Negócios

A energia limpa da China serve à reindustrialização do Brasil?

De veículos elétricos a turbinas eólicas, capital chinês impulsiona produção brasileira; desafio agora é transformar essa onda em empregos e valor agregado para o país
<p>Presidente Luiz Inácio Lula da Silva testa carro elétrico da Great Wall Motors durante sua visita a Beijing, em maio. Na ocasião, ele também assinou acordos com empresas de energia eólica e de combustível sustentável para aviação (Imagem: <a href="https://www.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/54514323399/in/album-72177720326068913">Ricardo Stuckert</a> / <a href="https://www.flickr.com/people/palaciodoplanalto/">Palácio do Planalto</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nd/2.0/deed.en">CC BY ND</a>)</p>

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva testa carro elétrico da Great Wall Motors durante sua visita a Beijing, em maio. Na ocasião, ele também assinou acordos com empresas de energia eólica e de combustível sustentável para aviação (Imagem: Ricardo Stuckert / Palácio do Planalto, CC BY ND)

A estrela de três pontas da Mercedes-Benz ainda paira sobre a rodovia em Iracemápolis, mas a antiga fábrica da montadora alemã está sob nova direção desde 2021.

A chinesa Great Wall Motors (GWM), atual proprietária das instalações, deve iniciar a produção no local ainda este mês. Embora a maior parte das vendas da GWM continue sendo de carros a gasolina, a nova fábrica em Iracemápolis terá foco em híbridos, com o modelo Haval H6.

Instalada no coração industrial do Brasil, no estado de São Paulo, a fábrica da GWM é apenas um dos vários investimentos recentes da China nos setores de energia limpa no país. Na Bahia, a BYD — maior fabricante mundial de veículos elétricos — já iniciou a produção do primeiro carro a bateria fabricado no Brasil, em uma unidade que antes pertencia à Ford.

A BYD mantém outras duas fábricas no país: uma em Campinas, também em São Paulo, fundada em 2015, dedicada à produção de chassis para ônibus elétricos e módulos de painéis solares; e outra em Manaus, Amazonas, que monta baterias de fosfato de ferro e lítio para seus ônibus.

Tanto a GWM quanto a BYD começarão produzindo a partir de kits importados da China, mas planejam, gradualmente, ampliar a fabricação de componentes no Brasil. “A partir do próximo ano, vamos localizar vários itens. Precisamos ser uma empresa local, produzir no Brasil — não apenas para aproveitar os incentivos do governo, mas para exportar para toda a região”, afirmou Ricardo Bastos, diretor de Assuntos Institucionais da GWM Brasil, ao Dialogue Earth.

Os investimentos da GWM, da BYD e da fabricante chinesa de turbinas eólicas Goldwind — que adquiriu uma antiga fábrica da General Electric em 2024 — estão alinhados à agenda de reindustrialização “sustentável” do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“A produção industrial é um tema recorrente no Brasil, mas este governo está particularmente empenhado em promover políticas industriais, por isso há muito espaço para receber positivamente os investimentos chineses na indústria”, disse Armando Castelar, coordenador de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia, ao Dialogue Earth.

Na visita oficial a Beijing, em maio, Lula fechou vários compromissos com empresas chinesas para investirem na fabricação de energia limpa no país, entre elas está a fabricante de turbinas Windey, que pretende construir uma montadora na Bahia. Ele também garantiu um acordo de US$ 1 bilhão com a Envision Energy para erguer um complexo de combustível sustentável para aviação, além do plano da montadora GAC de iniciar a construção de uma nova fábrica de veículos elétricos no Brasil até 2026.

Lula da Silva junto a outros quatro homens vestidos de terno, enquanto um deles assina um documento
Presidente Lula e Lei Zhang, diretor da Envision Energy, assinam acordo para construção de complexo de combustível sustentável para aviação no Brasil, em maio. Especialistas destacaram um aumento notável nos últimos anos em projetos de sustentabilidade liderados pela China no Brasil (Imagem: Ricardo Stuckert / Palácio do Planalto, CC BY ND)

A cooperação energética entre Brasil e China não é novidade. Nos anos 1990, a China buscou no Brasil o know-how de engenharia, com turbinas para a Hidrelétrica das Três Gargantas sendo fabricadas em São Paulo. Já na década de 2010, o fluxo se inverteu: a China tornou-se importante fonte de investimento e tecnologia para o setor energético brasileiro.

A State Grid — maior empresa de energia do mundo — teve um papel central no desenvolvimento da rede elétrica brasileira. Entrou no mercado em 2010 e, após grandes aquisições, passou a disputar leilões de energia. Utilizando sua tecnologia de transmissão de “ultra-alta tensão”, desenvolvida para cobrir grandes distâncias na China, construiu duas linhas que cruzam o Brasil de ponta a ponta e segue implementando alguns dos projetos de transmissão mais ambiciosos do país.

O petróleo também se tornou um pilar da cooperação desde a década de 2010. Em 2009, a Petrobras obteve uma linha de crédito de US$ 10 bilhões do Banco de Desenvolvimento da China, marcando o início de uma relação que transformou o país asiático em um dos principais credores e mercados da estatal brasileira.

O investimento chinês em energias renováveis no Brasil começou com a hidrelétrica, que ainda domina a matriz energética nacional. Desde 2015, a China Three Gorges investiu mais de US$ 5 bilhões em aquisições e modernizações; a State Power Investment Corporation seguiu o exemplo, pagando US$ 2,4 bilhões pela hidrelétrica de São Simão, em Goiás. Mais recentemente, ambas passaram a focar no Nordeste, região rica em potencial eólico.

De volta de Beijing, Lula anunciou o compromisso da China General Nuclear de investir mais de US$ 500 milhões em um complexo de energia renovável no Piauí, somando-se ao crescente número de projetos eólicos e solares liderados pela China na região.

Um aumento ‘notável’

Esses investimentos fazem parte do que Claudia Trevisan, diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China, descreveu ao Dialogue Earth como um “aumento notável nos projetos liderados pela China relacionados à sustentabilidade”.

Com um vasto potencial de crescimento em seus já significativos setores de energia solar, eólica e de biocombustíveis, além de um enorme mercado de eletricidade e uma rede que já é composta por 90% de fontes de baixo carbono, muitos analistas estão otimistas com o futuro verde do Brasil.

“O Brasil tem potencial para emergir como um centro de energia verde, não apenas para a América Latina, mas para o mundo – e acredito que a China vê esse potencial”, disse Paulo Feldmann, professor de economia da Universidade de São Paulo, ao Dialogue Earth.

Ao sancionar a lei “Combustível do Futuro”, que assegura demanda para combustíveis de baixo carbono, Lula prometeu, em outubro de 2024, que o Brasil “realizará a maior revolução energética da Terra”.

Autoridades e executivos chineses também demonstram otimismo. O CEO da Goldwind destacou os recursos eólicos “incomparáveis” da região, enquanto o “desenvolvimento verde” foi colocado no centro da cooperação China–Brasil em novembro passado, quando os dois países assinaram um acordo para alinhar a Iniciativa Cinturão e Rota da China com os programas Nova Indústria Brasil e Transformação Ecológica de Lula — mesmo que o Brasil continue a rejeitar a adesão formal à principal iniciativa chinesa de investimentos estrangeiros.

Entretanto, os objetivos de industrialização e transformação verde nem sempre caminham juntos. O aumento das importações representa um desafio às ambições da indústria local. No ano passado, o Sul Global superou o Norte Global como principal destino das exportações chinesas de painéis solares. Já mercados emergentes de veículos elétricos, como o Brasil, embora ainda pequenos em termos absolutos, crescem rapidamente — e são amplamente dominados por exportações chinesas.

Essas tendências têm impactos positivos para o clima. No Paquistão, a chegada de painéis solares chineses a preços ultrabaixos impulsionou um boom de geração solar; e, segundo Rodrigo Sauaia, CEO da Absolar, algo semelhante vem ocorrendo no Brasil: “Podemos falar de uma transformação solar nos últimos dez anos”, afirmou ele ao Dialogue Earth.

“À medida que o Sul Global busca a descarbonização, a escala e a capacidade da China de fornecer tecnologias de energia limpa a baixo custo a tornam uma parceira indispensável”, disse Aya Adachi, pesquisadora associada do Conselho Alemão de Relações Exteriores.

Ela pondera, no entanto, que esses países não querem apenas importar produtos: “Eles estão adotando requisitos de conteúdo local e tarifas para incentivar uma produção com maior valor agregado”, afirmou, destacando que “entre 2016 e 2024, cerca de dois terços das medidas globais de defesa comercial contra a China vieram de países em desenvolvimento”.

Edgar Barassa, especialista em mobilidade elétrica da consultoria Barassa & Cruz, alerta para riscos às capacidades industriais brasileiras: “O desafio é que as empresas chinesas — que enfrentam excesso de capacidade doméstica em veículos elétricos e baterias — são incentivadas a exportar o excedente ou montar veículos no exterior com integração mínima”.

Em entrevista ao Dialogue Earth, ele alertou: “Se não for controlada, essa dinâmica corre o risco de consolidar um papel periférico para o Brasil na cadeia de valor da tecnologia limpa”.

Punições e incentivos

Para enfrentar esse desafio, Brasília vem combinando punições e incentivos para atrair a produção ao país. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) liberou R$ 300 bilhões em crédito subsidiado no âmbito da estratégia Nova Indústria Brasil, enquanto o programa Mover, voltado ao setor automotivo, concede créditos fiscais às empresas que trouxerem a produção para o Brasil e destinarem parte da receita a pesquisa e desenvolvimento do país.

Na frente defensiva, o governo restabeleceu impostos de importação sobre veículos elétricos, que subirão para 35% até julho de 2026; reimplantou tarifas sobre painéis solares, elevando-as para 25% em novembro de 2024; e aprovou aumento nas tarifas sobre turbinas eólicas completas, de 11,2% para 25% até janeiro de 2026.

Beijing e suas campeãs industriais também enfrentam um dilema: seguir apostando na exportação de produtos ultracompetitivos ou investir na produção local, atendendo às demandas brasileiras e transformando o país em plataforma de exportação para a América Latina.

Estou cautelosamente otimista, mas o desafio está em transformar memorandos de entendimento em projetos de investimento que gerem resultados socioeconômicos concretos
Edgar Barassa, especialista em mobilidade elétrica

“O Brasil pode ser uma base para a produção chinesa exportar para a América do Sul”, disse Bastos, da GWM, “mas, para isso, precisamos cumprir muitas regras de conteúdo local”.

Nos círculos acadêmicos chineses, cresce a preocupação com o “desequilíbrio comercial” com países do Sul Global. Liu Hongzhong, professor de economia na Universidade Xi’an Jiaotong, defende “uma cooperação econômica e comercial mais equilibrada e sustentável com os países do Sul Global”.

Segundo Adachi, “Beijing está ciente das tensões geradas pelos crescentes desequilíbrios comerciais com o Sul Global, mas, ao contrário das respostas muitas vezes duras às ações de nações de alta renda, a China tem evitado retaliar países em desenvolvimento”.

Os acordos de manufatura obtidos por Lula em maio mostram que Beijing está atenta, mas ainda não está claro se o Brasil conseguirá capturar uma fatia maior da cadeia de valor da tecnologia limpa chinesa.

“Estou cautelosamente otimista”, disse Barassa, “mas o desafio está em transformar memorandos de entendimento em projetos de investimento que gerem resultados socioeconômicos concretos”.

Célio Hiratuka, professor associado da Unicamp, compartilha dessa cautela: “É muito cedo para dizer se o governo foi bem-sucedido”, afirmou ao Dialogue Earth. “A GWM parece séria na seleção de fornecedores e aposta no conteúdo local, mas acredito que a BYD ainda está testando o mercado; sua estratégia pode ser adiar o momento de iniciar a produção no Brasil”.

A BYD tem sido criticada por inundar o mercado com importações, inclusive com o uso do BYD Shenzhen, o maior navio transportador de automóveis do mundo.

Bastos admite que há limites para localizar a produção de componentes estratégicos como baterias. “Produzir as células seria muito, muito caro, mas estamos conversando com fornecedores sobre a montagem de baterias no Brasil”, disse.

“Quanto podemos esperar internalizar – essa é uma pergunta difícil”, observou André Cieplinski, do Conselho Internacional para o Transporte Limpo no Brasil. “Mesmo que não possamos internalizar todo o processo de fabricação de baterias, se conseguirmos nacionalizar outros componentes, o resultado pode ser positivo para o emprego”.

Um trabalhador instalando painéis solares em um telhado
Trabalhador instala painéis solares no telhado de uma escola pública na cidade de Salvador, na Bahia. Especialistas estão divididos sobre se os esforços do governo brasileiro para incentivar a fabricação nacional de painéis solares têm sido suficientes (Imagem: Joá Souza / Alamy)

Cieplinski destacou que o BNDES foi essencial para o avanço da energia solar no país. Já Sauaia, da Absolar, avalia que a política industrial não foi suficientemente ousada: “O Brasil é o único polo possível para a fabricação local de energia solar fotovoltaica na América do Sul, mas, para que isso avance, ainda precisamos trabalhar em algumas políticas”.

Sobre as tarifas do governo para painéis solares, ele acrescentou: “Em vez de sufocar o mercado, seria melhor criar políticas construtivas — usar o poder de compra do governo para gerar demanda e implementar uma política industrial robusta que estimule a instalação de fábricas no Brasil”.

A CEO da Associação Brasileira de Energia Eólica, Elbia Gannoum, está mais otimista quanto à indústria eólica nacional e ao papel das políticas públicas: “O governo brasileiro tem feito esforços significativos para manter a cadeia de suprimentos local ativa, gerando empregos e atraindo a fabricação de turbinas eólicas para o país”, afirmou, destacando que “entre 60% e 80% dos componentes eólicos — incluindo pás, torres e naceles — já são produzidos no Brasil”.

Para Hiratuka, “o governo brasileiro está no caminho certo com sua política industrial, mas precisa se manter firme diante da pressão das empresas chinesas”.

Ele alerta, porém, para o principal risco: as eleições de 2026. “O governo atual está indo na direção correta, mas tudo pode mudar com uma reviravolta política nas próximas eleições”.

Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.

Strictly Necessary Cookies

Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.

Analytics

This website uses Google Analytics to collect anonymous information such as the number of visitors to the site, and the most popular pages.

Keeping this cookie enabled helps us to improve our website.

Marketing

This website uses the following additional cookies:

(List the cookies that you are using on the website here.)