Desde que a China passou a importar mais alimentos do que exporta, em 2003, a abertura da balança comercial cresceu. Em 2019, o país asiático se tornou o maior importador mundial de produtos agrícolas. Hoje, a qualidade, disponibilidade e acessibilidade dos produtos agrícolas definem, cada vez mais, a situação da segurança alimentar chinesa.
Nesse sentido, Beijing pode exercer um papel de liderança para tornar o comércio agrícola mais sustentável, fazendo jus ao discurso de “civilização ecológica” que tanto defende e garantindo o cumprimento da Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra, lançada na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP26) em novembro de 2021.
Também crescem as pressões para a maior responsabilidade ambiental por parte de consumidores e compradores na cadeia global de alimentos. Isso se deve, em grande parte, à ineficácia de países produtores em mitigar os impactos ambientais de commodities agrícolas. Não é por menos que há inclusive cobranças para se boicotar alguns produtos.
Nos últimos anos, porém, atores internacionais, como governos, têm se aproximado de organizações da sociedade civil chinesa para entender como o país tem lidado com as questões de sustentabilidade relacionadas às commodities leves, como soja e carne.
Por meio de pesquisa, análise e implementação de projetos, o Instituto Ambiental Global (GEI, na sigla em inglês), organização chinesa da qual faço parte, tem atuado para unir esforços no combate ao desmatamento.
Perda de habitat induzida pela agricultura
Uma iniciativa de transparência por meio de dados da Trase revelou, em 2020, que metade do risco do desmatamento relacionado à soja e carne bovina exportadas do Brasil está concentrado em apenas 1% e 2%, respectivamente, dos municípios que produzem essas commodities.
No ano passado, trabalhamos com a Trase para averiguar se a China compra ou não desses municípios e, em caso positivo, o quão dependente é. Para isso, analisamos os padrões de compra do país asiático no Brasil e na Argentina entre os anos de 2009 e 2019 e constatamos que a conversão de habitat ligada à exportação de soja e carne bovina desses países para a China também está concentrada espacialmente.
Tomemos como exemplo as importações da soja brasileira pela China na década de 2009. Ela foi produzida em três regiões: em Matopiba, como é conhecido uma região composta pelos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e que está dentro do bioma Cerrado; o estado do Mato Grosso; e o Sul do Brasil, incluindo os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A conversão de habitat induzida pela soja foi marcante em Matopiba, a mais nova fronteira da soja no Brasil. A região produziu cerca de 6,1 milhões de toneladas da commodity e representou 9% das exportações do produto para a China em 2018. Na região, seis municípios tiveram taxas extremamente altas de conversão de hábitats induzidas pela agricultura.
A compra de soja e carne bovina desses municípios deixa o mercado consumidor à deriva e o expõe ao risco da chamada “destruição ambiental impulsionada pela demanda”. A China não pode simplesmente ignorar esses locais “problemáticos” e comprar de outros lugares.
Embora o Sul do Brasil e Mato Grosso tenham graus comparativamente mais baixos de conversão de habitat incorporados nas importações da China, eles ainda enfrentam riscos de sustentabilidade e restrições ambientais.
Apesar disso, em 2021, a produção do Sul foi bastante afetada por condições climáticas extremas. Só no Rio Grande do Sul, segundo estado brasileiro que mais exporta soja para a China, a produção caiu 46% devido a uma seca incomum. A região também tem capacidade limitada para expandir a agricultura devido à erosão e fragmentação de terras agrícolas.
14%
A soja produzida no estado de Mato Grosso responde por 14% das importações da commodity da China
Até agora, o Mato Grosso está relativamente livre de tais limitações. Em 2020, o estado contribuiu com 29,27% e 15,49% da produção total de soja e carne bovina do Brasil, respectivamente. Mais da metade dessas commodities produzidas no estado foi exportada para a China naquele mesmo ano. O estado foi responsável, sozinho, por 14% das importações de soja da China e 6,8% das de carne bovina em 2020. Assim, o Mato Grosso desempenha um papel dominante no comércio agrícola sino-brasileiro.
Nossa análise constatou que houve um grau relativamente baixo de conversão de habitat associado às importações da soja mato-grossense em 2018. Apenas dois municípios têm níveis moderados de desmatamento, apesar de o estado estar cercado por três biomas importantes — Amazônia, Cerrado e Pantanal.
Isso explica, em parte, por que o Mato Grosso foi um dos dois estados da Amazônia Legal brasileira a receber financiamento do Reino Unido e da Alemanha por meio do REDD+ Brasil em 2015.
Recomendações para o comércio agrícola entre Brasil e China
A partir de entrevistas com importantes atores do setor e análise documental, descobrimos que o Mato Grosso consegue ter uma sinergia entre a agricultura e a conservação da biodiversidade.
Isso envolve, primeiramente, inovações em regulamentações administrativas, tais como uma abordagem jurisdicional — uma forma de gestão da paisagem dentro de limites claramente definidos e com um alto nível de envolvimento e participação governamental e de outros atores —; o acesso condicional a crédito agrícola; a revitalização de áreas de preservação; o apoio às cadeias alimentares locais e à agricultura familiar. Avanços tecnológicos como a recuperação de terras degradadas, a integração pecuária-floresta e o desenvolvimento de ração animal também desempenham um importante papel.
O Mato Grosso consegue ter uma sinergia entre a agricultura e a conservação da biodiversidade
Contudo, a capacidade de aplicação da lei ainda precisa ser fortalecida para se combater a conversão ilegal de habitat, especialmente nos municípios de Paranatinga e Feliz Natal.
Com base nesses achados, argumentamos que, para promover práticas agrícolas favoráveis ao clima e à natureza e reduzir a volatilidade da cadeia de fornecimento, a atenção deve ser direcionada para as poucas áreas de alto risco, como os seis municípios produtores de soja em Matopiba.
Investidores chineses também precisam concentrar mais esforços nessas poucas áreas de risco como parte de sua estratégia de fornecimento de longo prazo. O desmatamento ligado à carne bovina afeta municípios com mais intensidade e exige mais recursos e coordenação.
Também recomendamos que as empresas chinesas adotem uma abordagem cautelosa ao investir na agricultura e em setores relacionados, incluindo a infraestrutura no Sul do Brasil. Quanto ao Mato Grosso, o GEI considera construtivo o engajamento com o governo local e a indústria e reconhece seus avanços, ao mesmo tempo em que a ajuda a melhorar sua capacidade de governança.
Parceria para cultivar boas práticas
O GEI é uma das primeiras organizações da sociedade civil chinesas a “se tornar global”. É a primeira entidade do país a investigar o desempenho ambiental e social das empresas privadas chinesas no comércio de madeira com a África e o Sudeste Asiático, em 2007. Desde então, o GEI já trabalhou em 11 países para lidar com externalidades ambientais associadas ao comércio bilateral.
O GEI trabalhou com sucesso com agências governamentais chinesas, incluindo o Ministério do Comércio, a Administração Nacional de Florestas e Pastagens e o então Ministério de Proteção Ambiental para introduzir uma série de diretrizes para regulamentar os investimentos e as atividades comerciais de empresas chinesas no exterior, incluindo as Diretrizes para a Proteção Ambiental de Investimento e Cooperação no Exterior de 2013.
Em 2015, o GEI assinou um memorando de entendimento com o governo de Mianmar para combater o comércio ilegal de madeira através de um esquema de verificação. Isto foi seguido por um Memorando de Entendimento assinado entre os governos da China e de Mianmar em 2017, que levou ao estabelecimento de um grupo de trabalho de alto nível para a coordenação e cooperação bilateral em vários níveis envolvendo várias partes interessadas.
Agora, o GEI concentra esforços para promover um comércio agrícola sustentável entre Brasil e China.
Em 2021, trabalhamos com o governo estadual do Mato Grosso para obter informações para nossos parceiros chineses sobre a regulamentação agrícola do Brasil e sua relação comercial bilateral.
O GEI percebeu que o governo do estado tem interesse em conhecer as medidas do governo chinês, das empresas e dos consumidores em relação à sustentabilidade do comércio entre o Brasil e a China. Assim, o GEI e três entidades do Mato Grosso, inclusive o governo estadual, assinaram um Memorando de Entendimento (MoU) em 8 de março de 2022. O documento contou com a participação da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso, cooperativas e traders, além do Instituto Mato-Grossense da Carne.
A parceria funcionará tanto no nível bilateral quanto doméstico. Bilateralmente, as quatro entidades, com a participação de atores privados de ambos os países, vão traçar um plano para a criação de um mercado na China para produtos de carne bovina produzidos de forma sustentável no Mato Grosso. Para que esses produtos sejam reconhecidos no mercado chinês, as entidades tentarão estabelecer sistemas de certificação na China para produtos de carne bovina sustentáveis, incluindo aqueles que emitem zero carbono líquido em sua produção.
Para se definir “sustentável”, também será preciso identificar as boas práticas existentes e o que pode ser alcançado realisticamente, incluindo, mas não se limitando, a desmatamento zero, reduções de emissões de carbono, promoção de práticas orgânicas e agricultura familiar.
Vamos incorporar essas definições e critérios na estratégia por meio de uma dupla abordagem. Uma delas é a promoção da tecnologia para o uso sustentável da terra, a produção de ração animal e a criação de gado no Mato Grosso. A outra é a integração do mercado entre a China e o Mato Grosso, por meio do estabelecimento de estruturas de certificação compatíveis.
Na China, os signatários do MoU vão entrar em contato com potenciais compradores e desenvolver mecanismos como a certificação para garantir a acessibilidade ao mercado, bem como possíveis instrumentos financeiros que possam melhorar a acessibilidade econômica.
Esperança de aumentar a escala
O GEI acredita que reconhecer e recompensar a boa governança e as melhores práticas nos países produtores pode levar a uma transformação importante na produção e no comércio de commodities agrícolas.
Acreditamos que o plano que estamos traçando para o Mato Grosso pode ser ampliado e aplicado àqueles poucos municípios do Brasil cujo comércio com a China ainda causa desmatamento e perda de habitat.
Mas isso não é o fim da história. Também queremos estabelecer um projeto-piloto para explorar o potencial dos sistemas agrícolas de baixo carbono na China. Isso envolve a concepção de práticas agrícolas de baixo carbono e o estabelecimento de padrões para orientar e certificar a agricultura de baixo carbono, com a ajuda da experiência brasileira nesta área, incluindo práticas já existentes e metodologias de compensação, certificação e gestão de mercados.
O MoU demonstra que as organizações da sociedade civil chinesa começaram a prestar séria atenção às questões de sustentabilidade na cadeia de fornecimento global da China. Ele mostra que os países produtores e consumidores compartilham um interesse comum em promover práticas ecologicamente benignas e em trabalhar juntos em prol de uma cadeia de fornecimento mais verde.