuldades de fazer negócios na Bolívia, o governo Morales teve pouco sucesso na captação de capital chinês em setores como mineração, petróleo e agricultura, apesar da abundância de recursos naturais do país. No entanto, empresas chinesas fizeram enormes avanços nas suas vendas de bens e serviços para a Bolívia, incluindo numerosas obras públicas financiadas por bancos chineses. Nos primeiros 15 anos do atual milênio, segundo o Fundo Monetário Internacional, o comércio bilateral China Bolívia cresceu seis vezes, de apenas US$ 75,3 milhões, em 2000 para US$ 2,25 bilhões, em 2014. Mas enquanto outros países latino-americanos ricos em commodities desfrutavam de um gordo superávit comercial com a China, as importações bolivianas, de US$ 1,82 bilhão, foram quatro vezes maiores que suas exportações para o país. No setor de commodities, a atividade comercial chinesa na Bolívia consiste sobretudo na venda de bens e serviços a crédito, e não em investimentos de capital por parte de firmas chinesas. Exemplos notáveis ​​incluíram a venda, em 2011, de US$ 60 milhões em equipamentos de perfuração para a YPFB, financiada pelo China Export-Import Bank; um contrato com a chinesa CITIC para explorar sais de lítio e outros sais minerais perto da cidade de Coipasa; pagamento à firma chinesa Linyi Gelon New Battery Materials Company para construir uma pequena fábrica de baterias de lítio; pagamento à CAMC Engineering para construir uma central de extração e refino de cloreto de potássio; pagamento à Henan Yuguang para construir infraestrutura em Oruro e Potosí para refino e fundição de zinco; e um contrato de US$ 50 milhões com a chinesa Vicstar para uma central de processamento de minério de estanho na mina de Huanuni, em Potosí, entre outros projetos. Mas a verdadeira joia da coroa nessa onda de contratações de empresas chinesas para serviços de mineração ocorreu no mês passado, quando o governo boliviano anunciou um contrato de US$ 450 milhões com a chinesa SinoSteel para construir e administrar uma central de extração e processamento de ferro da enorme mina de El Mutún. Antes, o desenvolvimento de El Mutún tinha sido concedido à empresa indiana Jindal, mas foi colocado em espera devido a uma disputa contratual. No total, 11 das 49 obras públicas bolivianas em andamento em 2015 foram concedidas a firmas chinesas. E graças ao financiamento chinês desses projetos, no final de 2015 a China era o maior credor da Bolívia, com dívidas em aberto de US$ 533 milhões junto aos bancos chineses. Apesar da possibilidade de favoritismo e do risco de penhorar as futuras receitas da Bolívia em favor de projetos fáceis de conseguir com financiamento chinês, um número altíssimo desses projetos foi afetado por atrasos e dificuldades de várias ordens. As obras foram suspensas numa ponte urbana em Cochabamba em construção pela Vicstar, empresa de Shenzen, quando a ponte começou a afundar. Uma rodovia de Ivirgarzama para Ichilo, a ser construída pela Sinohydro, sofreu cinco paralisações trabalhistas em 14 meses. Um contrato de US$ 250 milhões para uma ligação ferroviária e rodoviária entre Montero e Bulo Bulo incluiu a concessão de dois segmentos a firmas chinesas: a China Railway Road e a CAMC Engineering. Ambos os contratos foram rescindidos quando nenhuma das duas empresas conseguiu concluir o trabalho no prazo. No setor hidrelétrico, as obras da Sinohydro num contrato de US$ 235 milhões para construir a usina de San José, em Cochabamba de 124 MW foram interrompidas por uma greve em janeiro 2016. Também a CAMC Engineering foi atingida por protestos quando ficou sem dinheiro para pagar os motoristas de caminhão da hidrelétrica de Misicuni. Apesar de todas essas dificuldades, a Sinohydro parecia prestes a vencer um contrato de US$ 1,3 bilhão para construir o complexo hidrelétrico de Rositas, de 600 MW, no rio Grande, em Santa Cruz. Houve acusações de fraude na licitação quando o governo concedeu apenas 21 dias para as empresas interessadas apresentarem suas propostas, com base num projeto que ainda nem tinha sido concluído. Na indústria, tal como nas outras áreas mencionadas, as firmas chinesas não investiram em fábricas, como fizeram no Brasil e no México nos setores de veículos, eletrônicos e equipamentos pesados. Ao contrário, construíram grandes usinas de utilidade questionável para o Estado boliviano. Exemplos incluem uma central de produção de asfalto em El Alto, uma fábrica de papel em Villa Tunari, no departamento de Chapare, e a refinaria de açúcar de San Buenaventura, no departamento de La Paz. A empresa boliviana de telecomunicações Entel assinou um contrato de US$ 120 milhões com a chinesa Huawei para fornecer serviços a 12 mil localidades em todo o país. Cinco anos depois, em 2014, a Entel escolheu a chinesa ZTE como fornecedora exclusiva para a construção da FTTx, a nova rede nacional de banda larga. No setor espacial, a China construiu e lançou o primeiro satélite da Bolívia, incluindo a construção da infraestrutura de solo e o treinamento do pessoal para a Agência Espacial Boliviana, criada para administrar o satélite, financiando 85% do custo total do projeto, de US$ 302 milhões. Posteriormente a Bolívia se comprometeu a contratar a China para construir e lançar um segundo satélite, o Bartolina Sisa, por US$ 150 milhões. Mas, em outubro do ano passado, o governo boliviano prometeu levar seu envolvimento com a China a um patamar inteiramente novo com uma linha de crédito chinesa de US$ 7,5 bilhões para financiar uma série de 11 projetos estratégicos de desenvolvimento. A realização dessas obras por firmas chinesas faria da China não só a força predominante no desenvolvimento boliviano, como também iria mais que dobrar a dívida nacional da Bolívia. Em especial na sequência do atual escândalo, a estratégia de Morales de recorrer à China para conduzir e financiar seu desenvolvimento nacional dá margem a várias preocupações. Com base no histórico do governo Morales até agora, não está claro que o atual regime seja eficiente na escolha e contratação para os projetos públicos de infraestrutura que melhor promovem o desenvolvimento nacional. Tampouco é certo que o regime possa trabalhar eficazmente com seus parceiros chineses para realizar projetos de qualidade dentro dos prazos acertados, sem gerar uma significativa agitação social no processo. Também não se pode considerar prudente mais que dobrar a dívida externa da Bolívia num momento em que a cotação dos principais produtos de exportação do país – metais, minerais e gás – está batendo em mínimos históricos, sem perspectivas de melhora à vista. Um dos mistérios é como a China pretende garantir o reembolso desses empreendimentos tão arriscados. Basta que os empresários e funcionários do Estado chinês se lembrem do colapso doloroso do seu outro grande parceiro de desenvolvimento na região, a Venezuela, para a qual a China já emprestou mais de US$ 65 bilhões. Os eleitores bolivianos fariam bem em considerar mais que o caso Zapata, mas não em ignorá-lo. O atual escândalo não se refere apenas a Evo Morales, que fez muito durante a última década para que a maioria indígena, há muito marginalizada, sinta que tem uma voz na política do país. Trata-se de escolher um caminho em que a transparência e as instituições fortes garantam que o país aproveite da forma mais eficaz os seus recursos e a ajuda disponível, seja da China, da Alemanha ou dos Estados Unidos para realizar os sonhos legítimos de desenvolvimento nacional e dignidade numa sociedade pluralista.